CARLOS LOPES
(HP, 12/08/2016 a 07/10/2016)
Ao ler o que existe nas livrarias, hoje em dia, sobre o fim do Império, se levássemos a sério essa literatura, poderíamos chegar à conclusão de que aquele regime acabou por mágica. É verdade que esta tradição vem de muito tempo. Começou, parece, com o livro do rabino Benjamin Mossé, “D. Pedro II, Empereur du Brésil”, publicado na França em 1889. Mesmo na época, era sabido que o verdadeiro autor desse livro era (e é) o Barão do Rio Branco – até o próprio Mossé, grande rabino de Avignon, reconheceu a verdadeira autoria.
O livro foi escrito antes da Proclamação da República (os primeiros exemplares chegaram ao Brasil em agosto de 1889), mas se tornou modelo para uma hagiografia que se estende até hoje. Rio Branco, que seria o mais famoso ministro das Relações Exteriores da República, depois da proclamação deixou de lado seus pendores monarquistas, com exceção do próprio título de barão – e nenhum republicano se importou com isso.
Mas, vejamos um livro mais recente: se lermos, por exemplo, “As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos”, de Lilia Moritz Schwarcz, publicado em 1998, mais de cem anos depois de “D. Pedro II, Empereur du Brésil”, tomaremos conhecimento de muitos fatos, inclusive alguns desagradáveis ou pouco edificantes, sobre a vida de Pedro II. No entanto, é um mistério, apesar dos problemas apontados, por que o Império acabou. Este acontecimento mais parece um problema de personalidades.
Sintomaticamente, acontecimentos como a “quebra do Souto” (1864) e a Revolta do Vintém (1880) são ignorados (a última é mencionada na cronologia, mas não no texto do livro; a primeira, nem isso).
Já escrevemos bastante sobre a Revolta do Vintém (v. as partes 7 e 8 de “O nascimento da República e os jabutis em cima das árvores”, HP 04/02/2015 e HP 06/02/2015). Mas apenas mencionamos, naquele texto, a “quebra do Souto”, acontecimento do qual parte Vicente Licínio Cardoso, em “À Margem do Segundo Reinado”, para analisar o fim do Império. Aqui, pretendemos apenas descrever o que foi essa crise.
Diz Arthur Cezar Ferreira Reis, na introdução que escreveu para a edição das “Atas do Terceiro Conselho de Estado, 1857-1864”, organizada pelo grande historiador José Honório Rodrigues:
“A situação econômica do Império, no início de 1864, parecia segura, com a produção do café em alta e boas perspectivas para outros gêneros de exportação, que constituía o fundamento de todo o processo econômico em marcha. A produção agrícola era, então, o sustentáculo econômico do Império. Nas duas ‘Falas’ que dirigiu ao Legislativo, em 1864, o Imperador afirmava que o país caminhava serenamente em termos de ordem e de crescimento. Governava-se, tendo em vista um regime de economia que não comprometesse a segurança e o desenvolvimento nacionais. Era preciso, porém, que o Legislativo votasse orçamento equilibrado, receita e despesa.
“Abrira-se, na Corte, uma nova agência bancária, a do London & Brazilian Bank, que tinha sede em Londres com capital de um milhão de libras. Fora autorizada a instalação de filial do Brazilian and Portuguese Bank. A Caixa Econômica e Monte Socorro progrediam, significando a confiança pública”.
De repente, o dilúvio: no dia 10 de setembro de 1864, a Casa Souto, um dos mais importantes bancos do Rio de Janeiro, pertencente ao banqueiro português Antônio José Alves Souto – elevado por D. Pedro II ao título, perfeitamente ridículo, de visconde de Souto, “sem que motivo houvesse de suspeita de qualquer acontecimento, pouco depois das 10 horas do dia ordenou que se fechasse a escrituração e se suspendesse o movimento das caixas, abandonando o seu escritório!” (cf. Castro Carreira, “História Financeira e Orçamentária do Império do Brasil desde a sua fundação”, Imprensa Nacional, Rio, 1889, p. 373).
O mesmo autor, um senador do Império, relata o que aconteceu em seguida:
“‘Este fato consternou e surpreendeu a todos, levando o susto e o terror a inúmeras pessoas que, pela ilimitada confiança que na casa depositavam, lhe haviam entregue tudo quanto possuíam.
“O pânico foi terrível e prontamente chegou a todos os pontos da cidade, não escapando os mais longínquos arrebaldes.
“Este procedimento disse-se ser motivado pela escusa do Banco do Brasil de fornecer à mesma casa fundos sob caução de títulos e desconto de letras para acudir a certos pagamentos do dia.
“Em virtude deste alarme deram-se as naturais corridas não só sobre as demais casas de igual negócio, como sobre os Bancos, não sendo delas isento o próprio Banco do Brasil.
“Todos se apressavam a salvar os seus capitais, que para muitos eram os únicos recursos acumulados à custa dos mais penosos sacrifícios.
“Às três horas da tarde enorme era a massa do povo que invadia as casas de Gomes & Filhos, Monte Negro & Lima, Oliveira & Bello, Fortinho & Muniz, Brazilian Portuguese & Bank, London & Brazilian Bank, Bahia & Irmãos, sendo preciso colocar força policial nas suas portas para evitar as bruscas invasões. No dia 14 as casas de Gomes & Filhos, Monte Negro & Lima, e Oliveira & Bello, suspenderam os pagamentos. (Castro Carreira, op. cit., pp. 373-374).
Arthur Cezar Ferreira Reis cita a carta escrita por João Batista Calógeras (funcionário diplomático, pai do futuro ministro e historiador João Pandiá Calógeras) para a esposa, que estava em Paris, sobre os acontecimentos no Rio de Janeiro, carta divulgada posteriormente por Taunay:
“Uma quantidade de firmas de primeira ordem”, conta Batista Calógeras, “suas credoras e portadoras de saques sobre sua casa, saques já vencidos, e imediatamente e como consequência da suspensão de pagamentos, saques estes em carteira de bancos em mãos de particulares, títulos por Souto descontados, muitas destas casas se achavam comprometidas, não se encontrando prevenidas para enfrentar tal antecipação inesperada e aliás forçada de compromissos.
“Verdadeira multidão de depositários e correntistas do Souto sentiu-se, imediatamente, atingida por mortal golpe.
“Entre a massa de credores, dignos de lástima, vem a ser infelizes operários que se contam por milhares, gente que diariamente cerceava o apetite, pode-se afirmá-lo, a fim de conseguir amealhar algumas centenas de mil réis, tendo em vista os dias da velhice e o sustento das pobres famílias.
“Pela cidade ocorreu generalizado alarma, mas sobretudo nas ruas vizinhas dos bancos. Ficaram apinhadas de infelizes arruinados, que, em altos brados reclamavam a entrega de suas penosas economias.
“Os comerciantes atingidos pelo golpe julgavam-se falidos. Tornou-se preciso que a residência do Sr. Souto, em São Cristóvão, fosse guardada por tropa, havendo receio de que fosse assaltada.
“Mas isto não veio a ser tudo, generalizou-se a desconfiança. Não houve quem se sentisse garantido quanto aos seus depósitos em qualquer dos demais bancos da cidade. Corridas sofreram as casas bancárias Gomes Montenegro e Lima, Oliveira, Fortuito e Muniz, Dillon e Cia., Bahia e Cia.
“Viram todas surgirem-lhes os depositantes a exigir a imediata entrega dos saldos em conta corrente, e dos títulos nelas depositados. Durante três ou quatro dias haviam os banqueiros pago milhares de contos de réis, alimentando a esperança de que a crise fosse transitória, acabaram os banqueiros forçados a cerrar portas, à vista das ondas de povo afluentes aos postigos de seus quadris… Houve contudo, uma exceção: a firma Bahia. Até agora, continua a pagar isto, aliás, pelo fato de ter sido a última a ser assediada.
“Como continuamente aumentasse a desconfiança, encaminhou-se a multidão para o próprio Banco do Brasil a exigir o troco das notas de sua emissão por ouro. Durante três dias pagou o Banco do Brasil perto de quatro mil contos em moeda. Dispunha aliás de reserva metálica numa importância de quatorze mil contos.
“A tal ponto chegou a agitação que as ruas, sobretudo aquelas onde se localizam os bancos tiveram de ser ocupadas por tropa.
“Houve quem pensasse em endereçar ao Imperador uma petição a fim de o obrigar a tomar enérgicas providências a fim de salvar o País.
“Seria levada a São Cristóvão pelas turbas no ímpeto caracteristicamente revolucionário. Esqueci-me de te contar que o Banco Rural e Hipotecário, o nosso principal estabelecimento de crédito após o Banco do Brasil, tendo em carteira dezesseis mil contos de réis de correntistas, estava na iminência de falir.
“Os únicos estabelecimentos não comprometidos pela crise foram o London and Brazilian Bank e Portuguese and Brazilian Bank.”
O relato é de alguém que testemunhou pessoalmente os acontecimentos…
Para completar, o parlamento não existia: fora dissolvido para a convocação de novas eleições. Assim, o Conselho de Estado, convocado às pressas pelo imperador, tomou as providências: basicamente, “os decretos de 17 e 30 de setembro de 1864, suspenderam e prorrogaram por sessenta dias, contados do dia 9 de setembro, os vencimentos das letras, notas promissórias e quaisquer outros títulos comerciais pagáveis na Corte e Província do Rio de Janeiro; suspendendo e prorrogando também os protestos, recursos em garantia e prescrições das referidos títulos” e mais algumas outras (Castro Carreira, op. cit., p. 367).
Em seu livro, Castro Carreira faz um balanço sumário das perdas:
“A crise acarretou a falência de 95 casas comerciais com um ativo de 93.340.575$, e passivo de 110.111:678$246, não contando-se 22 casas cujo passivo se ignorava.
“Nas casas que fizeram concordatas o prejuízo foi de 16.000:000$; as perdas provenientes da falência das cinco casas bancárias calcula-se em 53.154:010$, e se a estas quantias juntarem-se os prejuízos resultantes das casas falidas, cujo ativo e passivo não são conhecidos, não será exagerado calcular o prejuízo total em 70.000:000$!
“A liquidação da casa bancária de Antônio José Alves Souto & Comp., cujo passivo era de 41.187:911$912, deu 25% aos seus credores.
“A de Gomes & Filhos, cujo passivo era de 20.218:988$, deu aos seus credores 41%.
“A de Montenegro & Lima, cujo passivo era de 11.831.285$850, deu 30%.
“A de Oliveira & Bello, cujo passivo era de 4.069:711$729, deu 5% por concordata feita com os credores!
“A liquidação destas casas, feita pela administração dos comissários autorizados pelos decretos de 17 e 20 de setembro, não correspondeu à expectativa pública, que levantou clamores contra as suas deliberações, sendo crença geral que teria sido mais vantajosa para os credores se se tivessem seguido os trâmites regulares do código do comércio.
“As perdas provenientes da crise não se limitaram às cifras que são conhecidas. Em quanto importariam as perdas provenientes da baixa dos imóveis? Os títulos da dívida pública não se depreciaram, porém as ações dos Bancos e Companhias sofreram grandes baixas; as do Brasil, que se cotavam a 240$ e 250$, foram vendidas a 200$ e mesmo abaixo do par, as do Rural, que se cotavam a 275$, chegaram a 220$, e as do Banco Mauá, de 1:000$ venderam-se a 750$, as libras esterlinas chegaram a ser vendidas a 10$200, o câmbio que flutuava entre 27 e 27 5/8 baixou a 24; a exportação do ouro foi de 5.663:988$803.
“Nas províncias não deixou de produzir efeito a crise da praça do Rio de Janeiro; em Santos, na Bahia, e em Pernambuco os estabelecimentos bancários sofreram corridas mais ou menos intensas.
“Também em Londres duas casas relacionadas com a casa de Souto & Comp. suspenderam os seus pagamentos” (cf. Castro Carreira, op. cit., pp. 374-375).
Em outro artigo, analisaremos as causas dessa loucura. Por ora, queremos dizer que o Império – isto é, a economia – foi salva por um inimigo: em 11 de novembro de 1864, dois meses após a “quebra do Souto”, Solano López apreenderia o “Marquês de Olinda” e aprisionaria o governador de Mato Grosso, Carneiro de Campos, dando início ao que ficou conhecido como a Guerra do Paraguai.
A guerra obrigou o Império a mudar de política econômica, abandonando o conservadorismo extremo que fora implantado por Torres Homem, visconde de Inhomirim, e Silva Ferraz, barão de Uruguaiana, condensado na Lei dos Entraves (Lei nº 1.083 de 22 de agosto de 1860), rigorosamente “metalista” (ou seja, restritiva dos meios de pagamentos supostamente ao seu lastro em ouro, o que significa que o verdadeiro lastro eram os empréstimos dos bancos ingleses).
Mas a guerra apenas adiou o problema – que era insolúvel sem a abolição do trabalho escravo.
1
Pela primeira vez no Segundo Reinado, a crise, iniciada pela “quebra do Souto”, não era determinada por uma crise externa, como acontecera em 1857.
No início do século XX, Vicente Licínio Cardoso escreveu:
“Os historiógrafos silenciam, em geral, sobre essa crise violentamente irrompida, no Rio, com a falência de casas bancárias fortes, com o retraimento do comércio, o pânico, a desconfiança, a dúvida e o mal-estar subsequentes.
“Os compêndios de história financeira nunca a analisaram em seus devidos termos: sempre apresentada como um desequilíbrio meramente financeiro, um ponto máximo de circulação de numerário depois da pletora anterior que permitira a eclosão artificial de vários bancos. É a opinião de Carreira; como fora a da comissão do inquérito de 1865; como é a de Amaro Cavalcanti ou a de Pandiá Calógeras, recentemente. Em suma, nenhum deles esclareceu o assunto tratado por Antônio Ferreira Viana no próprio ano da crise (‘A crise commercial do Rio em 1864’): são relatados os remédios urgentes, os recursos com que o Banco do Brasil interveio em socorro da própria praça. As causas estão, porém, veladas ou, quando muito, medrosamente esboçadas.
“ ‘A crise veio de um grande número de operações mal concebidas; de empresas temerárias; do jogo dos fundos públicos; das ações das companhias e dos graves transtornos por que passou a lavoura’.
“Essa, a opinião geral daqueles expositores” (Vicente Licínio Cardoso, “À Margem da História do Brasil”, 2a edição, 1938, CEN, pp. 141-142).
A conclusão de Vicente Licínio Cardoso – a mesma de Mauá, em sua “Exposição aos Credores” (1878) – é que a crise de 1864 mostra já o esgotamento do modo de produção escravagista, embora ele (e Mauá) o diga com outras palavras.
O próprio caráter especulativo da crise era um resultado desse esgotamento – vale dizer, do entrave que as relações de produção escravistas colocavam às forças produtivas do país.
Voltaremos a isso, mas, antes, é necessário ver em que constituiu – ou como se constituiu – esse esgotamento.
SUBINDÚSTRIA
Em página sobre a admirável biografia de Gonçalves Dias escrita por Lúcia Miguel Pereira, um de nossos maiores críticos literários, Álvaro Lins, faz uma restrição ao uso – a seu ver, excessivo, naquela obra – de citações. Diz ele, com razão, que o conteúdo de boa parte das citações poderia ser melhor expresso, para os leitores, se colocado nas palavras da própria autora.
Em geral, isso é verdade. Mas, no caso deste texto, considerando a agressão, a asfixia cultural sofrida pelo Brasil nas últimas décadas, nosso objetivo está, também, em revelar obras esquecidas ou pouco conhecidas, através da citação de trechos. Se despertarmos a curiosidade do leitor por essas obras, já nos damos por satisfeitos – especialmente se for um jovem leitor. Além disso, a vida de Gonçalves Dias é algo menos polêmica que a explicação ou compreensão dos fatos que antecederam o fim do Império.
Damos aqui um exemplo pertinente ao nosso assunto. Aquilo que foi escrito por José Bonifácio sobre as relações entre a escravidão e o subdesenvolvimento da indústria, em 1823, portanto, um ano após a Independência:
“Para provar (…) que a escravatura deve obstar a nossa indústria, basta lembrar que os senhores que possuem escravos vivem, em grandíssima parte, na inércia, pois não se veem precisados pela fome ou pobreza a aperfeiçoar sua indústria, ou melhorar sua lavoura. Demais, continuando a escravatura a ser empregada exclusivamente na agricultura, e nas artes, ainda quando os estrangeiros pobres venham estabelecer-se no país, em pouco tempo, como mostra a experiência, deixam de trabalhar na terra com seus próprios braços e, logo que podem ter dois ou três escravos, entregam-se à vadiação e desleixo, pelos caprichos de um falso pundonor. As artes não se melhoram; as máquinas, que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso, ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construídas com dois bois ou duas bestas muares” (José Bonifácio de Andrada e Silva, “Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura”, Typographia de Firmin Didot, Paris, 1825, pp. 16-17).
Embora já tenhamos citado esse trecho em outro artigo (v. “O 13 de maio foi a vitória da luta de Zumbi dos Palmares”, HP 15/05/2000), aqui o repetimos, para demonstrar a consciência mais avançada na época de nascimento do Império – e de ninguém menos que a do Patriarca.
Mas esse texto de José Bonifácio ficou tão esquecido durante o Segundo Reinado, que, ao ser reimpresso, 60 anos depois, em 1884, no Rio de Janeiro, o editor colocou como título: “A Abolição – reimpressão de um opúsculo raro de José Bonifácio sobre a emancipação dos escravos no Brasil”.
O Império – o Segundo Reinado – é uma época de instabilidade, que, para existir, consumiu as energias de alguns dos mais notáveis homens já nascidos no país: Caxias, o primeiro Rio Branco, Eusébio de Queirós, e, inclusive, Mauá, somente para citar alguns.
Mesmo depois do fim da Guerra dos Farrapos (1845), já em 1850, o relatório do ministro da Justiça ao parlamento é tomado pela repressão em Pernambuco (cf. “Relatório da Repartição dos Negócios da Justiça apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 1ª sessão da 8ª legislatura em 11 de janeiro de 1850”, p. 6 e seg.).
Depois disso, começam as crises econômicas (1857, 1864), a Guerra do Prata (1851) e a Guerra no Paraguai (1864) – em seguida, novas crises econômicas e políticas.
O que alguns, depois, chamaram de “estabilidade”, era a mediocridade que vinha do trono. Assim, é estranho que se lamente uma perda de “harmonia”, em certa historiografia ou sociologia. Por exemplo:
“Os velhos proprietários rurais tornados impotentes pelo golpe fatal da Abolição e por outros fatores não tinham como intervir nas novas instituições. A República, que não criou nenhum patriciado, mas apenas uma plutocracia, se assim se pode dizer, ignorou-os por completo. Daí o melancólico silêncio a que ficou reduzida a casta de homens que no tempo do Império dirigia e animava as instituições, assegurando ao conjunto nacional certa harmonia que nunca mais foi restaurada” (cf. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 26ª edição, 14º reimpressão, Companhia das Letras, 1995, p. 176, grifo nosso).
Essa “harmonia”, nem mesmo em aparência, jamais existiu – a escravidão tornava a sociedade permanentemente tensa e desarmônica.
A única forma de conceber, no Segundo Reinado, alguma “harmonia”, seria aceitar a hipótese de que os escravos não faziam parte do “conjunto nacional”. Mas, para isso, eles teriam de não fazer parte da realidade.
O que existiu foi aquela mediocridade que fez Caxias, retirado da vida pública, amargurado, escrever em seu testamento, datado de 23 de abril de 1874, seis anos antes de sua morte:
“… quero que meu enterro seja feito, sem pompa alguma, e só como irmão da Cruz dos Militares, no grau que ali tenho. Dispensando o estado da Casa Imperial, que se costuma a mandar aos que exercem o cargo que tenho.
“Não desejo mesmo, que se façam convites pro meu enterro, porque os meus amigos que me quiserem fazer este favor, não precisam dessa formalidade e muito menos consintam os meus filhos que eu seja embalsamado.
“Logo que eu falecer deve o meu testamenteiro fazer saber ao Quartel General, e ao ministro da Guerra que dispenso as honras fúnebres que me pertencem como Marechal do Exército e que só desejo que me mandem seis soldados, escolhidos dos mais antigos, e melhor conduta, dos corpos da Guarnição, pra pegar as argolas do meu caixão, a cada um dos quais o meu testamenteiro, no fim do enterro, dará 30$000 de gratificação.”
Porém, mesmo a mediocridade imperial tinha, como custo, a chibata nos homens e mulheres que construíam o país. Tal era a “harmonia” dos “velhos proprietários rurais”.
TRÁFICO
Em 1852, Eusébio de Queirós, ministro da Justiça e autor da lei que, dois anos antes, proibira o tráfico de escravos africanos, discursou na Câmara. Foi no dia 16 de julho de 1852.
Queirós, que era conservador, fez um ataque ao representante diplomático inglês, um tal Hudson, e à oposição liberal, que, de certa forma, apoiara – ou não condenara – a conduta desse elemento. Fora divulgada, dias antes, uma carta de Hudson ao governo de Londres, em que atribuía a si e às pressões inglesas – e somente a elas – a lei de proibição do tráfico. Como disse Eusébio de Queirós, “com o fim de chamar para si, para o seu governo, para a nação britânica, o mérito da repressão do tráfico no Brasil, [Hudson] não duvidou apresentar o ministro dos Negócios Estrangeiros do Brasil como um seu humilde amanuense”.
Eusébio de Queirós lembrou aos deputados que a primeira lei contra o tráfico, realmente imposta pelos ingleses, em 1831, simplesmente não fora respeitada, assim como o Bill Aberdeen – a lei inglesa que permitia a apreensão de navios brasileiros:
“A Inglaterra, sacrificando o direito das gentes à execução do seu bill, empregando grandes esquadras, despendendo avultadas quantias pecuniárias, comprometendo a saúde e a vida de seus súditos, viu, senhores, que, depois de tamanhos esforços, o resultado que obtinha era exatamente o contrário do que esperava; a Inglaterra viu que, tendo nos anos anteriores orçado por 20.000 o número de africanos anualmente importados no Brasil, esse número, em vez de diminuir, aumentou com incrível rapidez. Essa importação, senhores, elevou-se no ano de 1846 a 50.000, no ano do 1847 a 55.000, e no de 1848 a 60.000; isto é, o tráfico triplicou depois que a Inglaterra, dispensando o concurso do governo brasileiro, arrogou-se o direito de reprimir o tráfico, confiou unicamente na sua esquadra, no seu dinheiro, na sua força!”
Mas, então, como Eusébio de Queirós explicava a aprovação da segunda lei anti-tráfico – e a repressão, que se seguiu, aos traficantes?
Diz ele:
“Sejamos francos: o tráfico no Brasil prendia-se a interesses, ou para melhor dizer, a presumidos interesses dos nossos agricultores; e em um país em que a agricultura tem tamanha força, era natural que a opinião pública se manifestasse em favor do tráfico; a opinião pública que tamanha influência tem, não só nos governos representativos, como até nas próprias monarquias absolutas. O que há para se admirar que nossos homens políticos se curvassem a esta lei da necessidade? O que há para admirar em que nós todos, amigos ou inimigos do tráfico, nos curvássemos a esta necessidade? Senhores, se isso fosse crime, seria um crime geral no Brasil.”
O tráfico existira porque os senhores de escravos eram a favor do tráfico. Mas, então, o que mudara em 1850?
“… a princípio”, disse Eusébio de Queirós, “acreditando que na compra do maior número de escravos consistia o aumento de seus lucros, os nossos agricultores, sem advertirem no gravíssimo perigo que ameaçava o país, só tratavam da aquisição de novos braços, comprando-os a crédito, a pagamentos de três e quatro anos, vencendo no intervalo juros mordentes.
“Ora, é sabido que a maior parte desses infelizes são ceifados logo nos primeiros anos pelo estado desgraçado a que os reduzem os mal tratos da viagem, pela mudança de clima, de alimentos, e de todos os hábitos que constituem a vida.
“Assim, os escravos morriam, mas as dívidas ficavam, e com elas os terrenos hipotecados aos especuladores, que compravam os africanos nos traficantes para os revender aos lavradores. (Apoiados.) Assim a nossa propriedade territorial ia passando das mãos dos agricultores para os especuladores e traficantes. (Apoiados.) Esta experiência despertou os nossos lavradores, e fez-lhes conhecer que achavam sua ruína onde procuravam a riqueza (apoiados), e ficou o tráfico desde esse momento completamente condenado”.
E o ministro do Império acrescenta:
“Seus dias estavam contados, e o único merecimento que tivemos foi o de ter conhecido e aproveitado com energia a ocasião para o reprimir; mas com a revolução que se havia operado nas ideias, na opinião pública do país, mais dia menos dia, qualquer que fosse a política, qualquer que fosse o Ministério, havia de ser sinceramente repressor do trafico, como nós fomos” (cf. Annaes da Câmara dos Deputados, 16/07/1852, p. 249).
Em suma, nem todo senhor de escravos é igual ao outro – na verdade, a propriedade da terra estava em risco, ameaçada pelo enriquecimento dos especuladores e traficantes, que correspondia ao endividamento dos proprietários.
Mas, por que Eusébio de Queirós fala em “gravíssimo perigo que ameaçava o país”?
Porque “o comércio era estrangeiro. (…) não só o comércio, como as casas bancárias, estavam em mãos de portugueses, como dessa nacionalidade já haviam sido os maiores importadores de negros até 1853”. Em 1864, doze anos após o discurso de Eusébio de Queirós na Câmara, ainda, “a grande maioria das casas comerciais e bancárias, a cujas mãos se entregavam os fazendeiros em momentos de aperto, era de fato portuguesa” (cf. Vicente Licínio Cardoso, “À Margem da História do Brasil”, 2a edição, 1938, CEN, pp. 143-144, grifo nosso).
A desnacionalização da terra – do território – tornara-se o problema de fundo na questão do tráfico de escravos. Mas esse era um aspecto extremo do problema: na verdade, o tráfico, os recursos que ele movimentava, mantinham o comércio e o sistema bancário em mãos externas.
ANTECEDENTES
Há, ainda, sobre a questão do tráfico, algo a acrescentar.
O tráfico interatlântico de escravos fora proibido, no Brasil, em 1831, poucos meses após a abdicação de D. Pedro I.
Existe uma historiografia que aponta essa primeira lei como “lei para inglês ver”, porque ela jamais foi respeitada, apesar de, realmente, ter sido uma exigência dos leoninos e impopulares “acordos” de 1826/1827, firmados por D. Pedro I com a Inglaterra, para que esta reconhecesse o Brasil como país independente – a rendição às exigências inglesas foi, aliás, uma das causas da queda do imperador, talvez a causa fundamental.
No entanto, essa forma de tratar a questão – “lei para inglês ver” – passa por cima da luta e dos debates daquela época.
2
Em 1831, o grande adversário do tráfico de escravos era Francisco Gê Acayaba de Montezuma, deputado pela Bahia, depois senador, ministro da Justiça, ministro das Relações Exteriores – e, ainda, plenipotenciário do Brasil em Londres.
Presumimos a razão porque Montezuma é tão esquecido, em geral, na historiografia: ele não era branco. Aqui não estamos supondo que o motivo seja, simplesmente, racista, ainda que alguma dose de racismo deveria (e deva) existir. Mas nos parece que a principal dificuldade, assim como no caso de Gonçalves Dias e Machado de Assis, é explicar como um negro – ou mulato – conseguiu, no Império, em uma sociedade escravagista, conquistar tanta proeminência, a ponto de se tornar, em 1854, visconde de Jequitinhonha “com grandeza” (ele recusara, antes, o título de “barão de Cachoeira”, com o qual o primeiro imperador quis homenageá-lo, por sua participação na Guerra da Independência).
Realmente, seria inexplicável, se partíssemos do pressuposto de que “o fato dominante e mais rico em consequências” na formação do Brasil fosse “a tentativa de implantação da cultura europeia” (cf. Sérgio Buarque de Holanda, op. cit., p. 31).
Esse tipo de juízo (ou de preconceito) subestima – e até apaga – a contribuição dos negros na História política do país. Alguns até admitem que, no campo cultural, essa contribuição foi – e é – decisiva. Ou que, na economia, a força de trabalho que construiu o país foram os escravos. Seria difícil negar coisas tão evidentes.
Mas, quando se passa ao campo da historiografia política, a contribuição histórica dos negros, em geral, desaparece ou é apagada, com exceção de alguns abolicionistas da segunda metade do século XIX (Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio).
No entanto, a ideia de que a História do Brasil, do ponto de vista político, é a história de alguns brancos copiando instituições europeias, que seriam “artificiais” em nosso país, não passa de uma “posição idealista [que] não leva em conta que a presumida artificialidade dos princípios doutrinários importados e das instituições que eles organizaram no Brasil, alcançavam satisfatória funcionalidade no reproduzir e manter os interesses do bloco de classes hegemônico” (cf. Manoel Maurício de Albuquerque, Pequena História da Formação Social Brasileira, Graal, 1981, p. 430).
Acrescentemos que, para que essas instituições cumprissem esse papel, era impossível que fossem compostas exclusivamente por uma casta branca – pois o fato definidor da nacionalidade, não importa a inconsciência que se tenha sobre ele, é a entrada dos negros como parte do país e a miscigenação que se seguiu.
Apesar disso, desde a “segunda metade do século XIX”, “uma corrente (…) deteve-se na crítica ao artificialismo determinado pela excessiva dependência dos ideólogos brasileiros em relação aos padrões importados da Europa. (…) a transposição quase mecânica de formas de comportamento social, seria a explicação mais profunda às dificuldades opostas à formação de uma consciência nacional” (idem, ibidem).
Essa posição é de uma superficialidade desastrosa – ou, melhor dizendo, reacionária. Com algumas consequências que evidenciam esse reacionarismo.
Por exemplo, é pouco destacado – pelos historiógrafos – que o segundo dirigente do partido de Bento Gonçalves durante a Guerra dos Farrapos foi o mulato José Mariano de Matos. Sobre isso, sabemos mais pelo que dizem seus inimigos farroupilhas. Por exemplo, Antônio Vicente da Fontoura, que atribui a apresentação do projeto de abolição dos escravos, por José Mariano, na Constituinte de Alegrete, à intenção de sabotar os farroupilhas:
“É de saber-se que numa das sessões, José Mariano, como representante e definidor dos princípios a que se atinham os fiéis de Bento Gonçalves, apresentou à assembleia um projeto que abolia o cativeiro (…). A minoria, acaudilhada por Antonio Vicente, opôs-se, irredutível e fera, deixando-nos patente, este, com a sua costumeira, penalizadora truculência, as frágeis razões em que se apoiava, para obstar a ‘liberdade geral dos escravos’. (…) Em ‘Diário’ que ia escrevendo, altura há em que Antonio Vicente alude a este episódio parlamentar. Depois de referir-se ‘à alma vil e fraca do mulato José Mariano‘ e ‘ao mofino Bento‘, ‘dous demônios‘, ‘desprezados de todo homem decente‘, assevera que o plano emancipador apresentado por ‘esse mulato‘, ‘em plena assembleia‘, tinha ‘o fim sinistro de tudo confundir para, no inicio da geral consternação, roubar-nos mais amplamente e evadir-se para o país vizinho. Este pensamento meu (…) não é um exaltamento de ódio contra esse monstro: é a ideia bem combinada do resultado que teve o debate que na assembleia sustentei contra tão impolítica e monstruosa indicação, e que para fazer-me calar, se levantaram todos os deputados da mazorca, sem dúvida iniciados no diabólico mistério de darem uma morte inglória à jovem República, que por suas maldades havia tocado às bordas do abismo‘.” (cf. Alfredo Varela, História da Grande Revolução, 6o volume, Livraria do Globo, 1933, Porto Alegre, pp. 16-17).
[NOTA CL: Fontoura chamava de “mazorca” aos farroupilhas da “maioria”, liderados por Bento Gonçalves. Os farrapos estavam divididos em dois partidos: o da “maioria” (Bento Gonçalves, José Mariano, Domingos José de Almeida) e o da “minoria” (Fontoura, Canabarro). O fato de José Mariano não ser gaúcho – era carioca – não parece, jamais, ter sido um problema para qualquer das facções farroupilhas. Mas ser mulato, e mulato de ideias abolicionistas, era demais para o partido da minoria, a julgar pelas anotações de Fontoura. V. o seu Diário: de 1º de janeiro de 1844 a 22 de março de 1845, EDUCS, 1984.]
Nos últimos tempos, este aspecto da vida de José Mariano – sua participação na Guerra dos Farrapos – tem sido mais estudado. Menos destacado, ainda hoje, é que José Mariano, após o fim da Guerra dos Farrapos, foi ajudante-geral de Caxias na Guerra do Prata (1851-1852), general do Exército e ministro da Guerra do Império (1864).
1831
Voltemos a Montezuma.
Relata Calógeras:
“Montezuma, a 5 de agosto [de 1831], requereu a vinda desse projeto à discussão, tais as informações que da Bahia lhe chegavam. Dava notícias curiosas sobre a importação de gente de cor. Os Estados Unidos, contava ele, haviam formado na costa d’África uma república, Libéria, para a qual enviavam os libertos; nem todos, porém, queriam ser encaminhados para ali, e então com auxílios, donativos, e mais presentes, exportavam-nos para S. Domingos e para o Brasil” (cf. J. Pandiá Calógeras, A Política Exterior do Império, Volume III, SF, Brasília, 1998, ed. fac-similar daquela de 1933, p. 324).
O mesmo historiador expõe o conteúdo da Lei de 7 de novembro de 1931:
“Aos importadores se aplicavam as penas corporais do artigo 179 do Código Criminal e a multa de 200$ por escravo importado, além de pagarem as despesas de reexportação para a África”.
[NOTA CL: O dispositivo, acima aludido, do Código Criminal do Império do Brasil, de 1830, tinha a seguinte redação: “Artigo 179. Reduzir à escravidão a pessoa livre que se achar em posse da sua liberdade. Penas – de prisão por três a nove anos, e de multa correspondente à terça parte do tempo; nunca porém o tempo de prisão será menor que o do cativeiro injusto, e mais uma terça parte.”]
“Definiam-se os importadores, para os fins penais da lei. Apreendido fora dos portos do Brasil pelas forças nacionais algum navio negreiro, proceder-se-ia como se a apreensão fosse no território do Império. Quem denunciasse, ou facilitasse a apreensão, ou a efetuasse, ou, perante o juiz de paz ou qualquer autoridade local, noticiasse o desembarque de gente livre como escravos, de modo a serem apreendidos, receberia 30$ por pessoa apreendida, pagos pela Fazenda pública.
“Comandante, oficiais e tripulação de barco apreensor teriam direito ao produto da multa, partilhada segundo o regimento de marinha.”
Em seguida, a discussão do parlamento voltou-se para as formas de viabilizar o cumprimento dessa lei.
Primeiro, o trabalho escravo nos arsenais do governo foi substituído por trabalho assalariado (ordem do dia do arsenal de guerra de 09/01/1832).
Segundo, discutiu-se a imigração e naturalização de colonos, começando pela naturalização dos alemães da colônia de São Leopoldo, Rio Grande do Sul (6 de julho de 1832).
PILHAGEM
O problema da não aplicação da primeira proibição ao tráfico não estava na lei, como disseram alguns. Legalmente, todos os escravos que entraram no Brasil entre o fim de 1831 e setembro de 1850 (lei Eusébio de Queirós) eram livres. Portanto, o problema estava (ou, melhor, esteve) na correlação de forças que sucedeu à abdicação de D. Pedro I.
O próprio Eusébio de Queirós, como vimos, analisou esse problema, ao descrever uma espécie de virada na consciência dos fazendeiros, devido a uma questão bastante objetiva: o açambarcamento de propriedades rurais pelos especuladores e traficantes portugueses de escravos.
Mas não é possível examinar essa questão sem levar em conta a situação política, interna e externa, do Brasil de então.
Pois, enquanto o parlamento discutia como aplicar a lei anti-tráfico de 1831, os ingleses perpetravam o mais despudorado roubo de navios brasileiros, sob o pretexto, exatamente, de combater o tráfico de escravos.
Calógeras, a quem não se pode acusar de anti-inglês, frisa que “já em 1815 [portanto, antes da Independência] tais abusos haviam motivado a convenção de 21 de janeiro, pela qual 300.000 libras esterlinas de indenização tinham sido estipuladas. Após 1831, continuou a mesma prática. Na discussão do orçamento de estrangeiros para 1833, em sessão de 20 de julho, largo debate se travou sobre as tropelias dos navios incumbidos de fiscalizar a observância do tratado Gordon-Inhambupe e Santo Amaro [os marqueses de Inhambupe e Santo Amaro foram os negociadores brasileiros nos “acordos” de 1826/1827; o negociador inglês chamava-se Robert Gordon]. A correspondência diplomática entre Rio e Londres traduz a tensão a que chegaram, de um lado, as reclamações e protestos do Brasil, do outro, o descaso e a sistemática recusa do gabinete de St. James” (Calógeras, op. cit., p. 327).
Um relato do futuro marquês de Abrantes – o baiano Miguel Calmon du Pin e Almeida – é significativo, sobretudo considerando que seu autor era uma das poucas mentalidades industrialistas no parlamento daquela época:
“Nada menos de 19 navios brasileiros haviam sido apresados, nas paragens africanas a Norte do Equador. Tão injustas as capturas, em alguns casos, que a comissão mista tinha logo relaxado os barcos, mesmo no período em que nenhum brasileiro se sentava nesse tribunal. Outros apresamentos haviam sido mantidos, contra o direito e contra o prescrito na convenção e nos anexos de 28 de julho de 1817. Desde 1827, durava o protesto brasileiro. Sem êxito, entretanto. Lord Dudley, lord Aberdeen, lord Palmerston, surdos a todas as reclamações, recusavam sistematicamente. ‘Os ministros sucedem-se aí uns aos outros; e posto que mudem de princípios políticos, são infelizmente invariáveis quanto ao ponto de não reparar o dano sofrido pelos nossos concidadãos’.
“Relatou, então, o fundamento dos pedidos. Uns [navios] haviam sido tomados em caminho ou muito antes da costa africana. Outros, não tinham escravos a bordo nem os utensílios precisos para os receber. Um terceiro grupo, era os dos apresados por navios mercantes, cujos comandantes não tinham graduação militar, contra o estipulado nas instruções de 1817.
“Amargamente, lastimava o futuro Abrantes não possuir o Brasil os meios militares necessários para se fazer respeitar pela força, se preciso. Por fraqueza, tinha o Império de submeter-se. Aventasse o governo, contudo, um encontro de contas entre nossas reclamações e os prejuízos ingleses no Prata. Nomeasse uma comissão encarregada de liquidar as presas de Serra Leoa” (Calógeras, op. cit., pp. 328-329).
[NOTA: A Convenção de 1817, de Portugal com a Inglaterra, que o Primeiro Reinado aceitara manter, estabelecera duas “comissões mistas” – uma no Rio de Janeiro, outra em Serra Leoa – para julgar os apresamentos de navios. Quanto aos “prejuízos ingleses no Prata”, é menção às exigências do governo da Inglaterra de que o Brasil deveria indenizar supostos danos econômicos aos ingleses, ocorridos na Guerra da Cisplatina.]
Para serem apreendidos, não era preciso prova de que os navios brasileiros transportavam escravos ou estavam destinados a isso. Bastava a “convicção” dos ingleses:
“Nada demovia a Inglaterra de seu propósito de não pagar as indenizações devidas, pelos apresamentos reputados maus pelas comissões mistas. Isto, realmente, era intolerável, máxime quando o pretexto invocado era ‘a convicção de que esses navios se destinavam a uma empresa ilegal’. Ora, em Serra Leoa, a maioria dos comissários era inglesa, pois os brasileiros sempre andavam desfalcados em seu número” (Calógeras, op. cit., p. 332).
Não é verdade que a Inglaterra apreendia apenas (nem principalmente) navios brasileiros que faziam o tráfico – a maioria destes, inclusive, estava sob bandeira portuguesa. Qualquer pretexto servia para o apresamento de navios brasileiros. De 1840 (portanto, antes do Bill Aberdeen, que somente foi aprovado em 1845) a 1848, a marinha inglesa apresou 625 navios, sem nenhum efeito sobre o tráfico de escravos – pelo contrário, este aumentou. E de 1849 a 1851, mais 90 navios.
Até mesmo Nabuco, apologista da Inglaterra nessa questão, não pôde deixar de registrar:
“… a Inglaterra fez com uma nação fraca o que não faria contra uma nação forte. Uma das últimas carregações de escravos para o Brasil, a dos africanos chamados do Bracuhy, internados em 1852 no Bananal de São Paulo, foi levada à sombra da bandeira dos Estados Unidos. Quando os cruzadores ingleses encontravam um navio negreiro que içava o pavilhão das estrelas deixavam-no passar. A atitude do Parlamento inglês votando a lei que deu jurisdição aos seus tribunais sobre navios e súditos brasileiros, empregados no tráfico, apreendidos ainda mesmo em águas territoriais do Brasil, teria sido altamente gloriosa para ela se essa lei fizesse parte de um sistema de medidas iguais contra todas as bandeiras usurpadas pelos agentes daquela pirataria” (Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, Abraham Kingdon e Ca., Londres, 1883, pp. 91-92).
Aqui, Nabuco apoia a extensão de uma lei inglesa ao território do Brasil (“apreendidos ainda mesmo em águas territoriais do Brasil”) – tal como alguns, hoje, apoiam a extensão do poder norte-americano ao território de outros países – e omite que os escravos “libertados” pelos ingleses eram conduzidos para morrer de trabalhar nas colônias inglesas da África e do Caribe. Além disso, esquece, também, algo que é ressaltado no protesto do ministro de Negócios Estrangeiros do Império, em 1845, sobre o fenomenal critério do governo inglês:
“… casos, como por exemplo a simples existência de duas caldeiras, posto que cada uma delas de tamanho ordinário, a bordo de um navio, não poderiam, sem violação das regras mais vulgares de direito, reputar-se nem sequer como indícios remotíssimos de que o navio se destinava ao tráfico, entretanto, nos termos das propostas, cada um destes casos autorizaria, só por si, a condenação do navio e de toda a carga, com prejuízo e total distribuição do comércio lícito dos súditos brasileiros” (cf. Antônio Paulino Limpo de Abreu, “Protesto do Governo Imperial contra o Bill Aberdeen, 22/Outubro/1845”, J. Villeneuve e Comp., Rio, 1845, p. 6).
Em outro trecho, frisa o ministro brasileiro: “… não há muitos anos ainda a mesma Inglaterra não se reputava infamada em negociar em escravos africanos. (…) Escravos índios conserva presentemente a Grã-Bretanha. Rússia, França, Espanha, Portugal, Estados Unidos da América do Norte, Brasil, e outras potências ainda não aboliram a escravidão” (cf. op. cit., p. 10).
Mas os navios apresados eram os brasileiros.
3
Uma das mais nauseabundas abordagens da questão do tráfico de escravos na primeira metade do século XIX é aquela que atribui aos ingleses – isto é, ao Império Britânico – motivos humanitários para as ações de pirataria contra navios brasileiros.
Ele próprio um adversário do tráfico, Ferreira Soares, que publicou em 1865 um dos livros mais importantes para a compreensão do Segundo Reinado – provavelmente o primeiro estudo estatístico sério da economia brasileira – analisa essa época de outro modo:
“Os cruzadores ingleses, desde que o Brasil comunicou à Grã-Bretanha a cessação do tratado comercial de 19 de Fevereiro de 1810, ratificado depois da nossa independência pelo de 29 de Agosto de 1825, redobraram de esforços na captura dos barcos negreiros, que todos navegavam sob a bandeira portuguesa; e lord Aberdeen, sem dúvida com o fim de nos compelir a um novo tratado de comércio com a Inglaterra, fez promulgar o bill de 1845, que é conhecido com a denominação do seu autor” (Sebastião Ferreira Soares, “Elementos de Estatística Comprehendendo a Theoria da Sciencia e a sua Applicação à Estatística Commercial do Brasil”, Tomo I, Typographia Nacional, Rio, 1865, pp. 224-225, grifo nosso).
O Bill Aberdeen “legalizava” a apreensão de navios brasileiros, pela marinha inglesa, mesmo em águas brasileiras.
Mas o que eram os tratados de 1810, que a Inglaterra desejava que permanecessem intocados?
Esses tratados – assinados pelo governo de D. João VI e cuja prorrogação o Brasil rejeitou, finalmente, em 1844 – ficaram conhecidos pela submissão à Inglaterra. Esta, aliás, é uma das unanimidades da historiografia brasileira.
Um contemporâneo da assinatura desses tratados, Hipólito José da Costa, denunciou seu caráter servil.
Mas até mesmo Varnhagen, com todo o seu reacionarismo – e sempre um bajulador da monarquia (inclusive de D. João VI: afinal, este era avô de D. Pedro II, que lhe deu o título de visconde de Porto Seguro) -, escreve que esses tratados “infelizmente não fazem em geral muita honra à diplomacia portuguesa dessa época, como passamos a manifestar, não sem grande mágoa, ao ver que os deveres da imparcialidade como historiador nos obrigam neste momento a pôr de parte afeições a indivíduos e reputações, com que já por outro lado muito desejáramos não contender. Gema pois o coração, não a consciência pungida”. Em seguida, afirma que o negociador português “admitiu estipulações contrárias à dignidade nacional, que tanto se deve zelar em tais documentos” (cf. Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil, Tomo Segundo, Laemmert, Rio, 2ª edição, 1877, p. 328).
Não é pouca coisa para Varnhagen.
Oliveira Lima, um historiador do qual pode-se dizer muita coisa, menos que fosse nacionalista ou antimonarquista, escreve sobre o mesmo assunto:
“O tratado de 1810 foi franca e inequivocamente favorável á Grã Bretanha (…). As condições exaradas no convênio de 1810 significavam a transplantação do protetorado britânico [sobre Portugal], cuja situação privilegiada na metrópole se consagrava na nossa esfera econômica e até se consignava imprudentemente como perpétua. A falta de genuína reciprocidade era absoluta e dava-se em todos os terrenos. (…) Hipólito [José da Costa] lembrava bem que em tudo levava vantagem o negociante inglês, na justiça e severidade com que no seu país se fazia a cobrança dos direitos, quando no Brasil estava a porta sempre aberta a todos os abusos e malversações, prejudicando a uns a condescendência criminosa exibida para com outros” (cf. Oliveira Lima, Dom João VI no Brasil, Primeiro Volume, Rio, 1908, pp. 375, 383-384).
Não eram apenas as tarifas alfandegárias, que eram menores para os produtos ingleses do que para os produtos portugueses – como, em geral, mencionam os livros didáticos. Até mesmo os súditos ingleses, residentes em Portugal e no Brasil, só poderiam ser processados e julgados por tribunais ingleses – sem nenhuma reciprocidade, obviamente: os portugueses e brasileiros residentes na Inglaterra, ao contrário, responderiam a tribunais ingleses.
Um aspecto econômico importante dessa vassalagem é referida por Ferreira Soares:
“Parte, pois, sem a menor dúvida, o aniquilamento da marinha mercante de longo curso do Brasil, do nefasto tratado de 1810; porquanto fora de utilidade sem dúvida a liberdade do comércio marítimo, mas nunca permitindo-se aos navios estrangeiros maiores favores do que os concedidos aos nacionais: infelizmente ainda hoje existem homens ilustrados que trabalham pelo aniquilamento da nossa cabotagem imbuídos por falsos raciocínios de liberdade comercial ilimitada; como se a liberdade mercantil possa querer a destruição dos nacionais e elevação dos estrangeiros” (cf. Ferreira Soares, op. cit., p. 75).
Como este autor é hoje desconhecido da maioria dos brasileiros – inclusive em seu Estado-natal, o Rio Grande do Sul, onde sua posição anti-farroupilha parece não lhe ter favorecido o conhecimento da obra – reproduzimos a sua argumentação sobre esse lado da questão:
“A marinha mercante de Inglaterra deve a sua prosperidade a leis protetoras, e principalmente ao ato de Cromwell sobre a navegação, o qual proibia que se içasse a bandeira da Grã-Bretanha em navio que não fosse construído nos seus estaleiros, e por esta forma animava e como que forçava a construção naval; a liberdade ampla só tem sido adotada pelas nações cultas, quando já as suas indústrias não podem achar competidores que as suplantem pela concorrência; não queiramos principiar por onde outros acabam.
“Sou seguidor dos princípios de liberdade comercial; mas, estudando os fatos locais do meu país não posso deixar de opor-lhe algumas restrições, somente tendo por fim libertar o nosso comércio e indústrias do predomínio estrangeiro. O maior cancro que corrói e dilacera as melhores instituições administrativas do Brasil é o predomínio que exerce o comércio estrangeiro no país” (Ferreira Soares, op. cit., pp. 75-76-77).
Isto foi publicado, lembramos aos leitores, em 1865.
Sobre a lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico em 1850, com sucesso, escrevia Ferreira Soares:
“A cessação do tráfico da escravatura se operou completamente dentro de um ano, fazendo o governo do Brasil, por sua livre vontade e com o concurso dos brasileiros, mais em um só ano que todo o poder dos canhões da altiva Inglaterra no decurso de 20 anos, provando-se assim ao mundo civilizado que mais pode a vontade de nossa nacionalidade, que toda a pólvora e canhões da dominadora dos mares” (cf. op. cit., p. 225).
Ferreira Soares parece ter razão sobre os motivos dos ingleses. Desde o tratado de 19 de fevereiro de 1810 havia uma cláusula para a extinção do tráfico (artigo X). Na época, a principal preocupação dos ingleses era a sua expansão na África – por isso, o texto desse tratado, depois de manifestar intenções nobilíssimas, proíbe aos traficantes portugueses de escravos operar fora das colônias lusitanas.
De 1810 até a rejeição dos tratados com a Inglaterra, em 1844, a atividade inglesa contra o tráfico foi esporádica – e sempre com a finalidade de carrear trabalhadores para suas colônias.
Somente depois de 1844, os ingleses passam a atacar sistematicamente os navios brasileiros, mesmo aqueles sobre os quais era impossível provar que estivessem a serviço de traficantes de escravos. O Bill Aberdeen, ressaltamos outra vez, somente foi emitido pelos ingleses em 1845.
REPERCUSSÃO
Ao contrário do que se diz – e bem mais perto do que disse Eusébio de Queirós em 1852, no discurso que citamos – as pressões inglesas não serviram para apressar o fim do tráfico, mas, pelo contrário, para postergá-lo.
O que é evidente pela discussão, em 1834, sobre a “repatriação” de escravos que entravam, contra a lei, no Brasil.
Tratava-se, na verdade, de enviá-los a colônias inglesas na África, em especial a Serra Leoa, às custas do governo brasileiro. Em 1834 a discussão no parlamento era, precisamente, sobre a aprovação de créditos para essa “repatriação” (cf. Calógeras, A Política Exterior do Império Vol. III, ed. cit., p. 332).
Quando o ministro da Justiça, Aureliano de Sousa e Oliveira Coutinho, visconde de Sepetiba, citou uma nota do governo inglês, que queria a ampliação do “acordo” de 1826, desabou uma tempestade sobre o parlamento brasileiro. Um dos parlamentares levantou: “Que vantagem existia em continuarem os brasileiros a ser julgados por tribunais ingleses? Se a nação era incapaz de governar-se por si mesma, por defeitos na legislação, apontassem as falhas para serem corrigidas” (idem, p. 333).
“A opinião parlamentar”, observa Calógeras, “era positivamente contrária a qualquer acordo”.
Para completar esse esboço do quadro de tensão – embora minimamente – cumpre mencionar algo que depois Luís Gama ressaltaria, na defesa de um de seus clientes (“O escravo que mata o senhor, seja em que circunstância for, mata sempre em legítima defesa”):
“… começavam os escravos a ser considerados como um perigo social, pela frequência dos assassínios praticados em seus senhores. A 26 de fevereiro de 1834, Aureliano declarava em aviso ao juiz de direito da 4ª comarca de S. Paulo, que não deferira a Regência o recurso de graça de um réu escravo condenado à pena última, pois tais crimes, por sua repetição, ameaçavam a ordem social ‘e deve à sentença dar-se pronta execução, e que para o futuro assim se deverá praticar com quaisquer réus de igual natureza, independente de subirem à presença da mesma Regência as sentenças na conformidade do citado Decreto’ de 11 de abril de 1829” (Calógeras, op. cit. p. 333).
Este último era um decreto de D. Pedro I, com o seguinte texto:
“Tendo sido mui repetidos os homicídios perpetrados por escravos em seus próprios senhores, talvez pela falta de pronta punição, como exigem delitos de uma natureza tão grave, e que podem até ameaçar a segurança pública, e não podendo jamais os réus compreendidos neles fazerem-se dignos de Minha Imperial Clemência: Hei por bem, Tendo ouvido o Meu Conselho de Estado, ordenar, na conformidade do art. 2º da Lei de 11 de Setembro de 1826, que todas as sentenças proferidas contra escravos por morte feita a seus senhores, sejam logo executadas independente de subirem à Minha Imperial Presença. As autoridades a quem o conhecimento deste pertencer o tenham assim entendido e o façam executar. Palácio do Rio de Janeiro em onze de Abril de mil oitocentos e vinte e nove, oitavo da Independência e do Império. Com a rubrica de Sua Majestade Imperial” (cf. Actos do Poder Executivo de 1829, Parte II, p. 263).
Em síntese, era negado aos escravos condenados à morte, independente do caso concreto – dos motivos e circunstâncias de sua ação – o direito à última instância que poderia comutar a sua pena: o próprio governo.
No entanto, essa espécie de “severidade” – decretada em 1829, seis décadas antes da Abolição – redundou em pouco ou nenhum resultado, como ressaltariam, depois, os abolicionistas.
É justo, também, aqui, mencionar a hipocrisia do governo escravista, que descobriu formas de transformar homens que eram livres de acordo com a lei do próprio Império, em escravos. Aos africanos entrados ilegalmente no país, por contrabando dos traficantes, “mandava o aviso de 27 de agosto [de 1834] empregar nas obras públicas das províncias. (…) Também ia crescendo o vulto dos gastos com os africanos apreendidos, por importação ilícita. A 9 de outubro, vendo o acúmulo deles na Casa de Correção, Aureliano ordenou fossem arrematados seus serviços. Era uma disfarçada escravidão. Como reconhecê-los mais tarde, em meio da massa de outros negros, ignorantes e sem apoio, apesar da existência do curador deles?” (Calógeras, op. cit., p. 334).
A maior parte de nossa historiografia sobre a escravidão é lamentavelmente incompleta, no que se refere aos atos do governo imperial desde a Independência até a Lei Eusébio de Queirós (1850). Às vezes se passa por cima, com alguma facilidade, das contradições que existiam entre os homens que governavam o Império, como se a existência de um “bloco hegemônico” – de uma classe ou aliança de classes no poder – apagasse ou anulasse esses conflitos. Assim, também é fácil simplificar as relações do Brasil com a Inglaterra e transformá-las em simples submissão do primeiro à segunda.
Seria mais fácil, mas não seria útil. Porque não é verdade.
Somente para apresentar um exemplo quanto aos problemas da historiografia: é algo sensível que necessitamos de um estudo das leis, decretos e outros dispositivos jurídicos dessa época. O acesso ao texto deles não apresenta dificuldades (para uma lista, embora incompleta, v. Furtado de Mendonça, Repertorio Geral ou Indice Alphabetico das Leis do Imperio do Brasil, Laemmert, Rio, 1850, Tomo Primeiro, p. 23-26 e Tomo Segundo, pp. 573-584).
ESPECULAÇÃO
Vamos dar mais um salto no tempo.
Joaquim Nabuco, na biografia de seu pai – Nabuco de Araújo, senador, ministro da Justiça dos gabinetes do marquês do Paraná e do então marquês de Caxias – faz algumas observações que não fogem ao quadro da historiografia esboçado por Licínio Cardoso, mas que são bastante importantes, sobre as crises econômicas que marcaram o final do Império:
“Até então o espírito comercial e industrial do país parecia resumir-se na importação e venda de africanos. Com a extinção [do tráfico] deu-se uma transformação maravilhosa. ‘Este fato, como é sabido’, diz o Relatório da Comissão de Inquérito sobre o meio circulante em 1860, ‘teve um imenso alcance, mudando completamente a face de todas a coisas na agricultura, no comércio, na indústria. Os capitais que eram empregados nessas ilícitas transações afluíram à praça, do que resultou uma baixa considerável nos descontos; o dinheiro abundava e uma subida extraordinária teve lugar nos preços das ações de quase todas as companhias’ ” (Joaquim Nabuco, “Um Estadista do Império”, Tomo I, Garnier, 1897, p. 255).
A Comissão de Inquérito de 1859/1860 era anti-industrialista – ou seja, correspondia aos interesses escravagistas. É notável a sua má vontade com os juros baixos (“uma baixa considerável nos descontos”) neste trecho, citado por Nabuco, embora, em parte, porque não eram principalmente os senhores de escravos que deles se beneficiaram. O que não quer dizer que a especulação financeira não fosse real. Mas esta era um produto direto da ociosidade escravista, depois do fim do tráfico: o dinheiro antes empatado neste, não foi aplicado em empreendimentos produtivos, com exceções – algumas brilhantes, como as empresas produtivas de Mauá.
Continua Nabuco:
“Daí a criação de novos bancos, e, com a criação de um banco de emissão, o papel-moeda abundante de que carecia a especulação. Já sobre as ações do Banco do Brasil tinha havido grande jogo de praça em que se perderam e se fizeram rapidamente muitas fortunas”.
Nabuco cita, então, um trecho de outro documento, o relatório da comissão de inquérito instituída para apurar as causas da crise de 1864: “Se a febre do jogo não tocou então ao extremo do delírio, foi todavia sobremodo intensa e grandes perdas causou aos incautos ou ignorantes que se deixavam arrastar pelo prospecto de consideráveis lucros” (idem, p. 256).
O comentário de Joaquim Nabuco é: “a época era caracterizada pela ânsia de enriquecer de repente, por um golpe de audácia”.
4
Joaquim Nabuco cita o depoimento de um representante da empresa M. Wright & Cia, incluído no relatório da comissão de inquérito de 1859, nomeada pelo ministro da Fazenda, Ângelo Moniz da Silva Ferraz, barão de Uruguaiana, para investigar a crise de 1857:
“Quando finalmente acabou de todo a introdução dos africanos, o país achou-se senhor dos recursos que até então tinham sido aplicados ao pagamento dos negros importados. Os costumes dos brasileiros, pela maior parte, eram simples no extremo, de uma frugalidade exemplar. Não era possível que a cobiça comercial, esse monstro corruptor, corrompesse por um coup de main os bem fundados hábitos de séculos. Seguiu-se por consequência que não havendo necessidades verdadeiras ou artificiais em que empregar o produto do excesso de nossa exportação, veio-nos de retorno metal. Mal avisados financeiros que não profundavam abaixo da superfície logo julgaram que se o país achava-se senhor desse metal, era porque precisava dele para servir de meio circulante.
“Nunca houve engano mais fatal. Tinha vindo como mercadoria em retorno do excesso de nossa exportação e males indizíveis tinha poupado ao nosso país, se se tivesse conservado como mercadoria e se tivesse sido exportado na mesma forma. Mas não. Prevaleceram outras ideias.
“Fora induzido o governo, guiado por maus conselhos, a cunhar esse metal e desta maneira a facilitar a sua introdução como um veneno ativo na veias da circulação. Não contentes com esse grande mal que faziam ao país, suscitou-se a malfadada lembrança de bancos de emissão. Não era suficiente para satisfazer o maldito apetite do monstro, cobiça comercial, o cunhar o metal, que aliás se deveria ter conservado relativamente inócuo no seu caráter de mercadoria. Não; o veneno não era assaz ativo, a corrupção moral e social marchava lentamente, era preciso outro estimulante (…). E podemos afirmar que a história do mundo, a não ser o episódio na história da Espanha na época em que se fizeram as famosas descobertas de ouro e prata nas suas colônias deste continente, não apresenta outro exemplo de uma desmoralização social tão repentina, de uma corrupção de hábitos, santificados por séculos de duração, tão assustadora como temos presenciado no Brasil de 1854 para cá: um mal que reclama o mais assíduo cuidado de todo patriota, para se opor de alguma maneira uma barreira a esta torrente devastadora, que aliás ameaça no seu curso a ruína de todas as fortunas”.
Era o ponto de vista dos escravagistas. Há, aqui, a confissão de que o antigo modo de viver já não corresponde mais ao Brasil de apenas nove anos após a extinção do tráfico.
Nostálgico, prossegue o depoimento:
“Antes bons negros da costa d’África para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que esquecida da sua própria casa deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filantropia, o fado do nosso escravo feliz. Antes bons negros da costa d’África para cultivar os nossos campos férteis do que todas as teteias da rua do Ouvidor, do que vestidos de um conto e quinhentos mil réis para as nossas mulheres; do que laranjas a quatro vinténs cada uma em um país que as produz quase espontaneamente, do que milho e arroz, e quase tudo que se necessita para o sustento da vida humana, do estrangeiro; do que finalmente empresas mal avisadas, muito além das legítimas forças do país, as quais, perturbando as relações da sociedade, produzindo uma deslocação de trabalho, têm promovido mais que tudo a escassez e alto preço de todos os víveres.
“(…) Demasiada, a ação da grande importação de metal que se seguiu à suspensão do tráfico de negros; quanto mais não é de lastimar que o nosso povo fosse ainda mais envenenado moralmente pela introdução do detestável sistema de bancos de emissão, criatura do monstro – cobiça comercial!” (cit. in Joaquim Nabuco, Um Estadista do Império, Tomo I, Garnier, 1897, pp. 256-258).
PASSADO
Nabuco, apesar de dizer que nesse depoimento “há (…) muita verdade na observação do modo por que desapareceu a antiga frugalidade nacional”, apresenta-o, muito justamente, como “um desafogo do espírito conservador” – isto é, escravista – “que só via perdição nos novos costumes”.
Nabuco, faça-se justiça, não idealiza a escravidão e o tráfico de escravos.
O mesmo não se pode dizer de alguns trechos de certas obras de autores que se consideravam continuadores de Nabuco:
“… a proximidade da Bahia e de Pernambuco da costa da África atuou no sentido de dar às relações entre o Brasil e o continente negro um caráter todo especial de intimidade. Uma intimidade mais fraternal que com as colônias inglesas” (Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, 48ª ed., Global, 2003, S. Paulo, p. 391).
Ou, então, mais ainda, aqui:
“… da antiga ordem econômica persiste a parte pior do ponto de vista do bem-estar geral e das classes trabalhadoras – desfeito em 88 o patriarcalismo que até então amparou os escravos, alimentou-os com certa largueza, socorreu-os na velhice e na doença, proporcionou-lhes aos filhos oportunidades de acesso social. O escravo foi substituído pelo pária de usina; a senzala pelo mucambo; o senhor de engenho pelo usineiro ou pelo capitalista ausente” (idem, p. 51, grifo nosso).
Não foram muitos os ex-escravos que lamentaram a “ausência” do senhor de escravos, após 1888…
Ariano Suassuna, em sua entrevista para o filme O Engenho de Zé Lins, de Vladimir Carvalho, aponta que Gilberto Freyre concebe, essencialmente, o escravo doméstico, aquele que vive na casa-grande, não chegando até a senzala – e, muito menos, até ao escravo do eito.
Com efeito, os contemporâneos da escravidão retrataram um mundo diferente:
“[a população escrava] não pode ser subordinada aos mesmos cálculos [que a população livre], porque concorrem a seu respeito muitas considerações que atuam para que a sua reprodução, em regra geral, seja muito menor que a sua mortalidade” (Ferreira Soares, Elementos de Estatística, Tomo I, Typographia Nacional, Rio, 1865, p. 46, grifo nosso).
“As tábuas mortuárias da quase totalidade da população do Rio Grande do Sul, em relação aos escravos, davam 2,08%, quando a dos livres apresentavam somente 0,85%. As tábuas dos nascimentos dos escravos apresentavam 1,88%, ao mesmo passo que as dos livres, 2,63%.
“A mortalidade das crianças nos escravos davam 30% proximamente; por consequência, entrando em cálculo todos estes fatos, teremos que os escravos no Rio Grande do Sul têm uma diminuição anual constante de 0,76 %, a qual era preenchida até 1850 pelos novos escravos introduzidos” (idem, p. 47).
O autor usa como referência o Rio Grande do Sul, não por ser a sua província natal, mas porque a alimentação dos escravos, nessa parte do Brasil, era considerada melhor que nas outras províncias.
Especificamente em relação ao tráfico, diz Ferreira Soares:
“… de cada 100 escravos que [os senhores] compravam, no fim de três anos, os mais felizes não podiam contar com mais de 33, porque os outros dous terços eram desaparecidos do trabalho pela mortalidade, pela fuga, e pela inutilização do seu organismo; consequências estas, não do mau trato que tivessem de seus senhores, porém do mau tratamento que recebiam a bordo dos navios negreiros, cujos porões eram verdadeiras furnas infernais” (idem, p. 224).
Ainda que o resultado do tratamento por parte dos senhores possa estar subestimado – e, provavelmente, está – isso somente falaria contra o suposto “adocicamento” (no livro de Freyre, as relações entre senhores brancos e mulheres escravas “adoçaram-se”; e, “… desde esses tempos remotos o ‘senhor’ se adoçou em ‘sinhô’, em ‘nhonhô’, em ‘ioiô’; do mesmo modo que ‘negro’ adquiriu na boca dos brancos um sentido de íntima e especial ternura: ‘meu nego’, ‘minha nega’ ”, etc. Convenhamos, é muito “adocicamento”. Mas é importante perceber que, com esses defeitos, e com um autor que, sobretudo após 1964, se tornou algo ridículo, mesmo assim, Casa-grande & Senzala tem méritos – o principal é que Freyre não era um ignorante; além disso, ele concebe o nosso país como nação em formação, o que não é pouca coisa, se considerarmos a maioria dos sociólogos acadêmicos).
DECADÊNCIA
Em 1877, um monarquista, membro do conselho do Imperador e do Partido Liberal, deputado várias vezes pelo Pará, escreveu, ao fim de um livro que pretendia ser um ataque fulminante contra a política dos conservadores: “A decadência financeira é a síntese da decadência em todas as relações sociais” (Tito Franco D’Almeida, A grande política: balanço do Império no Reinado actual, Estudo Político-financeiro, Imperial Instituto Artístico, Rio, 1877, p. 179).
Os remédios que o autor prescrevia para essa decadência – corte de gastos públicos, “equilíbrio” orçamentário, independência da pasta da Fazenda dos partidos (a política econômica deveria ser supostamente “neutra”), demissão de funcionários, privatização de serviços, etc. – estavam à direita da política dos conservadores, e somente serviriam para agravar a decadência.
Mas era verdade que o Estado monárquico estava falido e que o país vegetava na estagnação. O diagnóstico estava correto: a decadência do escravagismo arrastava o Império.
No mesmo momento, os negros – incluídos, nestes, os mulatos – adquiriam uma importância na sociedade brasileira como jamais houvera. Certamente, existiam aqueles casos que Luiz Gama deixaria no ridículo: “Mulato esfolado,/ Que diz-se fidalgo,/ Porque tem de galgo/ O longo focinho;/ Não perde a catinga,/ De cheiro falace,/ Ainda que passe/ Por bráseo cadinho// E se eu que pretecio./ D’Angola oriundo,/ Alegre, jucundo,/ Nos meus vou cortando;/ É que não tolero/ Falsários parentes,/ Ferrem-me os dentes,/ Por brancos passando”.
Em 1867, um representante francês no Rio, o conde de Gobineau, notório racista e amigo íntimo de D. Pedro II, escreveu, em relatório enviado a Paris: “É preciso reconhecer que a maioria do que chamamos de brasileiros compõe-se de sangue mestiço, sendo mulatos e filhos de caboclos de graus distintos. Eles estão em todos os escalões sociais. O Senhor Barão de Cotegipe, atual Ministro das Relações Exteriores, é mulato; no Senado há homens desta categoria; em uma palavra, quem diz brasileiro diz, com raras exceções, homem de cor”.
Cotegipe seria o único voto contra a Lei Áurea, na votação do Senado.
5
A ascensão dos negros, no entanto, não era composta por Cotegipes e “mulatos esfolados”. Nem era automática – ou fácil:
“A guerra do Paraguai, que tantas consequências teria na formação do sentimento brasileiro de unidade e que constituiria a primeira etapa no sentido da desagregação do regime, era um impulso a mais, nos seus efeitos, para a abolição. Ela procede à libertação de milhares de escravos. Ela os eleva na escala social. Diante da morte não há hierarquia social e é frequente soldados negros se destacarem nos episódios da campanha. Um sentimento de autonomia, de emancipação, devia dominar tais elementos.
“De retorno dos campos paraguaios a massa de soldados negros licenciados adquiria uma certa consciência de superioridade. Convivera com brancos e superara e comandara brancos num instante em que o nivelamento humano era mais fundo e mais forte, o do perigo, e trouxera, na semiconsciência, mas fundamentada e sedimentada, a ideia de que podia fazer face ao branco, podia competir com ele. Não é uma pura coincidência, pois, que, de 70 em diante, o número de negros nas profissões liberais tenha crescido” (Nelson Werneck Sodré, Panorama do Segundo Império, CEN, 1939, pp. 73 e 75).
Ele próprio um veterano da Guerra do Paraguai, o grande historiador baiano Manuel Querino (o modelo de Jorge Amado para o Pedro Archanjo, de Tenda dos Milagres) escreveu em 1916:
“Por ocasião da guerra com o Paraguai, o governo da então Província [da Bahia] fez seguir bom número de capoeiras; muitos por livre e espontânea vontade, e muitíssimos voluntariamente constrangidos. E não foram improfícuos os esforços desses defensores da Pátria, no teatro da luta, principalmente nos assaltos à baioneta.
“E a prova desse aproveitamento está no brilhante feito d’armas praticado pelas companhias de Zuavos Baianos, no assalto ao forte de Curuzú, debandando os paraguaios, onde galhardamente fincaram o pavilhão nacional” (Manuel Querino, A Bahia de Outrora, Liv. Prog. Ed., Salvador, 1916, p. 71).
O Exército era, desde 1837, a instituição brasileira mais democrática do ponto de vista étnico (“Desde então, o Exército seria uma instituição formalmente cega à cor da pele, e que levava essa política ao extremo: na fé de ofício padrão não tinha lugar para indicar a cor do soldado e, portanto, o Exército não podia fornecer essa informação básica às autoridades policiais encarregadas da captura de desertores” – cf. Hendrik Kraay, Os companheiros de Dom Obá: os zuavos baianos e outras companhias negras na Guerra do Paraguai, Afro-Ásia, nº 46, 2012, p. 130).
Quando da fundação da Guarda Nacional (1831), a milícia exclusivamente negra (chamada “os Henriques”, em alusão a Henrique Dias) fora dissolvida. A ideia era que os negros fizessem parte das mesmas unidades que aqueles que não o eram. Unidades constituídas somente de negros existiram, entre os Voluntários da Pátria (os “zuavos” baianos e pernambucanos), apenas no início da Guerra do Paraguai.
Manuel Querino, entretanto, é exato sobre a participação dos “zuavos” (sobretudo baianos, mas também pernambucanos) em Curuzú. No principal documento visual, posterior a essa batalha – o quadro “Vista interior de Curuzú mirado de aguas arriba (norte a sur) el 20 de septiembre de 1866”, do pintor argentino Candido López – as tropas negras do Brasil, os “zuavos”, aparecem no centro (o quadro foi pintado após a guerra, em 1891, mas Candido López realmente esteve em Curuzú e Curupaiti, onde foi ferido, tendo a mão direita amputada).
Resta dizer que a ideia de que os negros que participaram da Guerra do Paraguai eram escravos, presente em certa literatura cada vez mais desmoralizada, é, a todo modo, fantasiosa.
No início da guerra, Cândido da Fonseca Galvão, que ficaria conhecido como Dom Obá II, homem negro e livre, veio de Lençóis até Salvador, à frente de 30 companheiros, para se alistar nos Voluntários da Pátria (v. Eduardo da Silva, Dom Obá II d’África, o príncipe do povo: vida, tempo e pensamento de um homem livre de cor, Companhia das Letras, 1997).
Outros, como Quirino Antônio do Espírito Santo, comandante da 1ª Companhia de Zuavos da Bahia, eram veteranos da Guerra de Independência.
Mas houve, como registra Nelson Werneck Sodré, milhares de casos em que escravos foram alforriados para lutar no Paraguai – e eles preferiam isso a continuar escravos. Mas não se deve subestimar o seu sentimento patriótico, várias vezes demonstrado na campanha.
O mesmo historiador aponta que “quando o abolicionismo avoluma e cresce, quando entra a agitar os comícios e a difundir-se através de associações, quando penetra o parlamento e acalora os debates, na urgência da votação e da discussão de projetos que apressem a sua marcha, — o processo econômico e social tornou possível essa invasão de domínios, essa passagem da hipótese para o terreno da possibilidade e da realidade”.
O que nos leva a outro exame do problema econômico no Segundo Reinado.
PRELÚDIO
É uma questão histórica de óbvia relevância em que momento o escravismo passou a ser um obstáculo para o crescimento do país.
Daquilo que Mauá escreveu em sua “autobiografia” (1878), mais de 30 anos após o seu primeiro empreendimento produtivo (o “Estabelecimento de Fundição e Estaleiros da Ponta da Areia”), é possível concluir que já nos anos 40 do século XIX a economia brasileira tinha chegado a um impasse. A ideia de que era necessária a industrialização é o melhor indicador desse impasse:
“Era já então, como é hoje ainda, minha opinião que o Brasil precisava de alguma indústria dessas que podem medrar sem grandes auxílios, para que o mecanismo de sua vida econômica possa funcionar com vantagem; e a indústria que manipula o FERRO, sendo a mãe das outras, me parecia o alicerce dessa aspiração” (cf. Mauá, Exposição aos Credores e ao Público, Villeneuve & C., Rio, 1878, p. 8, itálicos e maiúsculas no original).
Logo após descrever a organização do “Estabelecimento da Ponta da Areia” (1846), frisa, no entanto, Mauá:
“A legislação sobre artefatos de ferro se foi modificando. Navios a vapor e alguns de vela, dos que a Ponta da Areia conseguiria fornecer (72 nos primeiros onze anos de sua existência), tiveram ingresso do estrangeiro livres de direito! Da mesma forma entraram maquinismos a vapor e ainda outros, de sorte que a concorrência com os produtos similares do exterior tornou-se impossível e o estabelecimento decaiu” (idem, p. 9, itálico do original).
A falta de proteção à indústria nacional e o importacionismo desvairado eram, evidentemente, consequências do escravismo – e da política econômica escravista.
Até 1850 o principal entrave à industrialização e ao crescimento do país estava na escassez de capitais disponíveis – pois a maior parte estava aplicada no rendoso e hediondo tráfico de escravos. O próprio Mauá, após sua chegada ao Rio de Janeiro, em 1824, aos 21 anos, fora empregado de um comerciante português cujas atividades estavam na importação de tecidos e no tráfico de escravos.
Quando da Lei Eusébio de Queirós, escreve Mauá, “compreendi que o contrabando não podia reerguer-se, desde que a vontade nacional estava ao lado do ministério que decretava a supressão do tráfego. Reunir os capitais, que se viam repentinamente deslocados do ilícito comércio, e fazê-los convergir a um centro donde pudessem ir alimentar as forças produtivas do país, foi o pensamento que me surgiu na mente ao ter a certeza de que aquele fato era irrevogável. Apresentei-me, pois, em campo com a ideia de criar uma grande instituição de crédito” (op. cit., p. 20).
Daí a fundação do segundo Banco do Brasil, em 1851 (o primeiro, fundado por D. João VI em 1809, fora liquidado no Primeiro Reinado, em 1829).
DOBRE
Após o fim do tráfico de escravos, que travava as forças produtivas por imobilização de recursos, houve, como na lenda bíblica de José, sete anos (aliás, um pouco menos) de crescimento. Então, em 1857, ouviu-se o primeiro dobre de finados.
A crise de 1857 foi ocasionada por uma queda abrupta no preço das mercadorias exportadas, que sucedeu ao pânico financeiro nos EUA e à onda de ruínas financeiras que se espalharam pela Europa, em que “os credores europeus e americanos, forçados pelos seus pagamentos locais, exigiam dos devedores brasileiros o saldo imediato da balança em seu favor, daí as numerosas remessas de metal drenado das praças brasileiras” (J. P. Calógeras, La Politique Monétaire du Brésil, Imprimerie Nationale, Rio, 1910, p. 111).
Essa crise era, portanto, uma consequência direta da dependência do país das exportações de café, açúcar e algodão. O valor do conjunto das exportações caiu 15,95% em 1857-1858 em relação a 1856-1857, segundo os dados oficiais; como consequência, “começou a retração dos negociantes cautelosos nas suas vendas a crédito, enquanto observavam os resultados dessa crise, que felizmente pouco influiu sobre as praças comerciais do Brasil” (Ferreira Soares, Elementos de Estatística Comprehendendo a Theoria da Sciencia e a sua Applicação à Estatística Commercial do Brasil, Tomo I, Typographia Nacional, Rio, 1865, p. 126).
Mas é preciso saber que negociantes retraíram o crédito:
“Como sempre acontece em momentos de pânico, os comerciantes estrangeiros, precisando de ouro para cumprir suas obrigações, pararam de conceder o crédito no Brasil e mandaram de volta todo o ouro que puderam obter. Sem notas bancárias, muitas casas brasileiras teriam ido à bancarrota” (cf. John Schulz, A Crise Financeira da Abolição 1875-1901, trad. Afonso Nunes Lopes, Instituto Fernand Braudel, 1996, p. 38).
Porém, essa bancarrota não aconteceu, exceto em pequena medida, pois, “embora o sistema financeiro fosse (…) bastante vulnerável em 1857, o ministro da Fazenda Bernardo de Souza Franco administrou-o de forma a defender o Brasil dos principais efeitos da crise internacional desse ano. (…) Quando Souza Franco soube da crise, autorizou imediatamente o Banco do Brasil a expandir sua emissão de notas para mais de três vezes o seu capital e suspendeu a conversibilidade, transformando essas notas em moeda corrente” (idem).
O que Souza Franco fez foi aumentar o meio circulante e o crédito para compensar a retração dos comerciantes estrangeiros. Com a suspensão da conversibilidade, protegeu as reservas em ouro. Em resposta ao então deputado Torres Homem – que depois seria, também, ministro da Fazenda – Souza Franco argumentou que era preciso aumentar o meio circulante para baixar os juros e garantir financiamento à “indústria fabril, manufatureira e mesmo à agrícola” (cf. Heitor Ferreira Lima, História do Pensamento Econômico no Brasil, CEN, S. Paulo, 1976, p. 95).
Mas são essas medidas que foram atacadas pelos adeptos da “conversibilidade” do dinheiro em ouro (Itaboraí, Torres Homem, Silva Ferraz), como se o problema da crise fosse meramente monetário. Para Mauá, o significado da crise é o inverso:
“O preço do café nos mercados de consumo sofreu violento abalo (…). Essa crise patenteou logo no seu começo o débil esteio em que os homens da escola metálica se apoiavam para firmar o seu sonho dourado, de realizar a conversão metálica do nosso papel moeda, o que eu considerei sempre impraticável (exceto durante raras intermitências), enquanto outros elementos, com base sólida na produção, não viessem em auxílio de semelhante ideia” (Mauá, op. cit., p. 116).
Aqui, Mauá toca em um ponto essencial: sem produção – e isso quer dizer: produção industrial – o lastro-ouro seria a submissão da nossa economia, através da moeda, a quem possuía produção, em suma, a Inglaterra – e o verdadeiro lastro do mil-réis seria a libra esterlina. Como veremos, foi o que ocorreu.
Desde aquela época, porém, existe uma persistente literatura reacionária que acusa o ministro Souza Franco pela crise – e não apenas pela de 1857, mas também pela de 1864, quando Souza Franco estava afastado há seis anos do Ministério da Fazenda.
Esta literatura sempre repisa os argumentos de Torres Homem, que sucedeu a Souza Franco no Ministério, e Silva Ferraz, que sucedeu a Torres Homem. Podem ser resumidos por um trecho do relatório da comissão que investigou a crise de 1864: “Esta catástrofe, prevista por aqueles que acompanhavam atentamente a marcha pouco previdente dos estabelecimentos bancários, era a consequência forçada da demasiada expansão que se deu ao crédito durante o período dos últimos anos” (cf. o relatório do então ministro Carlos Carneiro de Campos, A crise commercial de setembro de 1864, Typographia Nacional, Rio, 1865, p. V).
Porém, desde dezembro de 1858, com a queda de Souza Franco e a ascensão de seu adversário, Torres Homem, a política financeira era severamente restritiva. Em 1860, inclusive, Silva Ferraz aprovou a Lei dos Entraves (Lei 1.083, de 22 de agosto de 1860), que limitava drasticamente as emissões dos bancos – e tornava o financiamento de empresas quase impossível.
Mauá, sobre a política econômica de Torres Homem e Silva Ferraz, é demolidor:
“A legislação financeira de 1860, tocando o extremo das peias com que uma nação civilizada podia impugnar e guerrear o uso do crédito, pôs em alarma os espíritos, aliás quando alguns desastres de pouca monta já tinham disposto os ânimos para o corretivo natural dos abusos que alguns excessos denunciavam. (…) A aglomeração de capitais para qualquer fim de utilidade pública ficou de fato proibida pelas disposições legais. (…) Ninguém pode calcular as consequências dessa legislação na marcha das transações; dessa época em diante, no Brasil, o espírito de associação, que começava a dar alguns passos, manietado o uso do crédito, retraiu-se, e os capitais realizados entregaram-se em sua máxima parte ao tesouro público, sendo empregados em apólices, ou em bilhetes do tesouro (…). Nada escapou à ação maléfica da legislação da época, e aos erros governativos no terreno preventivo.” (Mauá, op. cit., pp. 133-134).
MAGIA
No entanto, o relatório de 1865 atribui a causa da crise de 1864 não a essa política subserviente e anti-industrial, mas àquela que se encerrara seis anos antes – mágica copiada por Joaquim Murtinho em 1901, ao culpar Rui Barbosa, que saíra do Ministério da Fazenda dez anos antes, em janeiro de 1891, pelos males financeiros do país – que ninguém mais do que o próprio Murtinho agravara (e até engendrara alguns dos mais terríveis).
Repisando a questão, segundo os adversários da política econômica de Souza Franco, o problema eram as emissões “sem lastro” ou “não conversíveis em ouro”.
Mas como seria possível obter tal lastro?
Simplesmente, comprando “soberanos de ouro”, ou seja, moeda inglesa (cf. Ferreira Soares, op. cit., pp. 195-196).
Caso contrário, sem esse “metal” como lastro, não se poderia emitir.
O problema da quantidade de ouro que correspondia a um determinado valor era resolvido pela taxa de câmbio, que, desse modo, tornava-se o regulador da política monetária do país – mais uma vez, a libra esterlina tornava-se, em todos os aspectos, o lastro do mil-réis. Por consequência, o saldo comercial era a forma do ouro entrar no país – ou sair, em caso de deficit.
Essa era a posição dos “metalistas”, que tornava o Brasil uma colônia financeira (além de comercial) da Inglaterra, em oposição aos “papelistas”, como Souza Franco e Mauá.
6
Joaquim Serra é conhecido, hoje, quase que somente pelo belo obituário que lhe dedicou Machado de Assis, em novembro de 1888:
“Enquanto a vida chamava ao combate diurno todas as suas legiões infinitas, tão alegre e indiferente, como se não acabasse de perder na véspera um dos mais robustos legionários, recolhi-me às memórias de outro tempo, fui reler algumas cartas do meu amado amigo.(…) Creio que Joaquim Serra era principalmente um artista. Amava a justiça e a liberdade, pela razão de amar também o arquitrave e a coluna, por uma necessidade de estética social. (…) e, porque era bom e punha em tudo a sua alma inteira, pugnou pela correção da ordem pública, cheio daquela tenacidade silenciosa, se assim se pode dizer, de um escritor de todos os dias, intrépido e generoso, sem pavor e sem reproche” (Machado de Assis, Joaquim Serra, Gazeta de Notícias, Rio, 05/11/1888).
Como anotou André Rebouças, em seu Diário, a 28 de outubro de 1888, Joaquim Serra foi “o publicista que mais escreveu contra os escravocratas”.
Também foi, de todos os abolicionistas, o que melhor analisou o significado do escravagismo no Brasil do século XIX:
“Estudando-se a nossa produção, vê-se que o trabalho escravo é a causa única do atraso industrial e econômico do país. O nosso território está coberto de latifúndios, onde da casa senhorial saem as ordens para o governo das centenas de animais humanos que enriquecem o proprietário. Ali, nem religião, nem instrução, nem moralidade, nem família! Acresce que parte da escravatura está nas mãos de estrangeiros, que não poderiam possuir escravos nos seus países, nem conforme a lei dos seus países. Por outro lado a população está enjoada do espetáculo de uma riqueza criminosamente acumulada sobre a miséria geral pela exploração de um milhão e meio de homens” (cf. O Abolicionista, 01/11/1880; para a importância da contribuição de Joaquim Serra ao jornalismo, v. Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil, 4ª ed., Mauad, 1999, pp. 192 a 236).
Este é um texto do final de 1880, ano em que falecera Caxias – e que começara com a Revolta do Vintém, que desmoralizou a monarquia muito além do que acreditava aquilo que Machado chamou “o Brasil oficial”.
Porém, já em 1871, escrevia Joaquim Serra, em seu poema Fábio:
“Inteiro se envolveu na vida ativa,/ No áspero vaivém desta cidade./ Estudava o comércio, a fonte viva/ De todos os progressos desta idade./ A riqueza do povo viu cativa/ Na bolsa do banqueiro sem piedade./ As finanças e o crédito do estado/ Dúbios penderem do querer do fado.// E viu a indústria com as mãos prendidas/ E os pulsos roxos com as brônzeas peias/ As asas sacudir, querer partidas/ As insensatas, pérfidas cadeias;/ As fontes das riquezas esquecidas,/ Pulsando inquietas as fecundas veias;/ Da futura opulência a roda ingente/ Ao lado do motor jazer dormente.” (Joaquim Serra, Fabio por Frei Bibiano Annotado por um Amigo, Typ. de Aranha & Guimarães, Rio, 1871, p. 13).
Como grande parte dos abolicionistas, Joaquim Serra era, no princípio da sua vida política, membro do Partido Liberal, pois a “emancipação dos escravos” era o quinto ponto do programa lançado pelo manifesto liberal de 1869 – assinado por Nabuco de Araújo, Souza Franco, Teófilo Ottoni, Francisco Otaviano, Zacarias de Góis e Vasconcelos, Chichorro da Gama, Francisco José Furtado, José Pedro Dias de Carvalho e pelo marquês de Paranaguá (cf. Paulo Bonavides e Roberto Amaral, Textos Políticos da História do Brasil – Volume II, 3ª ed., Senado Federal, Brasília, 2002, p. 473).
Assim, sua crítica à ilegitimidade do sistema político da monarquia – que se tornara, como diz em carta a Machado, uma “advocacia de patotas” – tem como alvo, sobretudo, o Partido Conservador.
Mas não apenas. A virada à direita na cúpula dos liberais, inclusive quanto à escravidão, operada por Zacarias, Afonso Celso, Silveira Martins e Martinho de Campos, provocaria seu rompimento, quando o último – que declarou no parlamento: “Cá por mim, sou e serei sempre escravocrata da gema. É dever meu sê-lo… hei de saber cumpri-lo…” – assume a presidência do Conselho de Ministros, em 1882, a convite de Pedro II.
Martinho de Campos, aliás, é a exposição pública da decadência liberal. Seu relatório de 1881, como ministro da Fazenda, mostra em que se tornara o partido de Teófilo Ottoni, Bento Gonçalves e Souza Franco:
“E assim como os cidadãos, que sabem viver regradamente, não se julgam em boas condições, quando devem, e não podem com os seus créditos solver os compromissos contraídos, assim também cumpre ao Estado não esquecer que o seu primeiro dever consiste em utilizar as forças produtivas da Nação, empregando bem os seus recursos, e não agravando cada vez mais os encargos, que já tanto lhe pesam.
“Não sendo estacionário, nem descrendo da fertilidade do solo brasileiro e do progresso das nossas indústrias, penso todavia que não devemos, por amor de mal entendidas teorias, pretender forçar a marcha do tempo e da civilização. As Nações, assim como têm a sua época de grandeza, quando bem dirigidas, precipitam-se e decaem, desde que não preside à sua marcha o necessário espírito de moderação – que produz a ordem no organismo social – e de economia, que encaminha à riqueza e à prosperidade (cf. Proposta e Relatório apresentados à Assembléia Geral Legislativa na 2ª sessão da 8ª legislatura pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios da Fazenda Martinho Álvares da Silva Campos, p. 4).
Certamente, não havia só “escravocratas da gema” no Partido Liberal. Mas este, Martinho de Campos, se tornou nada menos que presidente do Conselho de Ministros pelo Partido Liberal, apenas seis anos antes da Abolição.
A PATOTA
Logo depois da Lei do Ventre Livre, Joaquim Serra publicou, em 1872, A Capangada (paródia muito séria), uma sátira, usando Os Lusíadas como suposto modelo, em que o alvo é toda a casta imperial, a começar pelo próprio – na época, intensamente incensado – Paranhos, o visconde do Rio Branco:
“A malta de ministros desbragados,/ Essa caterva ilustre e veneranda,/ Mais os seus gazeteiros alugados,/ Escritores da praia e de quitanda;/ A enorme quadrilha de embretados/ E que cheira à polícia que tresanda,/ Gente parva e ruim, súcia de bobos,/ Faminta do orçamento como lobos// (…) Qu’eu canto do Brasil as sete pragas,/ O gabinete herói da alicantina,/ Cesse tudo o que a musa-chula canta,/ Pois assunto mais chulo se alevanta.”
Somente para dar uma ideia do tratamento ao grande herói da época:
“E tu, grande Paranhos Malasarte,/ Hoje feito valido e potestade!/ O Poder Pessoal com jeito e arte/ Patriarca te fez dessa irmandade!/ Tu que dos cortesãos és baluarte,/ Maravilha fatal da nossa idade!/ Matreiro diplomata, gran-finório/ Que já foste ao inferno co’o Honório”
Honório era o marquês do Paraná – Honório Hermeto Carneiro Leão, que, em 1853, cooptara José Maria da Silva Paranhos, até então um político e jornalista liberal, para o Partido Conservador.
“A sátira de Joaquim Serra”, como escreveu Tobias Monteiro, “não poupava ridículo”. O que incluía as festas privadas dos conservadores na ilha de Paquetá…
O sistema eleitoral do Império é demolido sem contemplação:
“Chegou o dia grande. O ministério/ Vai consultar o voto da… polícia,/ A senha dada foi a todo o império,/ As ordens expedidas com perícia;/ Nao fez a circular nenhum mistério/ E disse claramente e sem malícia,/ Que convinha votar firme e unida/ Aquela rabadilha dissolvida.// Pelo que delegados, e inspectores,/ E guarda nacional, corpo de urbanos,/ Mestrança do arsenal e mandadores,/ E fiscais, e mesários soberanos/ Seriam todos eles os tutores/ Da nossa opinião, pobres humanos!/ Garantia do voto essa quadrilha,/ Que o voto livre oprime, arranca, e pilha!”
E quanto à reforma eleitoral prometida pelo gabinete:
“O Paranhos está encarregado/ De reformar a lei eleitoral:/ Só poderá votar e ser votado/ Quem tiver o carimbo oficial;/ Eleição por seis graus, o delegado/ As listas recebendo no arraial,/ Rodeado de sabres e baionetas,/ De fósforos, capangas, e espoletas.”
Independente do julgamento sobre o conjunto da atuação de Paranhos, é forçoso reconhecer que as reformas eleitorais do Império foram todas profundamente elitistas. Não apenas em termos atuais, mas até para a mentalidade dos contemporâneos (“Neste país, a pirâmide do poder assenta sobre o vértice em vez de assentar sobre a base”, disse José Bonifácio, o Moço – sobrinho e neto do Patriarca – na sessão da Câmara de 28 de abril de 1879, quando se discutia mais uma reforma eleitoral).
VENTRE
É possível que a imagem pública de D. Pedro II como “Pedro Banana” somente aparecesse mais amplamente após 1880. Mas já durante a Guerra do Paraguai, em 1868, sua profissão de fé supostamente abolicionista causava espécie, após a Fala do Trono desse ano, em que menciona o “elemento servil no império, que não pode deixar de merecer oportunamente a consideração do parlamento, provendo-se de modo que, respeitada a propriedade atual, e sem abalo profundo em nossa primeira indústria, a agricultura, sejam atendidos os altos interesses que se ligam à emancipação” (cit. in Tobias Monteiro, Pesquisas e Depoimentos, Ed. Francisco Alves, 1913, p. 14).
Era inevitável que os abolicionistas – exceto sua ala mais moderada e monarquista – concluíssem que o abolicionismo de Pedro II era para consumo externo: como ele poderia viajar pela Europa, visitando homens como Vitor Hugo, se sua imagem fosse a de um imperador escravagista?
A leitura da Lei do Ventre Livre, de 1871, saudada como o grande triunfo do abolicionismo imperial, também não era animadora:
“Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre.
“§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder e sob a autoridade dos senhores de suas mães, os quais terão obrigação de criá-los e tratá-los até a idade de oito anos completos. Chegando o filho da escrava a esta idade, o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado a indenização de 600$000, ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos. No primeiro caso, o Governo receberá o menor, e lhe dará destino, em conformidade da presente lei. A indenização pecuniária acima fixada será paga em títulos de renda com o juro anual de 6%, os quais se considerarão extintos no fim de 30 anos. A declaração do senhor deverá ser feita dentro de 30 dias, a contar daquele em que o menor chegar à idade de oito anos e, se a não fizer então, ficará entendido que opta pelo arbítrio de utilizar-se dos serviços do mesmo menor.
“§ 2º Qualquer desses menores poderá remir-se do ônus de servir, mediante prévia indenização pecuniária, que por si ou por outrem ofereça ao senhor de sua mãe, procedendo-se à avaliação dos serviços pelo tempo que lhe restar a preencher, se não houver acordo sobre o quantum da mesma indemnização” (cf. Lei nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, CLBR/1871).
Posteriormente, falou-se e escreveu-se muito sobre as dificuldades de Paranhos – o visconde do Rio Branco – para aprovar esta lei, que hoje nos parece tão limitada.
As dificuldades foram reais.
Paranhos era uma mentalidade avançada, se comparado à maioria dos políticos do Império – era dos poucos para quem a construção de uma indústria nacional constituía-se em necessidade do país. Membro da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, seria homenageado pelos empresários de então, quando de seu falecimento, por sua “patriótica identificação com as necessidades do comércio e da indústria” (cf. Rozendo Moniz Barreto, José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco: elogio histórico em nome da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, Laemmert, 1884, p. 118).
Na reunião com Pedro II para montar o Gabinete Paranhos, a 25 de fevereiro de 1871, o visconde de Itaboraí prometeu seu apoio, “declarando, porém, que ressalvava a questão do elemento servil”, no que foi seguido pelo barão de Muritiba – ambos eram próceres de relevo do Partido Conservador, o mesmo de Paranhos, e Muritiba, como depois ressaltou Rui Barbosa, era um escravocrata visceral.
Mas os outros conservadores presentes – Caxias, o barão do Bom Retiro e o barão das Três Barras – deram seu apoio irrestrito ao novo presidente do Conselho de Ministros. Quanto ao barão de Cotegipe, nomeado para o Ministério da Fazenda apesar de estar ausente, na Bahia, recusou o cargo quando voltou ao Rio, devido a um trecho da Fala do Trono lida por Pedro II alguns dias antes, diante do parlamento: “Considerações da maior importância aconselham que a reforma da legislação sobre o estado servil não continue a ser uma aspiração nacional indefinida e incerta. É tempo de resolver esta questão, e vossa esclarecida prudência saberá conciliar o respeito à propriedade existente com esse melhoramento social que requerem nossa civilização e até o interesse dos proprietários” (cf. Annaes do Parlamento Brasileiro, 1871, Tomo I, p.2; e Tobias Monteiro, op. cit., pp. 20-21).
Em seguida, o imperador viajou para a Europa, deixando, pela primeira vez, como regente a princesa Isabel, então com 26 anos, em meio a uma crise política que iria, inclusive, provocar a queda do presidente da Câmara, conde de Baependi, substituído por Teixeira Júnior, um aliado de Paranhos.
Os debates na Câmara mostram o quanto a defesa do projeto de lei foi dependente do visconde do Rio Branco. Com uma oposição composta por alguns dos principais nomes de seu próprio partido – José de Alencar, Ferreira Vianna, Duque Estrada, Perdigão Malheiro, Andrade Figueira – os outros oradores a favor do projeto estavam a quilômetros (e, às vezes, anos-luz) de Paranhos.
Um contemporâneo ressalta a histeria de alguns opositores – e a resposta de Rio Branco, quando um deputado, aos gritos, passou a insultá-lo (ao que parece, chamou-o de “lacaio”): “O nobre deputado não está em estado de deliberar” (cf. Luiz D’Alvarenga Peixoto, Apontamentos para a História: O Visconde de Rio Branco, Typ. do Imperial Instituto Artístico, Rio, 1871, p.117; o mesmo incidente é relatado em Tobias Monteiro, op. cit., p. 28).
O projeto passou por 61 votos favoráveis, numa Câmara de 125 deputados – houve 35 votos contrários, dados a um substitutivo elaborado pelo deputado Perdigão Malheiro, autor de um livro bastante influente na época: A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social (1866).
[NOTA: Como existem algumas divergências sobre o número de votos na Câmara, seguimos, aqui, a ata da sessão: ACD, 1871, T. 4, p. 316-318, cit. in A Abolição no Parlamento: 65 anos de luta (1823-1888), Senado Federal, 2ª ed., 2012.]
No Senado foi bem mais fácil. Mas aqui é o momento de explicar porque achamos necessário entrar na história parlamentar do abolicionismo.
7
O mesmo Ferreira Vianna que, em 1871, foi um dos principais adversários da Lei do Ventre Livre na Câmara, seria, em 1888, como ministro da Justiça do Gabinete João Alfredo, o redator da Lei Áurea.
No Senado, o principal discurso a favor da Lei do Ventre Livre – mais importante até que o de Nabuco de Araújo – foi o de Torres Homem:
“Senhores, depois de longo tempo de trevas e de cegueira de todos nós, chegou uma época em que a instituição da escravidão compareceu perante a consciência do povo brasileiro tal qual ela é, circundada das luzes que deviam iluminar todas as faces deste flagelo, produzindo nas ideias e sentimentos, uma revolução lenta, porém que nunca interrompeu-se, que prosseguiu sempre adquirindo forças em seu caminho.
(…)
“Dous meios havia para perpetuar a escravidão: eram o tráfico e a reprodução ou os nascimentos. O poder da opinião que destruiu o primeiro, destruirá o segundo, porque um e outro são igualmente nefários e desumanos.
“O tráfico arrancava ao longe, nos sertões africanos, em que tudo é silêncio, o filho selvagem do gentio, vítima de guerras bárbaras de que não tínhamos notícia, para o trazer ao mercado da carne de lavoura. O outro processo não é menos atroz: esperam-se à porta da entrada da vida as criaturas novas que apraz à Providência enviar a este mundo, e aí são recrutadas para o cativeiro, embora nascidas no mesmo solo, junto do mesmo lar da família, em frente ao templo do mesmo Deus e no meio dos espetáculos da liberdade que tornaram mais sensíveis a sua degradação e miséria. É a pirataria exercida à roda dos berços, nas águas da jurisdição divina e debaixo das vistas imediatas de um povo cristão!” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brasil, 1871, Vol. 5, p. 56).
Torres Homem, apesar do título de visconde de Inhomirim, não era branco: mesmo em sua época (aliás, principalmente em sua época) era sabido que seu pai era um padre – algo comum no Império – e que sua mãe, Maria Patrícia, era mulata e tinha o apelido de “Maria-você-me-mata”.
Porém, Torres Homem, ministro da Fazenda após a queda de Souza Franco, em dezembro de 1858, foi o ideólogo da política econômica anti-industrial, aplaudida euforicamente pelos escravagistas, que conduziu ao pânico de 1864. Mas, em 1871, ele seria um dos dois membros do Conselho de Estado que preparariam a versão da Lei do Ventre Livre que foi apresentada ao parlamento; o outro membro dessa comissão era o seu grande adversário econômico, Souza Franco.
É possível acrescentar, entre essas contradições, que nenhum abolicionista levou a sério o anti-abolicionismo de José de Alencar – inclusive Joaquim Serra, como se depreende de sua correspondência com Machado de Assis, e Saldanha Marinho (veja-se o modo como Alencar é tratado em “O Rei e o Partido Liberal”, publicado em 1869).
Essas contradições não podem ser eludidas quando se quer responder à seguinte questão: o objetivo da Lei do Ventre Livre era avançar na abolição da escravatura ou adiá-la?
Pois o problema é que ideologicamente o escravismo tornou-se indefensável até para os escravocratas – com exceção de uma pequena parcela de alucinados (Muritiba, Martinho de Campos e poucos outros, que defendiam a escravidão “por princípio”).
A questão, portanto, passa a ser: como isso aconteceu?
A luta pela aprovação da Lei do Ventre Livre foi decisiva para a formação e o avanço da consciência abolicionista no Brasil. Desse ponto de vista, a discussão das intenções da monarquia é quase irrelevante, ainda que seja evidente que essas intenções fossem a de postergar o máximo possível a emancipação total.
Porém, pela primeira vez em um documento oficial – o relatório da comissão da Câmara que examinou o projeto do governo, formada pelos deputados Pereira Franco, Pinto de Campos, Araújo Lima, Mendes de Almeida e Tomás do Amaral – era dito:
“… ponderam [os adversários do projeto] que os frutos [isto é, os filhos das escravas] pertencem a quem é dono da propriedade; que a escrava é propriedade; logo, não é lícito ao Estado dispor do que lhe não pertence. Assenta este sofisma (…) na já demonstrada impropriedade do termo com que costumam qualificar as relações entre o senhor e o escravo. A verdade é que, por mais que concedamos ao possuidor do escravo, nem lhe reconhecemos jus de pleno domínio nem hereditariedade de opressão ou direito sobre os nascituros. (…) não sendo essa instituição fundada em direito natural, mas só criada artificialmente pela lei, pode a todo o tempo ser modificada pela mesma lei. A emancipação, como diz um autor, não é a privação do direito de propriedade; ao contrário, é a negação dele.
“O que a nossa Constituição assegura em toda a sua plenitude é o direito de propriedade, mas da real, da verdadeira, da natural, da que recai sobre coisas, pois não é propriedade o que recai sobre pessoas. Instituição puramente de direito civil, manifestamente viciosa, privilégio que tem uma raça de conservar outra no cativeiro, não se chama propriedade” (cf. Parecer da Comissão Especial, ACD, T. II, pp. 220-234, cit. in A Abolição no Parlamento: 65 anos de lutas – Vol. I, 2ª ed., Senado Federal, Brasília, 2012, p. 493, grifo nosso).
Em qualquer luta política, o reconhecimento da questão de princípio nela envolvida é mais que caminho andado para a vitória.
Na época, o senador Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco, bordejou esta questão, em seu pronunciamento de 26 de setembro de 1871:
“Senhores, é verdade que o projeto tem falta de algumas disposições para completar o seu sistema; é verdade que o projeto tem algumas disposições ineficazes e incoerentes com o sistema por ele seguido; mas vos digo com profunda convicção que as ideias complementares virão depois; que os inconvenientes das ideias incoerentes com o sistema seguido pelo projeto são menores que os inconvenientes da indecisão deste negócio (…). Deploro que o projeto apresentado pelo governo não seja completo, e ainda dependa de outras leis (…). Quando digo que o projeto não é completo, não me refiro ao sistema de emancipação por ele adotado; refiro-me aos meios mais ou menos eficazes que podem realizar o sistema do projeto (…). O projeto tem imperfeições, eu as notei, mas este projeto tem uma inscrição magnífica que me obriga a votar por ele: na Terra de Santa Cruz ninguém mais nasce escravo”.
Hoje, Nabuco de Araújo é mais conhecido pela biografia que dele seu filho escreveu (“Um Estadista do Império”), o que faz com que certos aspectos desagradáveis – sua retórica pedante ou seu acumpliciamento, denunciado por Luiz Gama, com os senhores de escravos de São Paulo – sejam facilmente esquecidos. Em seu discurso de setembro de 1871, ele reflete a média da opinião dominante no parlamento do Império. Por exemplo:
“A emancipação simultânea e imediata é um abismo, por causa da transição brusca de dois milhões de homens do estado da escravidão para o de liberdade, transição fatal, em relação aos perigos de ordem pública, fatal, em relação à desorganização e aniquilação do trabalho” (cf. Annaes do Senado do Imperio do Brasil, 1871, Vol. V, pp. 248 a 239).
Nesse discurso de Nabuco de Araújo há uma informação que aponta, poderosamente, para a verdade na denúncia dos abolicionistas de que o plano da monarquia e dos escravocratas, para acabar com a escravidão, era entregar à morte a solução do problema:
“Senhores, 20 ou 29 anos é a vida das gerações atuais. Seria iníquo condená-las ao cativeiro sem outra eventualidade que a generosidade dos senhores, ou chegar a viver até o termo de tão longo prazo” (idem, p. 251).
APEGO
Quando da morte do visconde do Rio Branco, o órgão da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, dirigido por Joaquim Serra, homenageou-o pela Lei do Ventre Livre: “O partido abolicionista deplora a perda de um homem que certissimamente teria a nobre ambição de levar ao cabo a mais gloriosa empresa do nosso tempo. Honremos a sua memória na continuação da sua obra. Glorifiquemo-lo, continuando-a” (cf. O Abolicionista, nº 2, 01/12/1880).
Mas, no mesmo número desse jornal, um artigo intitulado “Como se cumpre a lei” denunciava: “A lei de 28 de Setembro, essas colunas de Hércules no dizer dos que nada mais querem em matéria de abolição, é quase tão violada diariamente como diariamente o é a de 7 do Novembro de 1831”.
Também na mesma edição, em carta de São Paulo, o mais respeitado abolicionista, Luiz Gama, comentava as infrações à lei por parte de juízes paulistas, em leilão de escravos menores que 49 anos – legalmente livres pela lei de 1831, que proibira o tráfico pela primeira vez.
Em palavras diretas: do fato de que a aprovação da Lei do Ventre Livre foi uma vitória do abolicionismo, não se deduz que seus resultados tenham sido magníficos.
É basicamente nesses resultados – que foram pífios quanto ao número de escravos libertados – que se apega a literatura historiográfica que subestima a vitória de 1871, e no fato de que os escravagistas, a partir de então, como escreveu Sílvio Romero, passaram a se apegar a esta lei, como se o problema da escravidão já tivesse sido resolvido, para não dar passo algum mais à frente. Em suma, os adversários da Lei tornaram-se os seus maiores defensores…
No entanto, a dificuldade em aprovar texto tão limitado (e, depois, em avançar além dele), somente mostra como os escravagistas tinham poder sob a monarquia de Pedro II – e não que o principal aspecto da Lei fosse protelatório.
Em suma, protelatório foi o desespero posterior dos escravagistas para nada mais mudar.
É verdade que “a lei mudava a condição jurídica do filho da escrava, mas o mantinha de fato na mesma situação até os 21 anos. Criava-se ainda um Fundo de Emancipação destinado a libertar anualmente certo número de cativos em cada província. Até 1885, entretanto, pouco mais de dez mil haviam sido libertos em todo o Império pelo Fundo de Emancipação, enquanto as alforrias concedidas espontaneamente por particulares subiam a sessenta mil. Essas cifras eram insignificantes, tendo em vista o total da população escrava” (cf. Emília Viotti da Costa, Da Monarquia à República: Momentos Decisivos, 6ª ed., Ed. UNESP, 1999, p. 335).
Mas desse fato não é possível concluir que a luta pela aprovação da Lei do Ventre Livre – e a vitória obtida – tenha sido mera armadilha dos senhores de escravos, em que caíram os abolicionistas.
Se fosse assim, qualquer luta parcial – isto é, todas elas ou quase todas – seria inútil.
Porém, se as alforrias dos senhores de escravos libertaram seis vezes o número de escravos beneficiados pelo “fundo de emancipação” estabelecido pela Lei do Ventre Livre (e, entre 1871 e 1882, segundo relatório do Ministério da Agricultura, foram libertadas apenas 58 crianças, pois os proprietários preferiram, quase sempre, explorar o trabalho das demais até os 21 anos), isso é uma demonstração de quão ilegítima a escravidão se tornara, até para parte dos senhores de escravos (sobre os resultados da Lei, v. Emília Viotti da Costa, A Abolição, 8ª ed., Ed. UNESP, 2008, pp. 51 a 59).
Por outro lado, é também uma demonstração da resistência do escravismo, ainda quando já havia se tornado ilegítimo na consciência mais geral da sociedade da época.
JUSTIÇA
Essa resistência era tudo menos “pacífica” e a sociedade era tudo menos “harmoniosa”. A luta invadia até o parlamento.
Em agosto de 1886, dois escravos foram mortos, sob açoite, em Paraíba do Sul. Por requerimento do senador Dantas, o ministro da Justiça, Joaquim Delfino Ribeiro da Luz, comparece ao Senado. O senador José Bonifácio – neto e sobrinho do Patriarca (seu pai, Martim Francisco, irmão do primeiro José Bonifácio, casara-se com a filha deste, Gabriela) – interpela o ministro:
“O senador José Bonifácio: A narrativa é simples, mas cheia de interrogações. Os escravos são condenados à pena de 300 açoites e recebem 1.500, por um processo especial de multiplicações generosas; o máximo de 50 açoites por dia, segundo os estilos da Justiça, que, por serem velhos, não podem ser alterados, eleva-se a 150. Fantasio as cenas que deviam ter precedido o desfecho daquele drama infeliz! Executada a pena, os escravos são entregues a um preposto de seu senhor; naturalmente amarrados, caminham a pé para o seu destino; devia ser a fazenda de seu dono, e foi apenas a sepultura deserta do caminho. Até gordos e felizes (ninguém tinha perguntado por isso), saíram das mãos da Justiça e morrem de súbito… e não é um só… são dois, no mesmo lugar e quase na mesma hora, como se uma causa comum atuasse sobre aqueles organismos torturados. Os corpos inanimados, e talvez ainda com os vergões do azorrague judiciário, voltam para a estação próxima, exibindo na terra as nossas misérias, e pedindo talvez no desamparo e na solidão às claridades do dia as misericórdias de cima. O nobre ministro pode dizer-nos se não há criminosos ou responsáveis?
“O ministro da Justiça: Já se está fazendo o processo.
“O senador José Bonifácio: O primeiro dever, desde que a morte verificou-se nas condições expostas, o primeiro dever da autoridade era ordenar a autópsia, recolhendo desde logo tudo o que pudesse constituir o corpo de um delito possível.
“O ministro da Justiça: Fez-se a autópsia.
“O senador José Bonifácio: No telegrama que V. Exa. leu não se falava em autópsia, e sim em exame…
“O ministro da Justiça: Mas recebi depois comunicação do delegado de polícia.
“O senador Dantas: Fez-se a autópsia, depois de exumados?
“O senador Silveira da Motta: O que se diz que se fez, foi o exame.
“O ministro da Justiça: Fez-se a autópsia.
“O senador José Bonifácio: Os escravos, depois de entregues ao preposto de seu dono, morreram em caminho, e os seus corpos foram trazidos para a estação próxima. O que se pretende saber é se se fez a autópsia nessa ocasião, porque é fato essencial que não podia ser esquecido pelos telegramas, e a mesma afirmativa do exame parece excluir a existência da autópsia.
“O ministro da Justiça: Fez-se.
“O senador José Bonifácio: Na estação?
“O ministro da Justiça: Sim, senhor.
“O senador José Bonifácio: O sr. taquígrafo tome nota desta declaração. Pode V. Exa. informar-me de que morreram os escravos?
“O ministro da Justiça: De congestão pulmonar (Risos).
“O sr. Presidente: Atenção!
“O senador José Bonifácio: Os escravos morrem quando estavam no gozo de plena saúde, morrem de súbito em caminho, morrem logo depois de entregues nas mãos de seu condutor, morrem dois, como se houvesse ajuste entre ambos, morrem fulminados quase ao mesmo tempo, no mesmo caminho e dando os mesmos passos, amarrados um e outro depois de terem sido oportunamente açoitados com a permissão do médico…
“O ministro da Justiça: Com a presença.
“O senador José Bonifácio: A assistência do médico importa a permissão do castigo infligido; não façamos questão de palavras. Se não há motivo para a soberba, não há motivo para o desconsolo. A morte verificou-se com todos os sacramentos legais; não faltou mesmo a graça divina da multiplicação do azorrague. Ora, o que têm os magistrados com isso, executores ou não executores da sentença? Hão de entreter-se em alterar a forma do instrumento do suplício, com ofensas das velhas usanças?!!” (cf. Annaes do Senado Brazileiro, 1886, Volume IV, pp. 141 a 144).
Isto aconteceu apenas dois anos antes da Abolição.
8
Ainda é necessário, quanto à escravidão, precisar do que se trata, no Brasil daquela época. Na verdade, é preciso considerar o que era o Brasil da época, até mesmo sob o aspecto demográfico: por exemplo, para nós, hoje, é surpreendente que, ao início da Guerra dos Farrapos (1835), a população do Rio Grande do Sul fosse de apenas 142.000 pessoas (cf. Alencar Araripe, Guerra Civil no Rio Grande do Sul, RIHGB, Tomo XLIII, Parte II, 1880, p. 335).
Em 1865, Ferreira Soares escreveu:
“O Brasil pode conter sem o menor inconveniente mais de 100 milhões de habitantes, porém, conforme os melhores cálculos estatísticos, apenas conta 11.780.000 habitantes, dos quais 10.380.000 são livres e 1.400.000 escravos, computando-se no número dos livres 500.000 indígenas, que vivem errantes nos bosques virgens do Império” (Elementos de Estatística, Typ. Nac., Rio, 1865, Tomo I, p. 43).
O levantamento de 1817, realizado pelo governo de D. João VI, constatara a existência de 1.728.000 escravos. De 1817 a 1839, segundo a estimativa de Ferreira Soares, entraram no Brasil 110.000 africanos escravizados, e, de 1840 a 1851, mais 371.625 chegaram nos navios negreiros. Se ignorarmos as mortes e os nascimentos, deveria haver 2,2 milhões de escravos na época do fim do tráfico.
Porém, a diminuição da população pela mortalidade foi violenta. Ferreira Soares calcula que o maior número de mortes, em relação aos nascimentos, reduziram a população escrava, de 1817 a 1851, em -0,76% ao ano para o Rio Grande do Sul, e mais um quarto do que isso para as províncias do Norte-Nordeste, ou seja, -0,95% por ano. Quatro anos depois, em 1855, “mais de 100.000 [escravos] devem ter morrido de cólera”.
Essas estimativas parecem próximas da realidade, inclusive a mais imprecisa delas, a última, que alguns estudos mais recentes, ainda que parciais, parecem confirmar (cf. Kodama, Pimenta, Bastos e Bellido, Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise preliminar, História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio, v. 19, supl., dez. 2012, p. 59-79).
O assunto parece árido, mas é inevitável, diante do grande espectro de números, sacados por vários autores. Parte ponderável da luta ideológica em torno da História do país no século XIX, concentra-se nesses números.
O primeiro Censo demográfico geral realizado no Brasil foi em 1872. Os levantamentos anteriores, a partir de 1750, são de confiabilidade duvidosa. Em 1870, encarregado pelo governo, Joaquim Norberto apresentou 16 estimativas de várias fontes, para várias épocas – desde 1776 até 1861 – da população brasileira, o que somente evidenciou a necessidade de um recenseamento geral (v. Joaquim Norberto de Souza Silva, Investigações sobre os recenseamentos da população geral do império e de cada província de per si tentados desde os tempos coloniaes até hoje, in “Relatório apresentado a Assembleia Geral na segunda sessão da décima quarta legislatura pelo Ministro e Secretário de Estado dos Negócios do Império Paulino José Soares de Souza”, Typ. Nacional, Rio, 1870, p. 167).
CENSO
Em 1872, segundo o Censo, a população do Brasil – excluídos os indígenas que viviam nas matas – era de 9.930.478, composta por 1.510.806 escravos e 8.419.672 indivíduos livres. Portanto, 15% da população estava sob a escravidão.
Entre os que não eram escravos, nada menos que 3.330.390 eram “pardos”, 919.801 eram “pretos”, 387.075 eram “caboclos” e os brancos eram 3.778.101.
Logo, usando os critérios atuais do IBGE – que classificam como “negros” a soma dos “pardos” e dos “pretos” – havia 4.250.191 negros que não eram escravos e 1.510.806 negros que eram escravizados. O número de negros não-escravos era, portanto, quase três vezes o de escravos (cf. IBGE, Estatísticas Históricas do Brasil – Séries Econômicas, Demográficas e Sociais de 1550 a 1988, Séries Estatísticas Retrospectivas, vol. 3, 2ª ed., Rio, 1990, p. 32; cf. também, Cedeplar/UFMG, Publicação Crítica do Recenseamento Geral do Império do Brasil de 1872, 2002).
Se considerarmos a população “cabocla” – definida, aqui, como aquela resultante da mestiçagem de índios e brancos – os brancos eram 38% da população do país e 45% da população livre, ou seja, eram minoria, inclusive entre a população não-escrava.
Por que estamos decompondo esses números?
Porque, hoje, há uma tendência a identificar os negros do Segundo Reinado com os escravos. Se isso pode ser verdade – embora nem sempre – do ponto de vista ideológico, não o é do ponto de vista econômico e social. O que tem várias implicações: por exemplo, se é verdade que a mortalidade dos escravos era superior à natalidade, isso não é verdade para os negros em geral – e ainda bem.
Infelizmente, não há outros números seguros para a população brasileira no século XIX, durante o Império, muito menos para os escravos, pois a Diretoria Geral de Estatística (DGE), instituída em 1870, foi extinta em 1879 – e o Censo de 1880 foi adiado, depois cancelado. Somente em 1890, já na República, haveria outro recenseamento geral.
[NOTA: Citamos os dados originais do Censo de 1872. Como notam os pesquisadores do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional (Cedeplar) da UFMG, há discrepâncias neles, inclusive nas somas, causadas pelas dificuldades da época – inclusive a opção por não incluir 32 paróquias (cerca de 2% das existentes no país) que atrasaram o envio de dados. O trabalho de correção e ajustamento, realizado por esses pesquisadores, é inestimável – mas, para os efeitos deste trabalho, a diferença entre os dados originais e os ajustados não é importante.]
REDUÇÃO
A maioria dos autores afirma que, na época da Abolição, existiam no Brasil cerca de 700 mil escravos.
Mas isso quer dizer que entre 1872 e 1888 – portanto, em 16 anos – a população escrava diminuiu em 800 mil pessoas: na média, menos 50 mil pessoas por ano.
Nesse período, milhares de escravos que estavam no Nordeste, foram deslocados (ou seja, vendidos) para o Sudeste – isto é, para a região cafeeira. Em 1872, o número de escravos – que, na época da Independência, era mais ou menos o mesmo no Nordeste e no Sudeste – já era 75% maior na última região que na primeira, e, em 1887, à beira da Abolição, era 133% maior (cf. Marcelo de Paiva Abreu e Luiz Aranha Correa do Lago, A economia brasileira no Império, 1822-1889 in Marcelo de Paiva Abreu (org.), A Ordem do Progresso: dois séculos de política econômica no Brasil, 2ª ed., Elsevier, Rio, 2014).
Notam os mesmos autores que “foi só em 1884, quando São Paulo aprovou legislação que permitia à província pagar a passagem dos imigrantes estrangeiros, que foi removido o último obstáculo sério a seu emprego mais generalizado pelos fazendeiros”.
Antes disso, aumentaram as fugas – isto é, a não aceitação da escravidão pelos escravos -, muitas ajudadas por abolicionistas como Antonio Bento, em São Paulo, líder do grupo clandestino “Os Caifazes” ou aqueles que se reuniam, em Recife, no “Clube do Cupim”. Até Rui Barbosa, que muitos apresentam, injustamente, como apóstolo do formalismo jurídico, tornou-se um defensor das fugas dos escravos (um trabalho interessante sobre o assunto é o de Eduardo Silva, Rui Barbosa e o quilombo do Leblon – Uma Investigação de História Cultural, in Estudos Históricos sobre Rui Barbosa, Casa de Rui Barbosa, Rio, 2000).
Em um dos discursos mais importantes, e candentes, da História do Brasil, falando a 7 de junho de 1885 na homenagem ao senador Dantas – após a demissão deste da Presidência do Conselho de Ministros e sua substituição pelo Conselheiro Saraiva – denunciava Rui o “novo” projeto de Lei dos Sexagenários do governo:
“Senhores, há, neste projeto, uma ideia que define a exageração do seu escravismo. É a de cominar aos que acoitarem escravos a multa de 500$000 [500 mil-réis] a 1:000$000 [um conto de réis].
“Esta disposição é inenarravelmente odiosa. O seu comentário prático, o seu eco político, a sua repercussão social está nos acontecimentos de Campos. (Aplausos). Quem nos definirá, por uma fórmula honesta e segura, o que seja acoitar escravos?
“A fuga, no escravo, é um crime? Não: é a defesa natural; é o exercício de um direito que nenhuma lei, neste mundo, ousaria negar, e cujo sentimento não conseguiríeis extinguir, ainda quando pudésseis degradar a natureza humana até a bestialidade absoluta (aplausos): pois ainda na pura animalidade a fuga é a incoercível revolta do instinto.
“Franqueardes a hospitalidade do vosso lar ao oprimido, que se vos prostrou aos pés com a lividez do terror nas faces, será incorrer em delito? A indigna lei, que o declarasse, não vigoraria um momento na menos viril das sociedades humanas (Aplausos).
“… se, quando, no círculo da vossa bem-aventurança íntima, vós estiverdes revendo nos olhos da esposa, e acariciando os filhos estremecidos, um escravo, andrajoso, seviciado, espavorido, irrompendo súbito, vos cair de joelhos entre as criancinhas, que vos afagam, e a mãe, que vos sorri, é preciso esmagar o coração, afogar as lágrimas, carregar o semblante, e expelir o miserável (aplausos), ou amarrá-lo, para o entregar à Justiça; que assim se prostitui este sagrado nome aos beleguins da instituição maldita (Repetidos aplausos). Quando não, o processo, a multa de um conto de réis!
“Eu quisera saber se há, neste auditório, um covarde bastante vil, para obedecer a tal lei. (Aplausos). De mim vos digo: eu aborreceria meus filhos, e rejeitaria de minha alma a cara companheira de minha vida, se eles e ela não fossem os primeiros a estender sobre a cabeça do perseguido as asas tutelares dessa simpatia onipotente, de que têm o segredo as mulheres e os anjos. (Repetidos aplausos). E se a lei, essa lei nefanda, batesse à minha porta para arrancar-me o foragido, e restituí-lo aos seus torturadores, eu diria ao escravo: ‘Resisti!’, e os cães da lei perversa não penetrariam no meu domicílio senão como os salteadores, pelo arrombamento e pelo sangue. (Repetidos aplausos)”.
PARA O FIM
É a essa época que alguns chamaram “desescravização”. Evidentemente, ela é uma crise agônica do escravismo. Mas a luta não se torna menos aguda – pelo contrário – quando se aproxima de seu fim.
O marasmo da vida política é, a princípio, o sintoma “oficial” dessa crise. Como diz um dos maiores ensaístas da nossa História, sobre o período após 1875:
“Depois do Ministério Rio Branco, desenhou-se (…) uma dessas ‘épocas sem fisionomia’, pressagas de transformações profundas. Mas, evidentemente, estas se efetuariam fora do aparelho monárquico. (…) O Império Constitucional atingira, de fato, o termo de suas transformações; e, de acordo com a própria lei evolutiva que o constituíra, iria desintegrar-se submetendo-se por sua vez ao meio, que até então dominara, e aos excessos de movimentos que este adquirira. (…) Depois dele [Rio Branco] – a atitude curiosíssima do Partido Liberal em todo o período que vai de 1878 a 1886 – de Cansanção de Sinimbu ao último ministério do Conselheiro Saraiva – já agitando esterilmente, como reforma única, a pseudo-reforma liberal da eleição direta e censitária, já estonteando a opinião com os seus vários governos incoerentes sustentados antilogicamente com o amparo do elemento conservador, e caindo todos batidos por violentas moções de desconfiança dos próprios liberais – seria bastante incisiva no delatar o artificialismo de um regime teoricamente extinto, e implicativo das novas aspirações sociais” (Euclides da Cunha, Da Independência à República (Esboço Político), 1899, publicado in À Margem da História, 1909).
A Guerra do Paraguai, diz Euclides, fora um desvio temporário da História do Brasil, um divisor de águas, por assim dizer – ao mesmo tempo possibilitara, acrescentamos nós, uma saída para a catástrofe econômica de 1864 e, ao seu final, tornara insuportável a vida nos mesmos termos de antes da guerra, isto é, a permanência do país no leitor de Procusto do escravismo.
Daí, um ano após o seu término, as discussões e a aprovação da Lei do Ventre Livre. Porém, após isso…
CENAS
Rui Barbosa, no discurso que citamos, refere-se aos “acontecimentos de Campos” – trata-se de um dos pontos críticos da escravidão.
Em 1873, o recenseamento municipal apontava, nesse município fluminense, famoso por seus canaviais, engenhos, e, depois, usinas de açúcar, uma população de 19.520 pessoas, com 8.009 escravos – em suma, 41% da população (contra 15% em nível nacional) era escrava. Os negros (“pretos” + “pardos”) eram 63% da população (cf. Julio Feydit, Subsídios para a história de Campos dos Goytacazes: desde os tempos coloniais até a Proclamação da República, 2ª ed., Esquilo, Rio, 1979, p. 482).
No mesmo ano de 1873, houve, na cidade, o assassinato de uma senhora de nome Ana Pimenta, com mais de 70 anos. Depois de um dia de investigação, o delegado local conseguiu a confissão de quatro escravas – Letícia, Cherubina, Cecília e Virgínia.
Porém, o que estarreceu – inclusive ao delegado – foi o motivo do crime:
“Essas escravas dormiam todas as noites presas no sótão da casa; a primeira, em uma corrente ligada numa mão de prumo por um cadeado, e as outras três, em outra corrente também ligada por um cadeado à outra mão de prumo. Letícia, nos dias 18 e 19 tinha sido castigada com palmatória e chicote (…). Declararam as delinquentes que mataram a senhora por esta as maltratar com pancadas e conservá-las sempre presas” (Julio Feydit, op. cit., p. 357).
Os comentários do autor, que escreveu seu livro em 1900, são um retrato da mentalidade cotidiana dos escravistas:
“Essa senhora, que foi pelas escravas assassinada, era um misto de bondade e maldade!
“Sua casa, sua bolsa, estavam sempre abertas aos pobres: quantas vezes não encontramos com a bandeja com comida, que ela diariamente mandava levar a dois velhos, um dos quais era conhecido pelo nome de Tacão, morador na Beira Rio em frente à S. Casa? Excessivamente devota, concorria com esmolas para as festas e procissões; porém em seu modo de entender, os escravos não mereciam a menor compaixão; e os que tinham a desgraça de lhe pertencer, sempre foram tratados pior que os criminosos condenados aos trabalhos forçados.
(…)
“Nas fazendas da assassinada foram encontrados instrumentos de suplícios, que poderiam servir para um museu. As escravas que dormiam acorrentadas, eram pela senhora durante o dia muitas vezes feridas com garrochão!
“Pela polícia foi feito na senhora o corpo de delito, e o delegado, Thomé José Ferreira Tinoco, estava fazendo o mesmo nas escravas, que estavam com muitos ferimentos, quando, pelo crime de fazer corpo de delito, recebeu sua demissão!! Esse incidente dá a justa ideia da justiça que as escravas tinham a esperar de uma sociedade, na qual os escravos eram tão barbaramente tratados.
“Em 24 de fevereiro de 1875, sucumbiu a uma afecção pulmonar, a preta Letícia, a principal autora do assassinato de D. Anna Joaquina Carneiro Pimenta: a ré estava sentenciada à pena de 500 açoites e ferro ao pescoço, estando o respectivo processo pendente de apelação interposta pelo promotor público”.
9
A série dos últimos governos da monarquia está muito longe de ser uma trajetória em linha reta para a Abolição. Desde o Gabinete Martinho de Campos (janeiro-julho de 1882), e sobretudo depois de 1884 até 1888, isto é, no período final da escravidão. Ao senador Dantas – que caíra, em maio de 1885, por ser um radical na questão da emancipação dos escravos (já examinaremos essa questão) – sucedeu, na Presidência do Conselho de Ministros, o conselheiro Saraiva, cujo horizonte era determinado, como disse Rui, por sua condição de senhor de engenho.
Ao conselheiro Saraiva, três meses depois, em agosto de 1885, sucedeu João Maurício Wanderley, o barão de Cotegipe, um dos maiores proprietários do Recôncavo Baiano, dono de 10 engenhos, evidentemente, escravocrata notório – que somente sairá da chefia do governo em março de 1888, dois meses antes da Lei Áurea.
Um dos primeiros biógrafos de Cotegipe, para bajulá-lo, não encontrou melhor forma do que dizer que ele “era a formidável personificação do orgulho intolerante” (cf. Pedro Eunapio da Silva Deiró, Estadistas e Parlamentares: 1ª série, Molarinho & Mont’Alverne, Rio, 1883, p. 87).
Nem sempre os puxa-sacos, em suas lisonjas, dizem mentiras…
É verdade, Cotegipe não era um imbecil, ou quase–imbecil, como Martinho de Campos, o “escravocrata da gema”, que parecia considerar eterna a escravidão. Pelo contrário, ele defendia o protelamento da emancipação dos escravos em nome de interesses bem concretos – os de sua classe. Fora isso, achava que tanto a escravidão quanto a monarquia estavam condenadas à morte (há outros exemplos, além da sua conhecida observação, em 13 de maio de 1888, à princesa Isabel – “Vossa alteza redimiu uma raça, mas perdeu o trono”. Um deles é o conselho, sobre a república, que se atreveu a dar a Silva Jardim: “Não se apresse a correr para ela, que ela está correndo para nós. O meu Ministério caiu por uma conspiração do Palácio, o meu sucessor sairá na ponta das baionetas, e, talvez, com ele, a Monarquia. Os nossos ministérios duram pouco, e, portanto, você não terá muito o que esperar”).
Assim, Cotegipe morreu nove meses após a Abolição e nove meses antes da República, a 13 de fevereiro de 1889. Acabou junto com o seu mundo.
Mas tanto Saraiva quanto Cotegipe – é verdade que, também, Dantas – foram escolhas de Pedro II. O cargo de “Presidente do Conselho de Ministros” jamais existiu na Constituição do Império – era uma escolha do imperador, formalizada apenas por um decreto (o de nº 523, de 20 de julho de 1847).
SANGUE
Enquanto Pedro II escolhia escravistas para o governo, a situação deteriorava-se cada vez mais. Por isso, o município de Campos tornou-se um caso especialmente agudo – e até mesmo simbólico – durante a luta abolicionista. Daí a sua menção por Rui Barbosa, como exemplo de resistência sanguinária dos escravistas. Talvez por essa situação – mesmo no passado, sempre tensa – lá tenha nascido um dos abolicionistas mais importantes, José do Patrocínio, chamado “O Tigre da Abolição”.
A 30 de janeiro de 1887, os abolicionistas dessa cidade fluminense, liderados por Luís Carlos de Lacerda – editor do jornal “Vinte e Cinco de Março” (a data da abolição da escravatura no Ceará, ocorrida em 1884) – realizavam um ato no Teatro Empyrio, quando foram atacados por capangas dos escravistas. O abolicionista Luís Antônio Fernandes, com uma bala na cabeça, caiu morto.
Não era um segredo quem era o mandante do crime: um fazendeiro de nome Raimundo Moreira, apelidado “Barbaça”. No entanto, escreve, alguns dias depois, José do Patrocínio:
“Começou a orgia de sangue e de sânie que o sr. barão de Cotegipe havia prometido aos seus cúmplices do Governo para a pirataria e pela pirataria.
“Já não há mais garantias para quem não se ajoelha perante o chaveco do tráfico, encalhado sobre o Ararat da corrupção e convertido pelo Governo do imperador em arca santa dos direitos da escravidão.
“A cidade de Campos foi convertida em matadouro de abolicionistas.
“A polícia, conivente com os assassinos, esconde-se, até que estes tenham consumado os seus crimes, e em seguida aparece para denunciar à magistratura as vítimas como algozes.
“A magistratura, por sua vez, denuncia ao Governo esses imaginários autores de atentados, louvando a solicitude e o zelo com que a polícia os entrega à sanha do esclavagismo assassino.
“O presidente do Conselho havia dito: na guerra, como na guerra e cumpre, pela primeira vez na sua vida, a palavra dada.
“… o Governo, armado com a venalidade da maior parte, com o desespero da cobiça dos senhores de escravizados, com a falta de escrúpulo de quem se hipotecou ao interesse de uma instituição, que é a nossa vergonha perante o mundo.
“Governo da escravidão, o Ministério é a encarnação da barbaria; não trepida em assalariar delatores, como não hesita em proteger assassinos.
“As cenas selvagens de Campos não são senão o primeiro ensaio da tragédia, que vai ser representada em todo o país.
“Aos assassinatos de Luís Fernandes e do imortal Adolfo Porto, seguir-se-á o de [Luís] Carlos de Lacerda e ao deste o de todos os abolicionistas, cuja palavra o Governo sabe que não emudecerá senão pela morte.
“Um cadáver de mais ou de menos não faz mover a balança de consciências que se servem de três séculos de crime como peso para os seus atos.
“O Governo já não se julga obrigado sequer a recatar-se. Apraz-lhe a nudez da saturnal.
“Põe cabeças a prêmio; aponta os réus que quer punir.
“Não tem mais em atenção as simples formalidades da lei: suspende os direitos constitucionais e veste a morte com a toga do magistrado.
“Na embriaguez do crime, não repara que deixa pegadas indeléveis na história, apesar da astúcia que emprega para ocultar a sua mão traiçoeira e ensanguentada.
“A polícia de Campos ainda não descobriu quais os assassinos do dia 30, mas sabe quem foi que esfaqueou um dos capangas de Raimundo Moreira.
“Não consta que nenhum desses assassinos haja sido farejado pela perspicácia do delegado de polícia ou do juiz de direito; mas estas autoridades já sabem, descobriram de pronto, que são as conferências abolicionistas o facho incendiário que ateou fogo aos canaviais.
“Cada palavra do Governo e dos seus agentes denuncia a premeditação de sufocar, seja como for, a propaganda que pretende lavar a desonra da pátria, seja com o próprio sangue dos propagandistas.
“O imperador, que é proclamado soberano magnânimo, não dá sinais de vida.
(…)
“Hoje, que um ministério que não se pode fortalecer senão pelo terror, que lembra no poder um desses monstros do sertão, que se fazem temer pelo número dos seus crimes, cobre de vítimas o país e põe em perigo as instituições, o imperador cruza indiferentemente os braços.
“Pensa acaso o imperador que o meio de consolidar o seu trono é dar-lhe como alicerce no presente a ossada dos abolicionistas, como lhe deram outrora a ossada das vítimas do tráfico?
“Não vê Sua Majestade que, de par com o vácuo que o assassinato e o processo foram incumbidos de fazer nas fileiras abolicionistas, o ministério mandou o desgosto fazer o vácuo em torno do trono imperial?
“… o Governo quer ficar fora da lei e, para conseguir os seus fins criminosos, lança mão de todos os meios” (Gazeta da Tarde, 05/02/1887).
VISÃO
Em seu livro sobre a crise de 1864, escrito e publicado no mesmo ano, Ferreira Viana sintetiza o problema do país com uma imagem: “Deus nos deu olhos de águia, e temos vivido nas trevas da toupeira”.
Adversário da política restritiva, que estancava o desenvolvimento do país, não é sem humor que ele considera os comentaristas reacionários da crise: “Os amigos da restrição devem estar hoje satisfeitos, eles se julgam profetas. Mas nada há mais fácil do que prever desgraças; a dificuldade consiste em combater o mal sem trazer a morte” (cf., Ferreira Vianna, A Crise Commercial do Rio de Janeiro em 1864, Garnier, Rio, 1864, pp. 19-20).
Pelo contrário, ele via o problema no extremo oposto: “É impossível desconhecer que muitos negociantes abusaram do crédito, mas é evidente que as causas gerais desta crise não estão nessas exceções. O comércio, como todo o gênero de atividade humana, tem seus monstros. Monopolistas, falsificadores, contrabandistas, falidos fraudulentos, eis as sombras que acompanham o céu sereno da riqueza” (idem, p. 20).
Mas é interessante que ele veja como causa da crise a imobilização de capitais em alguns setores – e o endividamento externo:
“… não deixamos de reconhecer que o Brasil de 1850 até hoje tem tido um progresso considerável, tem-se aumentado a produção, a navegação e as vias férreas. Quando se observa o Brasil nestes 14 anos, o coração se alegra tendo fé no futuro. Mas é necessário que o governo compreenda que imobilizaram-se nessas empresas avultadas somas, somas que foram além das economias do trabalho. Aumentou-se a dívida do país pedindo-se numerário emprestado” (idem, p. 12).
Na mentalidade do governo da época, esse endividamento externo (via de regra, junto à Casa Rothschild, de Londres) era frequentemente racionalizado: “Os empréstimos estrangeiros têm a vantagem de chamar capitais para o país”, dizia o ministro da Fazenda, em seu relatório sobre o ano de 1864 (cf. Proposta e relatório do ano de 1864 apresentados à Assemblea Geral Legislativa pelo ministro José Pedro Dias de Carvalho, p. 6).
E aqui aparece um problema que é uma consequência direta da política restritiva dos “metalistas” – os juros, que travavam a industrialização:
“… a renda pública tem subido com o desenvolvimento das vias de comunicação, mas a produção tem de pagar juros e capitalizar gradualmente as somas que foram despendidas, e que tem de vir criar a industria fabril e manufatureira” (idem).
Calógeras, apologista da política restritiva, escreve:
“O desconto, a 9% no começo do ano, subiu a 10% em janeiro, para tornar a descer a 9% no mês seguinte, subir novamente a 11% em junho e fixar-se em 10% até o fim de 1862. No ano subsequente, foi a taxa de 9% que predominou, e a de 8%, em 1864, às vésperas da grande crise que produziu tão terríveis desastres financeiros no ‘Brasil, conhecida pelo nome de falência da Casa Souto” (cf. J.P. Calógeras, op. cit., p. 138).
O interessante é Calógeras considerar que isso é um “desafogo”, porque, diz ele:
“O país desenvolvia-se lenta mas seguramente. Os dados sobre as exportações, umas em alta e outras em baixa, apresentavam tendência geral favorável; a navegação de cabotagem aumentava de vulto; mantinha o volume das colheitas. Todos esses fenômenos econômicos estão amplamente demonstrados nas estatísticas publicadas pela Comissão de Inquérito de 1864, justamente para comprovar a falta de base das opiniões que atribuíam a decadência econômica do Brasil à crise daquele ano” (cf. J.P. Calógeras, op. cit., pp. 138-139).
O fato de que a incipiente indústria estava asfixiada pelas taxas de juros, pela ausência de financiamento, com embocadura na especulação dos recursos liberados pelo fim do tráfico de escravos, parece não existir para os adeptos da política restritiva.
Até mesmo o nosso principal historiador financeiro, Valentim Bouças, tem a tendência a reproduzir a incensação da política de Itaboraí, sem nenhuma observação crítica. É verdade que, um pouco antes de relatar como o Império entregou nossas finanças externas à casa Rothschild & Filhos, de Londres, ao abordar o empréstimo externo de 1852, Bouças aponta que foi “a primeira [operação] que realizávamos a juro inferior a 5%”. Porém, os juros foram de 4,5%, enquanto “a taxa de desconto no Banco da Inglaterra estava a 2% e no Stock Exchange, de 1 a 1,5%” (grifo nosso).
E, mais: “… não foi pouco o que despendemos com os compromissos da convenção adicional de 1825 (…). … até 1882, havíamos pago, por [uma dívida original de] £ 2.000.000, [a quantia total de] £ 6.180.199, ou mais do triplo (Valentim Bouças, Finanças do Brasil, Vol. XIX, MF, Rio, 1955, pp. 146-147).
E, mais: “… não foi pouco o que despendemos com os compromissos da convenção adicional de 1825 (…). … até 1882, havíamos pago, por [uma dívida original de] £ 2.000.000, [a quantia total de] £ 6.180.199”. mais do triplo (Valentim Bouças, Finanças do Brasil, Vol. XIX, MF, Rio, 1955, pp. 146-147).
SETOR EXTERNO
O valor das exportações brasileiras aumentou 232,24% nos 30 anos que vão de 1834 a 1864. As exportações de café, com +480,47%, foram as que mais aumentaram em valor.
[NOTA: aqui estamos usando os valores expostos por Ferreira Soares. Outros autores, inclusive Celso Furtado, calcularam valores um pouco diferentes – mas não muito.]
Já naquela época, eram evidentes os problemas com os preços – a deterioração dos termos de troca (ou de intercâmbio), que Raul Prebisch e a Cepal iriam levantar no final da década de 40 do século XX, já existia – e debaixo de um monopólio comercial, o da Inglaterra.
Ferreira Soares nota que, entre 1830 e 1864:
1 – A exportação de café, na média anual, aumentou 6,22% em valor e 9,94% em quantidade.
2 – A do açúcar, aumentou 1,43% em valor e 2,92% em quantidade, na média anual.
3 – A do algodão, em 1,18% quanto ao valor e +10,46% em quantidade.
O mesmo é verdade para os outros produtos de exportação, menos importantes no cômputo global da balança comercial (couros: +3,02% em valor e +5,73% em quantidade; fumo: +6,66% em valor e +18,93% em quantidade; látex: +24,59% em valor e +61,48% em quantidade; mate: +8,51% em valor e +17,29% em quantidade; cacau: +1,64% em valor e +9,04% em quantidade; apenas a cachaça cumpriu trajetória inversa: subiu +1,61% em valor e +0,38% em quantidade).
Como os defensores do fim do tráfico demonstraram, após 1850 há um aumento nas exportações, até 1857.
Mas o aumento nas importações foi maior, com exceção do período 1860-1863 – quando os negócios recuaram, devido ao início da política de arrocho creditício de Torres Homem e Silva Ferraz.
Uma parte ponderável dos recursos antes aplicados no tráfico, portanto, foi deslocado para as transações comerciais externas, sobretudo para as importações de tecidos e “muitos outros diversos produtos fabris e industriais indispensáveis à vida do homem civilizado”: sobretudo farinha de trigo, especiarias, azeites vegetais e marfim (Ferreira Soares, op. cit., p. 95).
De 1834 a 1864, em apenas nove anos houve saldo comercial favorável ao Brasil. Nos outros 21 anos, houve deficit comercial.
Em termos quinquenais, no mesmo período, somente em dois quinquênios (1844-1849 e 1859-1864) houve saldo comercial. Nos outros quatro quinquênios, houve deficit comercial.
10
A análise de Ferreira Soares a respeito desses dados da balança comercial que publicamos na parte anterior deste trabalho, em seu livro de 1865, soa extremamente atual. Comparando a média anual de importações e exportações de 1833 a 1863, diz ele:
“… o valor do comércio exterior tinha-se elevado além do duplo no espaço de trinta anos; mas infelizmente ainda assim apresentando um balanço médio anual contra as exportações (…); conseguintemente bem difícil se tornava naquela época o conservar no país a moeda metálica de ouro e prata, que era constantemente exportada para balancear o déficit da nossa exportação anual” (cf. S.F. Soares, Elementos de Estatística, Tomo I, p. 201, grifo nosso).
E, totalizando os resultados quinquenais entre 1834 e 1864:
“… temos importado nestes 30 anos últimos mais do que temos exportado a soma de 33.722:000$, que é um valor perdido para o país, o qual não teria saído, e antes ter-se-ia capitalizado no Império, se ao menos os tecidos grossos de lã, linho e algodão fossem fabricados em estabelecimentos nacionais. (…) o Brasil precisa de fundar fábricas de tecidos e outros objetos dos mais comuns usos de nossos conterrâneos, [do contrário] sempre estaremos a trabalhar para as indústrias estrangeiras, produzindo e vendendo a matéria prima, para depois recebermo-la por altos preços já fabricada, quando no país, estabelecendo-se fábricas, ficariam aqui em maior parte os capitais que saem para se empregar nos objetos dos usos mais comuns da vida do homem” (S.F. Soares, op. cit., pp. 153-154, grifos nossos).
Sobre a balança comercial logo após o fim do tráfico transatlântico de escravos:
“De 1851 em diante o movimento comercial da praça do Rio de Janeiro tomou gigantescas proporções em referência aos anos anteriores. A soma geral das importações dos exercícios de 1850-51 e 1851-52 era maior que a dos exercícios de 1848-49 e 1849-50 em 59.043:000$000; a das exportações também tinha crescido em 11.498:000$000” (Ferreira Soares, op. cit., pp. 171-172).
Também em relação a um dos aspectos da crise interna – a alta no preço dos gêneros alimentícios, relacionada pelos escravistas com o fim do tráfico – diz ele, lembrando um seu trabalho anterior:
“Até então a opinião geral proclamava a falta de braços, atribuindo a essa causa a grande alta de preços dos gêneros alimentícios, mas, depois de minhas demonstrações, verificou-se ser falso aquele raciocínio, e que a verdade era a que demonstrei – o abandono da pequena cultura, para se aplicarem todas as forças dos agricultores na lavoura dos principais gêneros de nossa exportação, bem como (…) o monopólio, o qual especuladores audazes tinham organizado nesta corte, para se apossarem do negócio dos gêneros alimentícios” (op. cit., p. XVI, grifo nosso; as demonstrações sobre esse ponto estão em Ferreira Soares, Notas Estatísticas sobre a Producção Agricola e Carestia dos Generos Alimenticios no Imperio do Brazil, J. Villeneuve e Comp., 1860, sobretudo pp. 128-139).
Ressaltemos que as observações de Ferreira Soares, a que ele alude, foram publicadas quatro anos antes da “quebra do Souto” e da crise de 1864.
[NOTA: Para não perder a oportunidade, mencionemos aqui, quanto a esse trabalho anterior de Ferreira Soares, a atuação do lastimavelmente famoso W. D. Christie (o embaixador inglês que deu nome à “Questão Christie”, com o bloqueio da Baía de Guanabara pela esquadra inglesa e confisco de navios brasileiros atracados no porto da capital do Império). Diz Soares: “O honroso acolhimento que tiveram as minhas Notas Estatísticas sem dúvida que deram origem a uma consulta que se dignou fazer-me o Sr. W. D. Christie, ministro de Sua Majestade Britânica residente, então, nesta corte, sobre a cultura e produção do algodão no Brasil, na qual graves e ponderosas questões me foram feitas, e que me parece tê-las resolvido satisfatoriamente na memória que sobre esse assunto dirigi ao Sr. Christie, e que S. Ex. fez imediatamente traduzir em inglês, e remeteu ao seu governo. O ministro de S. Majestade Britânica, a título de pagar ao copista do meu trabalho, remeteu-me uma avultada quantia, que entendi não dever receber, embora estivesse, e ainda esteja lutando com mil dificuldades; e por isso a devolvi a S. Ex., declarando-lhe que meu único fim, executando tal trabalho, era prestar um bom serviço ao meu país” (cf. op. cit., pp. XXI-XXII). Pelo jeito, Christie era um precursor da CIA.]
NORDESTE
Durante algum tempo – e mesmo hoje – falou-se em uma crise econômica que teria sucedido à Abolição, sobretudo no Nordeste. Sobre isso, nos parece que Manuel Correia de Andrade, em seu mais famoso livro, tem razão ao afirmar que “a crise do açúcar posterior à abolição resultou mais da falta de mercado externo, devido à concorrência do açúcar de beterraba europeu e do açúcar antilhano, do que da libertação dos escravos” (cf. A Terra e o Homem no Nordeste, 3ª ed., Brasiliense, 1973, p. 108).
Sobretudo porque, com exceção da Bahia, “não era grande a percentagem de escravos na população dos Estados nordestinos dos meados para os fins do século passado (…) no Rio Grande do Norte o número de escravos nunca foi muito elevado. (…) Na Paraíba o quadro não era diferente (…). Em Pernambuco, mesmo, sobretudo ao Norte, na ‘mata seca’, o trabalho assalariado era, na segunda metade do século XIX, de uso generalizado” (idem, pp. 106-107).
Somente em Alagoas a situação era diferente, com a percentagem de escravos na população (pouco menos de 16%) próxima à média nacional – porém, mesmo ali, diz o grande geógrafo pernambucano, “à proporção que o número de escravos diminuía devido à abolição do tráfico, à lei do ventre livre, à venda de escravos para o Sul e às medidas de alforria cada vez mais numerosas depois de 1879, não deve ter a abolição trazido grandes transtornos à economia açucareira” (idem, p. 106).
ANTES
O problema é mais situar a crise que antecedeu à Abolição do que alguma que a tiver sucedido no tempo.
Em 1884, Bandeira Júnior – que seria, alguns anos depois, em 1901, autor do primeiro estudo sobre a indústria de São Paulo – escreveu, em Considerações sobre a Crise Financeira e o Elemento Servil:
“… o Brasil atualmente deve a soma fabulosa de perto de novecentos mil contos, o que para o juro anual precisa de renda maior de quarenta e sete mil contos. (…) A dívida interna fundada eleva-se à quantidade de 405.640:400$000 (…). O elevadíssimo juro de 6% que o Estado paga pela dívida interna constitui o mais poderoso elemento de atraso que o comércio, a indústria, as estradas de ferro e outras empresas incontestavelmente lucrativas e proveitosas têm encontrado.
“Realmente para quem não quer trabalhar, para quem não deseja ao menos conhecer qual é a empresa ou indústria mais lucrativa para nela empregar seus capitais tendo só o ônus da fiscalização, é a apólice o melhor asilo do dinheiro, comparado mesmo com o emprego predial que com aquela rivaliza em segurança.
“Os impostos, alguns quase bárbaros, outros vexatórios e até ridículos, atrasaram os passos da indústria ainda nascente, reduziram o consumo e tornaram a existência cada dia mais difícil e mais cara. (…) O que agora tanto alarma, não existiria se o laissez-faire, laissez-passer não fosse a nossa divisa” (cf. Flag Junior [Antonio Francisco Bandeira Junior], Considerações sobre a crise financeira e o elemento servil, Typ. União de A. M. Coelho da Rocha & C, Rio, 1884).
Bandeira Junior aponta que:
1 – Os bancos preferiam, devido aos altos juros dos títulos emitidos pelo Estado monárquico, emprestar ao governo, o que secava o financiamento às empresas (“Pelo balanço do Banco do Brasil no mês de maio deste ano, vê-se que só em letras do Tesouro tem ele 38.940:0008$, isto é, todo o capital e mais 5.940:0008$; (…) Do balanço do Banco Rural no mesmo mês se verifica que ele forneceu ao Tesouro a quantia de 7.070:000$, todo o seu capital menos 30:000$. (…) A soma total desviada pelo governo dos nossos dois principais estabelecimentos bancários no fim de maio montava em seu total a 55.647:000$000”).
2 – Os proprietários rurais não conseguiam, crescentemente, pagar os empréstimos que haviam tomado para a compra de escravos. A carteira hipotecária dos bancos tornara-se cronicamente deficitária (“No período de 16 anos registra a sua [do BB] carteira hipotecária um prejuízo conhecido de 666:000$000. Tem em hipoteca 770 fazendas com 34.837 escravos, no valor de 29.165:000$000. (…) O Banco Predial, que no último Relatório assinala o prejuízo de 149:886$ e já prepara o espírito dos acionistas para um outro, avaliado pela própria Diretoria em 40%, ou 428:000$000 (vide Relatório, fls. 25, anexo O) tem 7.336:000$000 de letras hipotecárias em circulação! Dessa quantia, 6.807:000$000 estão empregados em 197 fazendas com 4.323 escravos”).
3 – A principal garantia desses empréstimos eram os escravos (50% a 70% do valor das garantias). Mas, além de ser seguro que os escravos iam deixar de ser uma propriedade dos fazendeiros – ou seja, iam deixar de ser escravos -, era impossível vendê-los por um preço no mesmo valor estipulado nas garantias, desde que o preço máximo estabelecido, nas alforrias pelo Fundo de Emancipação, era 300 mil-réis (“… o valor do escravo é atualmente quase nulo, basta considerar que por mais jovem e robusto que ele seja, tendo o pecúlio de 300$000, promove a ação de liberdade e consegue-a, muito embora esteja hipotecado por 1:200$000”).
O estado de marasmo que acometia o país – a que se referiu Euclides da Cunha – já era, para Bandeira Júnior, o principal sinal da crise:
“Qual é, porém, o acontecimento que assim quase subitamente, tanto impressiona e agita todas as classes da sociedade brasileira? Qual o fato que veio ainda mais agravar a nossa situação? A estas perguntas ninguém satisfatoriamente responderá; a razão é simples: porque nada de novo ou de extraordinário aconteceu”.
DÍVIDA
Essa “falta de alguma coisa nova” – a estagnação da vida oficial, enquanto as correntes da vida popular se avolumavam – era mantida pela dependência financeira da banca inglesa, a rigor, do banco N.M. Rothschild & Sons.
Hoje, que o domínio dos monopólios financeiros imperialistas está em tal decadência que seus porta-vozes são capazes de quase qualquer alienação, já apareceu quem argumente que o escravismo – o escravismo que existia no Brasil, na década de 80 do século XIX – não era, ao contrário do que um cidadão normal pode imaginar e até sentir, um sistema tremendamente improdutivo. Ora, diz-se, isso não é verdade para as “tarefas intensivas em esforço” (v., por ex., F.R. Versiani, “Brazilian Slavery: toward an Economic Analysis”, Revista Brasileira de Economia, v. 48, nº 4, 1994, p. 463 e segs.; é duro ler revistas brasileiras – e autores supostamente brasileiros – na “língua científica” do sr. Mercadante, o inglês; mas existem alguns que merecem esse destino).
Realmente, o trabalho escravo é muito produtivo para tarefas que não sejam produtivas – e desde que não apareça alguém com a ideia de economizar esforço, ou seja, mecanizar o que antes não era mecanizado… O ideal da produção humana, evidentemente, não é o de manter um nicho para o esforço físico realizado debaixo do açoite.
Além disso, o critério geral de produtividade – daquilo que é ou não produtivo, do que é mais ou menos produtivo – refere-se ao conjunto da economia nacional, comparada com outras economias nacionais: ou seja, refere-se ao desenvolvimento nacional e internacional das forças produtivas.
A história financeira do Império tem como base o importacionismo desvairado e a incapacidade, mantida pelo chicote privado e pela coerção do Estado, de produzir aquilo que de mais elementar o país necessitava. Tal como enxergou José Bonifácio em 1823, a produção escravagista, voltada, no essencial, para fora, era, no século XIX, um entrave ao desenvolvimento interno – com seu corolário ideológico, o parasitismo ociosíssimo de toda uma classe, a dos senhores de escravos, e sua incapacidade de pensar e criar uma nação. Evidentemente, isso não quer dizer que não caminhamos nessa direção – o que significa, na construção de um Estado nacional. A mobilização do país durante a “Questão Christie” é um dos grandes momentos nesse caminho.
Mas é uma impossibilidade a construção de um Estado plenamente nacional – vale dizer, de uma Nação plenamente independente – quando uma parte da população, aquela que produz, é escrava (uma autora contemporânea abordou essa questão de outro modo: a escravidão como “uma forma específica de privatismo”, em que existe “uma esfera privada de exercício da violência”; é verdade, acrescentamos nós, que a coerção privada também existe no capitalismo – numa fábrica, por exemplo; mas também é verdade que nem se compara àquela existente no escravismo; v. Wilma Peres Costa, A economia mercantil escravista nacional e o processo de construção do Estado no Brasil (1808-1850), in Tamás Szmrecsányi e José Roberto do Amaral Lapa (orgs.), História Econômica da Independência e do Império, Hucitec, 1996, p. 153).
O atoleiro londrino em que a monarquia se afundou é uma demonstração eloquente de como o escravismo, apesar dos esforços de alguns homens – não dos menores que o país já teve – conduziu à dependência financeira externa.
Valentim Bouças relata 17 grandes empréstimos em Londres durante o Império – 13 durante o Segundo Reinado – nos anos de 1824, 1825, 1829, 1839, 1843, 1852, 1858, 1859, 1860, 1863, 1865, 1871, 1875, 1883, 1886, 1888 e 1889 (cf. Finanças do Brasil Vol. XIX, Rio, 1955, p. 174).
Era o que fazia Silva Jardim denunciar:
“… somos um povo sem indústria fabril e manufatureira quase, exportamos pouco, tudo importamos do estrangeiro; e são-nos desprotegidos os poucos germens de vida industrial [com] o proletariado, principalmente nas cidades do Norte, na miséria e com fome, quando um bom sistema de trabalhos públicos poderia tirá-lo desse estado. (…) Estamos, sobretudo, paupérrimos! O país deve muito ao estrangeiro, e aos próprios cidadãos; pedindo todos os dias dinheiro emprestado, pagando sempre juros (…). Decididamente, cidadãos, é irremediável a situação financeira do Brasil dentro da monarquia; deixai que os pseudo-estadistas se deem tratos à imaginação para o suposto equilíbrio de seus imaginosos orçamentos; não será com as águas do Amazonas, que de um momento para outro pagaremos as nossas dívidas, nem as folhas dos arvoredos correm como cédulas de banco” (Silva Jardim, “A República no Brasil”, Imp. Mont’Alverne, Rio, 1888).
11
Os empréstimos tomados na Inglaterra somaram 68.191.900 libras esterlinas até 1889. Somente 13.800.000 desse montante foram para investimento em obras, cerca de 20% do total (o cálculo de quanto foi aplicado em “obras reprodutivas” está em Maurício Vinhas de Queiroz, Uma Garganta e Alguns Níqueis, Ed. Aurora, Rio, 1947, p. 39).
Os outros 80% serviram para cobrir amortizações e juros de empréstimos anteriores – ou déficits orçamentários, o que é quase a mesma coisa: o dogma dos “metalistas”, o lastro supostamente em ouro, eternizava déficits, que eram cobertos por empréstimos em libras esterlinas, que ocasionavam outros empréstimos, etc.
Mas esses empréstimos também serviram para cobrir os contratos com garantia de lucros pelo Tesouro (“garantia de juros” ou “garantia de retorno”, como se falava na época) de empresas estrangeiras, sobretudo inglesas, estabelecidos desde 1852 – e, sobretudo, desde 1857, quando essa “garantia” passou de 5% para 7% ao ano.
Com isso, o estoque de investimento direto estrangeiro (o dinheiro externo em empresas) passou de 1,3 milhão de libras esterlinas em 1840 para 40,6 milhões em 1889. Ou seja, foi multiplicado por 31, entre a Maioridade e a deposição de Pedro II.
Mais de 80% desse estoque correspondia ao setor ferroviário, cujas concessões tinham prazo de 50 a 90 anos, com “garantia de retorno” de 7% – muito acima dos juros de 2,4% a 3,4% pagos pelo títulos públicos ingleses.
[NOTA: Embora não seja nosso tema (na verdade, não deixa de ser), além disso era concedido, às companhias inglesas, isenção de tarifas na importação de trilhos, máquinas, instrumentos, carvão, e privilégio de explorar as terras vizinhas à ferrovia (até 30 km de cada lado dos trilhos) – inclusive o poder de desapropriar áreas – para extração de madeira, areia, exploração de pedreiras e até de “pedras preciosas, ouro ou qualquer metal” (a legislação sobre as concessões de ferrovias está em Cyro Diocleciano Pessoa Junior, Estudo Descriptivo das Estradas de Ferro do Brazil, Precedido da Respectiva Legislação, Imp. Nac., Rio, 1886; v., também, Ana Célia Castro, As Empresas Estrangeiras no Brasil 1860-1913, Zahar, 1979, pp. 32-38 e 41-57).]
Essa “garantia de retorno” teve resultado pífio: “as estradas de ferro representaram o principal item de despesa do governo imperial a partir dos anos 1860. Havia 16 empresas beneficiadas com garantias, com capital de £ 16,7 milhões e apenas 2.900 km de linhas dos 9.600 km existentes em 1889” (cf. M. de P. Abreu e L.A.C. do Lago, op. cit.).
A maior parte da extensão de linhas férreas construídas nessa época (1852-1889) foi de iniciativa nacional – com notável desenvolvimento da engenharia ferroviária brasileira.
Enquanto isso, “cumulativamente, o governo teria gasto em menos de 30 anos, até 1888, cerca de £ 11,3 milhões honrando garantias” (idem).
A “garantia de retorno” foi aplicada, inclusive, em estradas de ferro em que os ingleses tinham apenas açambarcado o capital. O principal exemplo é a Santos-Jundiaí, construída por Mauá e tomada pelos ingleses após a ação de N.M. Rothschild (o relato é do próprio Mauá, em sua “autobiografia”). A Santos-Jundiaí, com nome de São Paulo Railway, foi a mais lucrativa empresa ferroviária do país no século XIX, devido à exportação de café.
OS “NOSSOS”
O principal problema do endividamento externo do Império, portanto, é que servia para drenar recursos do Brasil ao país em que tinha sido feita a dívida – a Inglaterra.
Os “nossos banqueiros” (!) – como a ralé escravista chamava aos Rothschild – nada tinham a opor. O balanço final do período imperial (1822-1889) explica a generosidade:
“O capital inicial dos empréstimos externos do Império, resgatados ou não, elevou-se a £ 68.191.900, ou 640.913 contos [1 conto = 1 milhão de réis], segundo a taxa cambial média dos anos em que foram realizados. A soma dos empréstimos resgatados foi de £ 37.458.000. A Receita arrecadada pelo Tesouro Nacional durante o antigo regime, inclusive a Ordinária e Extraordinária, não passou de 3.738.383 contos, tendo sido realizada a despesa de 4.496.565 contos, donde resultou o déficit total de 758.182 contos” (Valentim Bouças, op. cit., p. 174).
Mas é necessário acrescentar, pelo menos, mais 5.949.000 de libras esterlinas em juros à banca londrina – isto é, aos Rothschild – no mesmo período (cf. M.P. Abreu, A dívida pública externa do Brasil, 1824-1931, TD nº 83, PUC-RJ, 1985, p. 12).
O único momento em que os Rothschild manifestaram resistência a conceder um empréstimo, foi justamente o de maior aflição da monarquia: a Guerra do Paraguai. Trata-se de uma história modelar.
O Império, desde 1831, reduzira bastante o efetivo do Exército – no início da guerra (novembro de 1864), havia menos de 12 mil homens no Exército para enfrentar um exército paraguaio de 62 mil homens, superior à soma de soldados do Brasil, Argentina e Uruguai. Como apontou, quando a guerra começava, Ferreira Viana, “temos abandonado a Marinha e o Exército, e só depois que o estrangeiro nos veio açoitar as faces foi que levantamos um brado de indignação, que foi sufocado pela nossa fraqueza. Os oficiais do Exército e Armada recebem os soldos pelas tabelas de 28 de março de 1825 e 1º de dezembro de 1841. Há quanto tempo para no senado a resolução que tem por fim aumentar a 5ª parte do soldo dos oficiais reformados do Exército e Armada?” (Ferreira Vianna, A Crise Commercial do Rio de Janeiro em 1864, Garnier, Rio, 1864, pp. 21-22).
Nessa situação, o governo resolveu tomar mais um empréstimo em Londres. Foi então que o representante brasileiro, Francisco Inácio de Carvalho Moreira, barão de Penedo, recebeu a seguinte carta:
“Londres, 14 de agosto de 1865.
(…)
“V. Exa. sabe que até agora nós, os Agentes do Governo, fomos pagando as vultosas quantias requisitadas por V. Exa. sem que houvéssemos feito nenhuma observação; hoje, porém, dados os vários rumores postos em circulação, que tendem, mais ou menos, a depreciar o crédito brasileiro, pensamos ser nosso dever indagar de V. Exa. suas intenções para bem atender às necessidades do Governo.
“V. Exa., por certo, há de ter visto nos jornais referências acerca de um adiantamento por um dos principais bancos, e também, que o Governo estava em negociação com importante firma, para a obtenção de um grande empréstimo; agora, que já se sabe que o governo está autorizado a contrair este empréstimo que deve ser feito quanto antes, a fim de satisfazer as vultosas despesas ultimamente ocorridas nesse País, V. Exa. nos desculparia, com certeza, se pedíssemos nos fornecesse maiores informações sobre o assunto e se desejássemos ser postos a par das intenções de V. Exa.
“Além da soma de £ 350.000 [adiantados], que o Governo nos deve, £ 150.000 serão necessárias para o pagamento dos dividendos do mês próximo; verificamos, também, que cerca de £ 200.000 serão precisas para satisfazer os pagamentos por contratos já registrados. Podemos, portanto, dizer que o Governo Imperial precisa de £ 700.000 para resgatar compromissos imediatos.
“Mesmo em tempos ordinários hesitaríamos em fazer-lhe esse adiantamento, porém, no atual estado do mercado monetário, devemos confessar francamente que não entra em nossas cogitações promover o referido adiantamento.
“Nós, portanto, já que V. Exa. está autorizado a levantar dinheiro, tomamos a liberdade de escrever estas poucas linhas para solicitar aquelas informações, as quais V. Exa. nos julgará com o direito de tê-las. O público espera ver um empréstimo lançado dentro em breve; é, portanto, nossa humilde opinião, não haver probabilidade de melhoria do crédito brasileiro enquanto estivermos ameaçados dessa operação; e, se bem que as cotações dos títulos brasileiros não sejam muito favoráveis no momento presente, ainda que esperássemos, não veríamos probabilidade daquela melhora enquanto o Governo Imperial se vê a braços com uma guerra dispendiosa, e com a nossa moeda tão cara para o Brasil, tendo, portanto, de se aguardar tipos [preço real dos títulos] muito mais baixos que os obtidos pelos títulos emitidos em operações passadas.
“Confiamos, portanto, na bondade de V. Exa. para nos informar, com a possível brevidade, quais suas intenções a respeito do reembolso dos nossos adiantamentos e também, se não fosse abusar de V. Exa., quais seus planos com referências a futuros ajustes financeiros.
“Temos a honra de ser, de V. Exa. criados e humildes servidores.
a) N. M. Rothschild & Sons”.
Os Rothschild estavam, obviamente, se aproveitando das dificuldades do Brasil. O barão de Penedo, um mês depois dessa carta, assinou um empréstimo de £ 6.963.600 em péssimas condições para o Brasil: “tipo de 74” (títulos vendidos a 74% do preço de face), juros de 5% ao ano e retenção, pelos Rothschild, de £ 1.963.600. Em termos líquidos, um empréstimo de £ 5.000.000 ou 68.850 contos de réis (cf. Bouças, op. cit., pp. 159-161).
Durante a última década do escravismo, a de 80 do século XIX, o serviço da dívida (juros e demais encargos) ultrapassou 30% dos gastos do governo.
ALGO NO AR
Muitos anos depois da Guerra do Paraguai – e, aliás, após a Abolição e a República – Machado de Assis escreveu:
“Deus meu! Há pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes que fazem a barba, que namoram, que se casam, que têm filhos, e, não obstante, nasceram depois da batalha de Aquidabã! Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e preguiçosa de outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar com a eletricidade? Não há dúvida que os relógios, depois da morte de López, andam muito mais depressa” (Gazeta de Notícias, 25/03/1894).
A experiência da Guerra do Paraguai tornara impossível o antigo modo de viver. No entanto, o país vegetava sob o escravismo. Ao fim da guerra, quando Castro Alves escreveu “O Navio Negreiro”, é dos homens que venceram em Tuiuti e Itororó que ele se lembra:
“Existe um povo que a bandeira empresta/ Pra cobrir tanta infâmia e cobardia!…/ E deixa-a transformar-se nessa festa/ Em manto impuro de bacante fria!…/ Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,/ Que impudente na gávea tripudia?/ Silêncio. Musa… chora, e chora tanto/ Que o pavilhão se lave no teu pranto!…/ Auriverde pendão de minha terra,/ Que a brisa do Brasil beija e balança,/ Estandarte que a luz do sol encerra/ E as promessas divinas da esperança…/ Tu que, da liberdade após a guerra,/ Foste hasteado dos heróis na lança/ Antes te houvessem roto na batalha,/ Que servires a um povo de mortalha!…”
A Lei do Ventre Livre – mais que seus resultados – seria o sinal de que até a oligarquia escravista conseguia perceber que algo tinha de mudar.
[NOTA: Um aspecto que não tocamos, quando abordamos a aprovação desta Lei, mas ainda está em tempo, reside em que ela foi aprovada por deputados que representavam as províncias ao norte do Espírito Santo e de Minas Gerais; a oposição veio, principalmente, dos deputados do Sudeste e do Sul. Na discussão, 64% dos deputados destas últimas regiões manifestaram-se contra a proposta, enquanto 83% dos deputados das províncias do Nordeste e Norte defenderam a Lei do Ventre Livre. Ou seja, os representantes dos cafeicultores foram o maior obstáculo à sua aprovação (cf. J.M. de Carvalho, A Construção da Ordem/Teatro de Sombras, 3ª ed., Civilização Brasileira, Rio, 2007, p. 310).]
Oito anos depois da Lei do Ventre Livre (1871) era iniciada uma nova fase da luta abolicionista, com o discurso do deputado Jerônimo Sodré, a 5 de março de 1879.
Depois, em discurso pronunciado na Câmara, Nabuco reconheceria – o que não é pouca coisa, considerando a sua extraordinária vaidade – o pioneirismo, na luta parlamentar abolicionista, de Sodré, lembrando “o dia memorável em que o nobre deputado pela Bahia, o sr. Jerônimo Sodré, proclamou, não a emancipação gradual, a emancipação transigindo com os interesses conservadores do país, mas a emancipação imediata e pronta” (v. Joaquim Nabuco, Obras Completas, Tomo XI, IPE, 1949, p. 133).
É notável este modo de Nabuco apresentar o discurso de Sodré, até porque ele próprio, na época – um ano antes – não tinha a mesma posição. Mas é verdade o que ele diz.
Realmente, foi uma façanha para alguém – como Sodré – que era senhor de escravos, filho de fazendeiros e senhores de escravos, “ultramontano” (ou seja, membro da ala mais à direita do catolicismo), principalmente em uma Câmara onde tinha por colegas os deputados Rui Barbosa – ausente da sessão por doença – e Joaquim Nabuco.
Além disso, o discurso é notável pelas reações de outros deputados, em uma legislatura onde todos na Câmara eram do Partido Liberal. Essas reações, aliás, são um testemunho da esclerose que acometia a maior parte dos liberais. Como já ressaltamos, a Abolição fazia parte do programa liberal de 1869. Dez anos depois, com uma Câmara totalmente liberal, eles não fazem outra coisa, senão colocar obstáculos à libertação dos escravos.
12
O pronunciamento de Jerônimo Sodré marcou o início da fase final, no parlamento, da luta pela Abolição. Além do que já dissemos, ele tem, também, outra importância: a de mostrar qual era a consciência abolicionista – e trata-se da mais avançada consciência abolicionista – naquele momento.
A 5 de março de 1879, o deputado Sodré começou por abordar a questão da educação no Brasil – ele era professor da Faculdade de Medicina da Bahia, e, também, professor do que correspondia, na época, ao ensino médio.
Suas opiniões recebem o apoio, formal, de outros deputados. Então, os colegas de Sodré têm uma surpresa:
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: … a lei de 28 de Setembro anunciou a este país que daí em diante nenhum indivíduo mais nasceria escravo; lei que eu aceitei, porque não sou daqueles do tudo ou nada; mas lei que condenei, profliguei, com todas as forças, porque é manca, não favorece, nem garante a condição do protegido, e ainda menos a do possuidor. Lei funesta, digo, senhores, porquanto nas grandes questões sociais não podem as reformas ser mutiladas, nem truncadas; é a pedra, que rola da montanha, e que por força há de chegar ao abismo… É preciso que aqui cogitemos do futuro; todos sabem; a sociedade brasileira está sobre um vulcão. Não nos iludamos. Todas as circunstâncias, os fatos de todos os dias aclaram bem o espírito, se reproduzem a todo o instante. E ainda há pouco a voz eloquente do nobre senador por S. Paulo acaba de pedir a este parlamento medidas repressivas contra o elemento servil.
UM DEPUTADO: E essa reprodução de fatos é por falta de repressão.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Vimos ainda agora o ilustre Sr. ministro da Justiça, um dos maiores luminares de nossa jurisprudência (apoiados), apresentar um projeto atinente à reforma da lei penal em relação ao elemento servil. Mas, com dor profunda, declaro a S. Exª que não posso prestar-lhe o meu humilde apoio em semelhante lei. Não posso prestá-lo, senhores, porque contra ela protesta a humanidade; contra ela protesta ainda a ciência, protesta enfim a civilização moderna! (Apoiados e apartes.) A prisão celular por anos quer dizer, mais nem menos, a morte lenta; reduzir o indivíduo à condição de irracional, fazendo-o abdicar a razão, e quase sempre sucumbir antes pela inanição!
DEPUTADO FELÍCIO DOS SANTOS: Não apoiado.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Deixo para discutir, oportunamente, com o nobre colega. A prisão celular, Srs., no nosso país, nesta latitude e clima, se for executada como deve ser, nenhum homem poderá resistir por 10 anos.
DEPUTADO FELÍCIO DOS SANTOS: Não apoiado.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Eu asseguro ao nobre deputado, antes de quatro anos o indivíduo submetido a esta punição será vítima da alienação mental, ou da inanição ou estiolado pelas diferentes diáteses, que acometem as prisões.
DEPUTADO FELÍCIO DOS SANTOS: Não é a prisão celular que produz isso; é que o maior número dos criminosos são loucos; a loucura se desenvolve mais tarde.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Se por um lado não desejo ver a reforma do elemento servil mutilada, não quero encarar, por outro, esta lei, que vem sobressaltar o meu espírito e consciência!
DEPUTADO ILDEFONSO DE ARAÚJO: A ideia é aceita, em outros países vai produzindo os melhores efeitos.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Os piores; mas volvamos ao ponto, não há entre nós possuidor nem possuído; não há condições que garantam os senhores, constantemente, presa de todas as atrocidades que os jornais diariamente registram (Apartes). Apelo para a filantropia desta augusta câmara e dos poderes públicos. Quanto melhor não fora resolvermos nós, todos liberais, o grande problema? Irmos adiante do que fizeram os conservadores (Apartes). Eles iniciaram a marcha, embora condenada; nós que representamos as ideias democráticas, que queremos libertar o cidadão pelo meio da eleição, pelo voto e pela instrução, só deveríamos anunciar à pátria: “neste país todos os brasileiros são cidadãos, todos são livres!” (muitos apoiados, aplausos das galerias e não apoiados. Grande interrupção pelos apartes que se trocam).
DEPUTADO CÂNDIDO DE OLIVEIRA: Seria a ruína do Brasil, e nada mais.
DEPUTADO MARCOLINO MOURA: Os Estados Unidos provaram o contrário.
DEPUTADO GALDINO DAS NEVES: Há de decidir o escrúpulo da Coroa.
(Há outros apartes)
O Sr. PRESIDENTE: Atenção. Deixem continuar o orador.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Sr. presidente, não estranho a posição em que me acho colocado nesta ilustre assembleia, e se não me arreceasse do paralelo, eu diria que me acho nas mesmas condições de Wilberforce, no parlamento inglês, quando, senhores, aquele grande filantropo, unido a Pitt e a Fox, pela vez primeira, apresentou o bill slave trade. Quantas perturbações não produziu? O mesmo desagrado houve, a mesma agitação deu-se, abafando a voz dos oradores; as mesmas considerações, terminando pela rejeição do bill por imensa maioria; mas tal foi a força da ideia, tal o entusiasmo, que Wilberforce, mais tarde teve o prazer de ver realizado o seu pensamento, de todos os dias, e que tanta comoção havia produzido!
DEPUTADO JOAQUIM NABUCO: A Inglaterra indenizou. (Há outro apartes.)
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Ninguém o nega: e eu não disse à Câmara que não queria respeitar o direito de propriedade; pelo contrário insisto pela emancipação atendendo-se aos direitos adquiridos, porque o contrário seria ofensa dos privilégios garantidos pela Constituição.
UM DEPUTADO: A questão é de indenização.
DEPUTADO CÂNDIDO DE OLIVEIRA: Com que dinheiro? Só depois de descobrir um Potosi.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Não precisamos de Potosi para semelhante fim. (…) Calculai bem; atentai para as condições. Quando Euzebio de Queiroz, em 1850, com mão de ferro comprimia o tráfego da escravatura, todos os grandes pensadores daquele tempo, mas que entretanto eram espíritos obcecados, todos os lavradores, enfim, se levantaram contra essa salutar medida. Todos assoalhavam a morte da lavoura, a bancarrota do país! Entretanto, provaram os fatos, exuberantemente, que a produção do país cresceu muito mais, além do dobro daquela de tão desgraçadas épocas! (Apartes). Senhores, sou adepto da colonização estrangeira, mas para mim o primeiro modo de colonizar é aproveitar os braços que existem sem emprego em todo o nosso imenso território. Reparai bem: na hora em que a emancipação for uma realidade, todas as povoações rurais, quer queiram ou não, hão de sujeitar-se à dura lei do trabalho.
Sou filho de lavradores; estou habituado desde verdes anos a tocar a chaga com o dedo, conheço que, nós, senhores de escravos, vivemos acobertados com o manto da riqueza, quando aliás a miséria nos corrói as entranhas profundamente!
Ninguém com o elemento escravo tira lucro proporcional ao capital! (Apartes). Quando nas imensas fazendas há por exemplo duzentos escravos, apenas oitenta ou cem vão ao trabalho, cento e tantos pelo menos vivem à custa dos oitenta.
UM DEPUTADO: Pela má direção dos proprietários.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: É pela condição do elemento. O nobre deputado, que é lavrador, sabe que há escravos velhos, crianças, caducos, que não podem trabalhar, e cujo número importa em dous terços. Portanto, vê que não é pela má direção, mas pela condição da instituição.
(Há um aparte.)
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: O nobre deputado nada prova com o aparte que me dá; se não há trabalho livre entre nós, como provar que o escravo é mais barato? Já vê que este argumento pouco adianta, porquanto, se existe, e eu o sei, serviço livre, é rudimentar (Apartes).
Senhores, bem compreendo: a câmara não está de acordo com as minhas ideias, mas eu tinha necessidade de expendê-las; e ainda de fazer um reclamo àqueles que dirigem os destinos do país.
Quereis a reforma da instrução? Quereis a elegibilidade dos acatólicos? Quereis a libertação do cidadão pela eleição direta? Quereis tudo isto, e entretanto conservais o cancro, que tudo deteriora, tudo contamina, e tudo corrói! (Apoiados)
(Cruzam- se diferentes apartes.)
O Sr. PRESIDENTE: Atenção! Peço aos nobres deputados que não interrompam o orador.
(…)
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: É uma convicção profunda que tenho, que nutro desde muitos anos e que não se pode separar do meu espírito: não acredito em nenhum progresso moral, nem intelectual, enquanto existir entre nós o elemento servil. (…) Não tenho medo de que este país tão rico como é, apresentando as mais férteis zonas do mundo, verdadeiros elementos de grandeza em todos os reinos da natureza, faça exceção à lei geral da humanidade e só ele precise do braço escravo para poder subsistir. Isto é afronta à nossa inteligência, injustiça à nossa civilização, vilipêndio à nossa raça. (…) ao concluir há de permitir-me a ilustre assembleia, ao menos que, como uma aspiração, não muito remota, eu peça aos poderes públicos que olhem para a condição de cerca de 1 milhão de brasileiros, que jazem ainda no cativeiro!
DEPUTADO BELFORT DUARTE: Brasileiros, não.
DEPUTADO JERÔNIMO SODRÉ: Procuremos libertá-los do mesmo modo por que queremos emancipar o cidadão pelo voto livre! E, senhores, não tenhamos dúvidas: no dia em que o sol da América dourar as nossas montanhas e alumiar também as nossas férteis planícies, não se ouvindo mais o grito aflitivo do mísero escravo, nessa hora, senhores, nós com todo o orgulho, nos poderemos assentar, cheios do quanto valemos nos grandiosos e lautos banquetes da civilização moderna. (Muito bem; muito bem. Bravo das galerias. O orador é cumprimentado por quase todos os senhores deputados presentes.)
(cf. Annaes do Parlamento Brazileiro, Câmara dos Srs. Deputados, 1878/1879, Tomo III, pp. 191-196, 5/03/1879).
PENAS
A proposta de substituir as galés – os trabalhos forçados sob correntes – pela prisão celular (ou seja, pela solitária), nas penalidades a escravos, fora apresentada pelo ministro da Justiça, Conselheiro Lafayette Rodrigues Pereira, senador por Minas Gerais, província que, em números absolutos, concentrava o maior número de escravos – embora também fosse a mais populosa província do Império.
Em termos relativos, Affonso d’Escragnolle Taunay, em sua História da Cidade de São Paulo (1953), chamou a atenção para o fato de que, já em 1872, quando foi realizado o Censo, mais de 18% da população da província de São Paulo era constituída por escravos, o que era superior à média nacional (por volta de 15%).
Com apenas uma exceção, todas as províncias em que o número de escravos era, em 1872, maior que a média nacional estavam no Sudeste ou no Sul, incluindo o “município neutro” (a cidade do Rio de Janeiro, que não fazia parte da província do Rio de Janeiro). Eram as seguintes: Espírito Santo (27,59% de escravos na população), Rio de Janeiro (39,96%), Município neutro (17,80%), São Paulo (18,70%), Rio Grande do Sul (18,09%) e Minas Gerais (18,16%).
A exceção que mencionamos era o Maranhão, com 20,87% de escravos na população. Todas as demais províncias do Nordeste tinham uma população escrava, em termos percentuais, abaixo da média nacional.
Depois de 1876, quando um escravo foi enforcado em Alagoas, as galés perpétuas, na prática, substituíram a pena de morte como pena máxima nos casos de condenação de escravos: já em 27 de outubro de 1857, um “aviso” suspendeu as execuções até que fossem aprovadas pelo “poder moderador”, isto é, pelo imperador (cf. Perdigão Malheiro, A Escravidão no Brasil, Typ. Nac., Parte 1ª, 1866, p. 24).
Porém, os escravos, ao que tudo indica, preferiam as galés ao eito das fazendas. Em 1877, Pacheco e Chaves, chefe de polícia de São Paulo, escreveu, em seu relatório ao presidente da província: “Esses infelizes (…) tornam-se delinquentes, e até fazem-se responsáveis por crimes que não cometeram, para alcançarem aquela pena” (cit. por Celia Maria Marinho de Azevedo, Onda Negra, Medo Branco, Paz e Terra, 1987, p. 190).
Pode parecer, hoje, algo incrível que um escravo preferisse passar a vida sob correntes – inclusive com um ferro em torno do pescoço – do que na fazenda, sob o tratamento benfazejo do senhor de escravos e de seus feitores… Essa preferência diz quase tudo sobre o que era a vida nas fazendas de café no século XIX.
O tráfico interno de escravos, após o fim do tráfico transatlântico, acrescentara uma violência extra – e não pequena – à escravidão. Dezenas de milhares de indivíduos, separados de suas famílias, foram deslocados do Nordeste para o Sudeste, e tiveram que enfrentar uma região e um clima que não conheciam, a que não estavam acostumados, numa terra onde não tinham raízes, nem mesmo precárias.
Na década de 70 do século XIX, a insubmissão se caracterizou, então, pela reação individual dos escravos diante dos senhores e feitores. É isso o que aparece, sobretudo em São Paulo, sob a forma de crimes em relatórios policiais. Começaram, também, as primeiras sublevações.
Entretanto, segundo a opinião dos escravistas, o problema era a falta de repressão; não era a escravidão, mas a comutação da pena de morte em condenação perpétua às galés, diziam, que gerava os crimes dos escravos. Justificando a prisão celular, o então presidente do Conselho de Ministros, visconde de Sinimbu, declarou a um parlamentar, que duvidara da eficiência da pena: “O nobre senador é bastante ilustrado; sabe o que é a pena de isolamento em uma prisão. Hoje está reconhecido que não há pessoa ainda mais robusta que possa resistir a uma prisão solitária de 10 a 12 anos, o que quase equivale a uma nova pena de morte” (cf. J. Nabuco, Obras Completas, Tomo XI, ed. cit., p. 10).
Em resumo: o objetivo da prisão celular era restabelecer a pena de morte, somente que de forma muito mais dolorosa, com “10 ou 12 anos” de agonia.
Aliás, ao responder ao senador Ribeiro da Luz, que clamara pela volta da pena de morte contra escravos – “lavra pela nossa escravatura inquietadora insubordinação; (…) em consequência das comutações da pena capital, criou-se entre nós a descrença, a falta de confiança na justiça pública” – Sinimbu afirmou:
“Direi a S. Exª que, com a transformação da pena de galés em pena de prisão solitária com isolamento (sic), não se tem por fim abolir a pena de morte”.(cf. Annaes do Senado, 1879, Livro III, p. 130, 08/03/1879).
Aparentemente, ele está se referindo ao fato de que a pena de morte continuaria fazendo parte da lei. Mas, realmente, não é apenas a isso que ele se refere.
Porém, é importante notar que, já em 1879, os próprios escravistas constatavam que o país estava em conflagração (como disse Ribeiro da Luz: “lavra pela nossa escravatura inquietadora insubordinação”), mesmo com a campanha abolicionista ainda em ponto morto.
13
A concepção exposta por Jerônimo Sodré em 1879, ao propor a abolição imediata da escravatura, era mais avançada que a das discussões de oito anos antes, sobre a Lei do Ventre Livre. Porém, em um aspecto importante, constituía um recuo em relação ao parecer da comissão especial da Câmara, de 1871, porque admitia o direito de propriedade sobre o escravo – inclusive o direito à indenização. No parecer dessa comissão especial (v. a parte sétima deste trabalho), era afirmado: “não é propriedade o que recai sobre pessoas”.
Na época, foi um escândalo. O maior fazendeiro e senhor de escravos de São Paulo, Antonio Prado, referindo-se ao voto a favor desse parecer, na comissão, do representante paulista, João Mendes de Almeida, declarou: “Tenho até vergonha de pertencer a esta representação, mas, felizmente, não é um filho de São Paulo!”.
João Mendes, rival de Prado na liderança do Partido Conservador paulista (e na liderança da bancada conservadora paulista na Câmara), nascera no Maranhão.
Como lembrou Rui Barbosa alguns anos depois, houve quem chamasse de “comunistas” aos autores do parecer – e, inclusive, ao visconde do Rio Branco.
O abre-alas do escravismo, o então deputado fluminense Paulino de Sousa – que depois seria o último presidente do Senado do Império – gritava:
“… o escravo é objeto de propriedade, e, portanto, equiparado à coisa; (…) Oh! senhores, como quereis contestar o que é inconcusso, o que a razão jurídica tem sancionado, e é a verdade do direito em todos os tempos? As escravas são propriedade, e propriedade são os filhos que tiverem, como são os que têm tido até hoje, sujeita aos mesmos princípios que regulam o direito de propriedade em geral, aos quais a lei não fez exceção com relação a eles, como atestam a jurisprudência de todos os tempos neste país, a doutrina dos jurisconsultos, os julgados dos tribunais. (Apoiados; muito bem.) Como, pois, vindes dizer que os filhos das escravas não são propriedade dos senhores destas (…)?”
A demonstração final do escravista é altamente curiosa: “Se não são escravos, por que os libertais?”. Ou seja, os filhos ainda não nascidos das escravas já são escravos, porque existe quem os queira libertar…
VIRADA
Em que momento ficou inteiramente claro que a atividade parlamentar e oficial não apenas era insuficiente para conduzir à libertação dos escravos, mas, também, que o parlamento não podia ser o centro da ação abolicionista – e, aliás, era um obstáculo para a Abolição?
Na opinião de Rui Barbosa, que era deputado na época, a derrota do projeto Dantas de emancipação dos escravos – redigido pelo próprio Rui – mudara o caráter da luta.
Tal avaliação, que manteve ao longo da vida, não foi tardia. Pelo contrário, é o que afirma logo depois de derrotado o projeto – e da queda do senador Dantas, substituído, na Presidência do Conselho de Ministros, por Saraiva. Ao discursar no Teatro Polytheama, do Rio, a 7 de junho de 1885, diz Rui:
“… desiludido pelas decepções públicas que nos envergonham, penitente da nossa credulidade na transigência dos interesses negreiros, ensinado por uma experiência de fel a conhecer as oligarquias corrilheiras que nos governam (aplausos), venho anunciar-vos que cessou a quadra da esperança, mentirosa ludibriadora da vossa honra, e só nos resta o combate.” (aplausos).
Rui é ainda mais claro em seguida:
“… o combate é a palavra; é a tribuna; mas esta: a tribuna popular! (Aplausos.) Não aquela onde sob a vossa responsabilidade se fazem leis que vós detestais (aplausos); onde em nome da soberania popular governa a soberania das aldeias (aplausos), dos coronéis mandachuvas e dos magistrados políticos; (…) onde o eito legisla a reforma servil” (aplausos).
Como sempre reafirmaria, os aspectos jurídico-formais – inclusive as instituições – só têm sentido enquanto representam algo, politicamente, para o povo, para a Nação:
“… com um silêncio de acinte, com uma fuga sistemática, com uma pertinácia de deserções e sancadilhas, que burlaram uma dissolução, esterilizaram duas convocações extraordinárias, absorveram em trabalhos preparatórios três meses e meio, consumiram somas enormes em subsidio ao caldeirão da cozinha parlamentar (aplausos), unicamente para ficar demonstrado, em glorificação das camarilhas, que o Parlamento, criado para ser a boca independente de uma nacionalidade, pode converter-se na mordaça de um povo” (aclamações) (grifo nosso).
GOVERNOS
Desde janeiro de 1878, após Caxias retirar-se da vida pública, sucediam-se uma série de governos liberais – Sinimbu, Saraiva, Martinho de Campos, Paranaguá e Lafayette.
É difícil achar qualquer um deles notável.
Para o visconde de Sinimbu, senador por Alagoas, a escravidão nem parecia um problema: ele nem a cita, em seu programa de governo, e suas medidas passaram ao largo dela (cf. Organisações e Programmas Ministeriaes desde 1822 a 1889, Secretaria da Câmara dos Deputados, Imp. Nac., Rio, 1889, pp. 177-183).
Em relação a Saraiva, é quase impossível discordar dessa avaliação: “Foi o mais oportunista de nossos estadistas; e, depois que completou sua evolução política do partido conservador para o liberal, dificilmente seria encontrado entre os que disputavam os postos de combate. Aparecia, sim, para colher os louros da vitória” (Tavares de Lyra, A Presidência e os Presidentes do Conselho de Ministros no Segundo Reinado, RIHGB, nº 148, 1923, p. 598).
Ou, sobre o escravagista Martinho de Campos: “Nenhum parlamentar de sua geração praticou de modo tão acabado a arte da protelação” (idem, p. 599).
Ou, ainda, sobre o marquês de Paranaguá: “nunca despertou fanatismos nem tão pouco ódios” (idem, p. 600).
E sobre o último: “No governo, Lafayette não deu o que podia; e, como parlamentar, foi um cético, para quem a Política não tinha entranhas. Todos estão, entretanto, de acordo em que era um grande espírito” (idem, p. 602, grifo do original).
RUI E DANTAS
O senador Dantas, que sucedeu a Lafayette na Presidência do Conselho de Ministros, não era uma mediocridade. Representante da Bahia, assim como Saraiva e Cotegipe, ao contrário desses, evoluiu para uma marcada posição abolicionista.
Dantas sabia onde estava pisando e os cuidados que era preciso tomar, se pretendesse algum avanço da emancipação dos escravos no parlamento. Daí a cautela, quando expôs seu programa de governo, a 6 de junho de 1884:
“Cabe-me agora manifestar-vos o pensamento do gabinete na questão do elemento servil.
“Chegamos, Sr. presidente, a uma quadra em que o governo carece intervir com a maior seriedade na solução progressiva deste problema, trazendo-o francamente para o seio do parlamento, a quem compete dirigir-lhe a solução. (Apoiados; muito bem.) Neste assunto nem retroceder, nem parar, nem precipitar.
“É, pois, especial propósito do governo caminhar nesta questão, não somente como satisfação a sentimentos generosos e aspirações humanitárias, mas ainda como homenagem aos direitos respeitáveis da propriedade, que ela envolve, e aos maiores interesses do país, dependentes da fortuna agrícola, que, entre nós, infelizmente, se acha até agora ligada pelas relações mais íntimas com essa instituição anômala.
“É dever imperioso do governo, auxiliado pelo poder legislativo, fixar a linha até onde a prudência nos permite, e a civilização nos impõe chegar; sendo que assim se habilitará a coibir desregramentos e excessos que comprometem a solução do problema, em vez de adiantá-lo.
“Com este intuito, considera o governo indispensável e inadiável uma disposição geral, que firme no país inteiro a localização provincial da propriedade servil, já adiantada na legislação das províncias.
“Mas não basta.
“O fundo de emancipação gira até hoje num círculo acanhadíssimo.
“Para ampliá-lo, em proporções vastas, o governo promoverá uma medida poderosa.
“Refiro-me a uma contribuição nacional, que chame a concorrer para a extinção desse elemento toda a massa contribuinte, e não unicamente as classes proprietárias. (Apoiados; muito bem.)
“Ocorre ainda uma providência, que o gabinete julga de inteira equidade e oportuna: a libertação dos escravos que tenham atingido e atingirem a idade de 60 anos” (cf. Organisações e programmas ministeriaes desde 1822 a 1889, pp. 212-213).
O projeto anunciado, portanto, incluía a proibição do tráfico de escravos interprovincial (“localização provincial da propriedade servil”), a ampliação do fundo – instituído pela Lei do Ventre Livre – para alforriar escravos (“fundo de manumissão”) e a libertação dos escravos que atingissem ou já tivessem 60 anos.
A redação do projeto foi entregue a um dos deputados mais próximos de Dantas, o também baiano Rui Barbosa – e a apresentação ficou a cargo do próprio filho do presidente do Conselho, Rodolfo Dantas.
Era uma tentativa de acordo sobre a questão da abolição. No entanto, os escravistas consideraram o primeiro artigo do projeto, já, uma declaração de guerra:
“Art. 1.° – A emancipação, nas hipóteses para que especialmente dispõe esta lei, opera-se: a) Pela idade do escravo; b) Por omissão de matrícula; c) Pelo fundo de manumissão; d) Por transgressão do domicilio legal do escravo; e) Por serviços deste ao senhor.”
O projeto determinava o recadastramento (“rematrícula”) dos escravos – medida para detectar as omissões dos senhores de escravos desde a Lei do Ventre Livre.
Em três artigos na imprensa, Rui sintetizou o conteúdo do projeto, que:
1 – Proibia o tráfico de escravos entre as províncias do Império.
2 – Desvalorizava o preço do escravo anualmente (-5% a cada ano).
3 – Fixava o fim da escravidão para um número de anos determinado (10 anos).
4 – Considerava que o trabalho do escravo, para aqueles com menos de 60 anos, seria indenização suficiente, sem indenização em dinheiro.
5 – Ampliava o fundo de emancipação. Nas palavras de Rui: “Em treze anos a receita consignada a esse serviço pela Lei de 1871 produziu apenas doze mil contos, com que se libertara 18.000 escravos. O projeto do Governo (…) extrairia anualmente não menos de sete mil contos, a metade do que com a Lei de 28 de setembro se obteve em treze anos, quantia suficiente para alforriar cada ano quinze a vinte mil cativos”.
6 – Determinava que os escravos com 60 anos estavam libertos sem indenização.
Hoje, esse projeto pode parecer muito moderado. Mas, para os senhores de escravos, parecia uma revolução. Até porque, os autores do projeto recusaram o compromisso de que não haveria outras leis, futuras, para o fim da escravidão (outra vez, nas palavras de Rui: “Que é mais o que querem? Por um veto prévio a reformas ulteriores? Mas onde houve, nem haverá jamais debaixo do céu sabedoria ou potestade para inventar uma reforma irreformável? Quando uma solução é assaz compreensiva para dispensar novas soluções, naturalmente devemos esperar que aquela seja definitiva. Mas ter a presunção de proclamá-la imutável como o símbolo da fatalidade seria pueril”).
Apresentado no dia 15 de julho de 1884, o projeto provocou imediatamente o pedido de demissão do presidente da Câmara, o liberal Moreira de Barros, deputado por São Paulo. A rejeição do pedido de demissão pelo plenário da Câmara, equivaleria à uma moção de desconfiança contra o governo. Mas a demissão de Moreira de Barros foi aceita por três votos (55 a 52 votos).
No dia 28, porém, o presidente do Conselho compareceu à Câmara, diante da iminente derrota do projeto. Em sua defesa, discursou, nesse dia, Rui Barbosa:
“Isso que os nobres deputados defendem com o zelo violento do fanatismo (…), não é direito, é situação privilegiada, mas transitória e condenada em todas as consciências. Se este privilégio efêmero, caduco, agonizante não transigir; se às crises pacíficas opuserem o implacável — non possumus [não podemos], tempo virá em que seja tarde para capitular com as honras da guerra.”
A oposição era liderada pelos escravistas liberais de São Paulo e Minas, membros do próprio partido de Dantas e Rui. Foi um deputado liberal por Minas, João Penido, que apresentou nova moção de desconfiança contra o gabinete: “A Câmara, reprovando o projeto sobre o elemento servil, nega a sua confiança”.
A moção foi aprovada por 59 a 52 votos, devido a 17 deputados liberais que votaram a favor da moção (entre os conservadores, foram 42 os votos pela moção).
Entre os que votaram contra a moção, houve 48 liberais e 4 conservadores.
A distribuição provincial dos 17 votos liberais pela moção de desconfiança foi a seguinte: seis desses deputados liberais eram de Minas; três de São Paulo; três do Ceará; e um nas províncias do Rio de Janeiro, Paraíba, Goiás, Alagoas e Sergipe.
Quanto aos quatro conservadores que votaram a favor de Dantas, dois eram do Ceará, um do Rio Grande do Sul e outro de Santa Catarina.
O projeto Dantas/Rui Barbosa estava derrotado, apenas 13 dias após a sua apresentação, e Dantas foi obrigado a pedir ao imperador que dissolvesse a Câmara para a realização de novas eleições.
Mas a nova Câmara, em 4 de maio de 1885, aprovou, por 52 contra 50 votos, outra moção de desconfiança, assinada, entre outros, pelo futuro presidente Afonso Pena: “A Câmara dos Deputados, convencida de que o ministério não pode garantir a ordem e segurança pública, que é indispensável à resolução do elemento servil, nega-lhe a sua confiança”.
Assim, Saraiva foi chamado para substituir Dantas. Na apresentação de seu programa, a 6 de maio de 1884, a única menção ao problema da escravatura foi a seguinte:
“O intuito do ministério, quanto à questão do elemento servil, é apressar o mais possível a libertação de todos os escravos, dando porém tempo à nossa indústria agrícola para reorganizar o trabalho, e até auxiliando essa reorganização com uma parte do valor do escravo”.
Posteriormente, Rui Barbosa, ao ver como Saraiva reescreveu seu projeto, diria:
“E o Projeto Saraiva de onde vem? Do engenho do nobre Presidente do Conselho. (…) O ilustre Sr. José Bonifácio, cujas últimas orações pelos escravos hão de marcar época na historia da grande eloquência parlamentar, pôs o dedo na chaga da situação: a emancipação dos cativos não pode sair da cerebração de um fazendeiro. (…) É simplesmente um enunciado histórico e um enunciado fisiológico. (…) A escravidão gera a escravidão, não só nos fatos sociais, como nos espíritos. O cativeiro vinga-se da tirania que o explora, afeiçoando-lhe a consciência à sua imagem. O grande proprietário de escravos é principalmente um produto moral do trabalho servil”.
14
O parecer de Rui – como relator das comissões de orçamento e de justiça civil da Câmara – sobre o projeto Dantas de emancipação dos escravos foi divulgado a 4 de agosto de 1884, quando já fora derrotado (e o governo) desde o dia 28 de julho. Apesar disso, este documento, escrito em 19 dias e com um pouco mais de 200 páginas, é um dos mais importantes da História do Brasil:
“Não há talvez em toda a literatura sobre a campanha abolicionista estudo tão profundo e tão circunstanciado como o parecer de Rui Barbosa. Com a sua capacidade de captar as razões, de alinhá-las, num encadeamento cerrado, Rui mostra todos os aspectos da questão do trabalho escravo, analisando detalhadamente cada um deles. Na fase em que o problema, colocado no campo partidário, motivaria o parecer de Rui Barbosa, aumentavam as resistências a todos os passos no sentido de concretizar, de uma forma ou de outra, com indenização, sem indenização, depressa ou com prazo marcado, a abolição do trabalho escravo. Rui foi derrotado em seus propósitos, mas a sua contribuição continua a ser das mais importantes fontes para o estudo do problema. Um lustro depois, a Abolição seria consumada, e a República viria em seguida” (Nelson Werneck Sodré, O Que Se Deve Ler Para Conhecer o Brasil, Civ. Bras., 3ª ed., 1967, pp. 175-176).
Nos tempos atuais, existe quem se assuste com o tamanho do texto de Rui. Mas não há motivo: trata-se de um dos documentos mais interessantes de nossa literatura política, onde a ironia e a indignação não permitem o tédio, deste brasileiro tão famoso quanto, hoje, tão pouco conhecido por seus conterrâneos (nas Obras Completas, que estão no site da Casa de Rui Barbosa, este parecer constitui o Volume XI, Tomo I).
Verdade, o parecer é sobre um projeto que o próprio Rui, a pedido do senador Dantas, redigira. Por isso, é uma exposição sistemática da consciência abolicionista naquele momento, muito além do texto do projeto. Rui historia a luta pela liberdade dos escravos desde seus inícios, e, sobretudo, a partir da Lei do Ventre Livre – e examina, uma por uma, as alegações escravistas, colocando no ridículo os paladinos da casa-grande.
Contentamo-nos, aqui, em fornecer ao leitor apenas uma pequena amostra: o trecho em que Rui destaca “o espetáculo dado, em todos os tempos e países, pelas camadas sociais diretamente interessadas nos proventos da instituição servil, sempre que se trata de aboli-la, ou atenuá-la”. Diz ele:
“Esperar a anuência delas a essa transformação, dolorosa aos cômodos da grande propriedade, entre as nações onde esta se tem habituado, mediante uma herança multissecular, a ter por seiva o suor do escravo, é subordinar a reforma a uma condição, que nunca se realizará: porque os interesses opressores do escravismo, ainda hoje, entre nós mesmos, não recuam ante a ingenuidade característica de invocar a antiguidade remotíssima do cativeiro, como valente argumento contra os que julgam exagerado o prazo extintivo desse flagelo, no sistema de emancipação que entrega mais ou menos exclusivamente à morte a solução do problema. Como se, por mais antediluviana que seja a escravidão, a liberdade não fosse ainda mais antiga do que esta!” (cf. Camara dos Deputados, Sessão de 04/08/1884, Parecer nº 48 A, formulado em nome das commissões reunidas de Orçamento e Justiça Civil, acerca do projecto de emancipação dos escravos pelo sr. Ruy Barbosa, Typ. Nac., Rio, 1884, pp. 163-164, grifo nosso).
SOLUÇÃO FINAL
O pretexto para a moção de desconfiança que derrubou Dantas foi a vaia aos escravistas, por parte da população – inclusive aquela que frequentava as galerias da Câmara. Daí seu texto dizer “que o ministério não pode garantir a ordem e segurança pública, que é indispensável à resolução do elemento servil” (ver a parte anterior deste trabalho).
Algo perfeitamente ridículo.
Porém, depois da derrota do projeto Dantas é que os Ministérios – que sucederam a Dantas, presididos por Saraiva e por Cotegipe – seriam realmente incapazes de garantir a ordem e a segurança escravistas.
A prova disso são os próprios discursos do barão de Cotegipe, presidente do Conselho de Ministros a partir de 20 de agosto de 1885, após a renúncia de Saraiva, às vésperas da votação de sua “Lei dos Sexagenários” no Senado, onde os liberais não tinham maioria (uma boa descrição contemporânea da saída de Saraiva e da ascensão do conservador Cotegipe está em Memórias do Meu Tempo, do conselheiro João Manuel Pereira da Silva, prócer do Partido Conservador, Sen. Fed., 2003, pp. 547 e segs.).
A outra prova, se fosse necessário, é a passagem dos fazendeiros paulistas – inclusive o principal deles, Antonio Prado – ao campo da Abolição. A partir de 1886, São Paulo foi a província mais conflagrada pela sublevação dos escravos. O próprio partido de Cotegipe tornou-se, em São Paulo, abolicionista, o que inclui o líder – desde a morte de Luiz Gama, em 1882 – dos abolicionistas da província, Antonio Bento.
O projeto Dantas/Rui Barbosa era moderado, mas era claro no objetivo de extinguir gradualmente a escravidão. A libertação dos sexagenários, nesse projeto, firmava o princípio da não-indenização aos senhores de escravos.
A nova “Lei dos Sexagenários”, que substituíra o projeto Dantas/Rui Barbosa, tinha caráter meramente protelatório, em relação à abolição da escravatura. Rui, em seu discurso na homenagem ao Ministério Dantas, a 7 de junho de 1885, sintetizou as diferenças entre os projetos, salientando que as supostas semelhanças – levantadas por Saraiva – deviam-se a que “as pilhas do artifício parlamentar estão em atividade, para simular a vida neste defunto de nascença”.
A primeira questão é que o projeto Saraiva (depois, “Lei Saraiva-Cotegipe”) legalizava a escravidão de milhares de africanos, entrados ilegalmente no país desde 1831. A lei que proibiu o tráfico neste último ano era, exatamente, a base de milhares de processos, movidos por escravos, através de advogados abolicionistas, reivindicando sua condição de homens livres. O próprio Rui começara sua trajetória abolicionista, aos 19 anos, arguindo essa lei em benefício dos escravizados. Da mesma forma, Luiz Gama, inclusive antes de ficar conhecido por sua atuação como advogado. Aliás, antes mesmo desta atividade existir:
“No final da década de 1860, Luiz Gama era um funcionário público empregado na delegacia de polícia da capital de São Paulo. (…) como amanuense do Conselheiro Furtado de Mendonça, delegado de polícia e seu íntimo amigo, exercia uma gama variada de tarefas. (…)
“Em janeiro de 1868, estava a cumprir suas obrigações na delegacia quando por lá apareceu Vitor Augusto Monteiro Salgado apresentando três escravos e uma procuração. O proprietário, residente em Mogi das Cruzes, havia confiado a ele plenos poderes para negociar seus cativos, ou mesmo passar-lhes carta de liberdade, desde que houvesse quem por eles pagasse o preço exigido. Salgado pretendia vender os escravos na Corte, e para tanto foi até a delegacia requerer passaporte para que pudesse conduzi-los ao Rio de Janeiro sem problemas. Ao invés disso, entretanto, o que obteve do funcionário dessa repartição foi resposta bem diversa. No lugar do passaporte, recebeu o aviso de que um dos escravos que conduzia seria apresentado ao chefe de polícia:
“Apresento à v.s. o preto José, escravo do Tenente Coronel Antonio Mendes da Costa, Africano, de 22 a 25 anos de idade, seguramente importado depois da proibição legal do tráfico, o qual apreendi, como livre, a fim de v.s. o leve à presença do Ex.mo. sr. dr. chefe de polícia. Chamo a atenção de v.s. para a procuração inclusa, do próprio punho daquele tenente-coronel, na qual é assinada a idade de 28 anos ao dito preto.
“[assinado] O amanuense da polícia Luiz Gonzaga Pinto da Gama.
“O raciocínio do amanuense foi simples e baseava-se em uma conta aritmética. Se tinha 28 anos, como declarava seu senhor na procuração apresentada por Salgado, havia nascido em 1840, e se era africano, como ele mesmo podia ver, só poderia ter entrado no Brasil depois da lei de proibição do tráfico negreiro, promulgada em 7 de novembro de 1831. Assim, encaminhou José a outro funcionário público, o secretário de polícia Antonio Louzada Antunes, que no mesmo dia informou a apreensão do escravo ao chefe de polícia interino Tito Augusto Pereira de Mattos. Esse, por sua vez, (…) expediu um ofício ao delegado Furtado de Mendonça comunicando que o africano achava-se à sua disposição – ‘como importado posteriormente à promulgação da lei proibitiva do tráfico’ – para que fossem tomados todos os procedimentos de direito. Deu-se então início às investigações sobre a legalidade ou não da condição escrava em que se encontrava José” (cf. Elciene Azevedo, O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionistas na Província de São Paulo na segunda metade do século XIX, Unicamp/IFCH, 2003, pp. 75-77; da mesma autora, v., também, Entre escravos e doutores: a trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo, Unicamp/IFCH, 1997).
No entanto, o projeto Saraiva, na prática, revogava a lei de 1831, tornando legal a escravidão de dezenas de milhares de seres humanos – o que era, também, um atentado à Constituição do Império, como apontou Rui.
Além disso, o projeto Saraiva acrescentava algumas outras infâmias. Para nós, é suficiente mencionar apenas mais uma: ao invés de liberdade aos 60 anos, o novo projeto determinava que “os velhos de sessenta anos serão obrigados, até aos sessenta e cinco, a mais três anos de serviços, ou cem mil réis em dinheiro”.
Tratava-se, evidentemente, de firmar como princípio a indenização – e reafirmar que a solução do problema da escravidão era a morte dos escravos, como era defendido pelos escravistas desde antes da Lei do Ventre Livre.
Existiam, apesar de toda a mortalidade, em 1884/1885, segundo os cálculos de Vieira Souto, 110 mil escravos com 60 anos ou mais. Quase não é preciso lembrar que, além do princípio geral, a diferença de mortalidade, a cada ano, entre os 60 e os 65 anos, é mais do que ponderável.
FUTURO
Se há uma vitória que merece, plenamente, o nome de “vitória de Pirro”, foi a dos escravistas na “Lei dos Sexagenários” – ou “Lei Saraiva-Cotegipe”.
Seu primeiro efeito foi a falência pública e explícita do Partido Liberal: depois de atirar pela janela um dos principais pontos de seu programa, a abolição da escravatura, pouco lhe restou, exceto a mediocridade autoritária de Afonso Celso (pai), o visconde de Ouro Preto – ou a charlatanice estridente de Silveira Martins. Novembro de 1889 seria apenas o enterro dessa completa débàcle.
Os liberais, aliás, três anos antes do projeto Dantas, já haviam atirado ao léu o seu outro grande ponto de programa: as eleições diretas. Até 1881, todas as eleições do Império eram indiretas, até mesmo para vereador. Nesse ano, o indefectível Saraiva promoveu uma reforma eleitoral para instituir o voto direto. Junto com isso, mudou os critérios para o cidadão tornar-se eleitor: o número dos que estavam em condições de votar caiu de 1,1 milhão, na década de 70 do século XIX, para 142 mil, nas primeiras eleições diretas, após a reforma (cf. Jairo Nicolau, Eleições no Brasil: do Império aos dias atuais, Zahar, Rio, 2012, p. 33).
Assim, não é uma surpresa que o que se poderia chamar “ala esquerda” dos liberais tenha se aproximado dos republicanos – sobretudo quando, em 1887, o Partido Republicano assumiu oficialmente a bandeira da Abolição. Embora, republicanos como Luiz Gama (aliás, egresso dos liberais), Silva Jardim (genro do principal prócer liberal de São Paulo, Martim Francisco de Andrada), Rangel Pestana, e, inclusive, o futuro governador paulista Bernardino de Campos, tenham sido sempre abolicionistas.
Mais uma vez, é em Rui – na série de artigos que escreveu como redator-chefe do Diário de Notícias, depois reunidos no livro Queda do Império (volume XVI de suas Obras Completas) – que podemos observar mais nitidamente esse movimento de alguns liberais no sentido da República. Lembrando a luta pela abolição, a 10 de maio de 1889, portanto, antes da República, ele diz, sobre a Lei Áurea:
“É a maior de todas as nossas leis, a segunda constituição do Império. Diremos mais; é a verdadeira constituição da nossa nacionalidade; porque tudo é provisório e embrionário em um Estado, que assenta na escravidão.
“Mas atribuir-lhe o merecimento à coroa seria esbulhar a nação, a verdadeira redentora, a que alentou a propaganda abolicionista, inflamou o brio aos seus soldados, comunicou a sua vida ao coração dos escravos, e levou de tropel leis, câmaras, ministros e hesitações da realeza” (grifo nosso).
Rui, após o projeto Dantas, fora derrotado em três eleições – o que não o abateu nem um pouco. Mas ainda era um monarquista. No entanto, continua:
“Esta opinião nossa é antiga, é a que o redator-chefe desta folha defendia, quinze dias antes do 13 de maio, perante um meeting abolicionista na Bahia. ‘O mérito da política regencial [ou seja, da regente Isabel]”, dizia ele. “consiste em ter aberto os olhos à evidência, e não chicanar mais com o fato consumado. Reconheçamos-lhe este mérito; mas não deliremos. Preservemos a memória justa, saibamos descer às origens morais, e exercer o discernimento das responsabilidades. Não há hosanas que entoar aos deuses, mas confiança que cobrar em nós mesmos.’ ”.
A esse respeito, Rui estende a Abolição para um terreno muito além da monarquia:
“Abolicionismo, já uma vez o dissemos, é organização radical do futuro; abolicionismo é renascimento nacional. Os que fizeram esta campanha, assumiram para com a pátria um compromisso, que está por saldar: a eliminação progressiva das instituições servis; por outra: das instituições que viveram pelo consórcio com a escravidão, que se nutriram dos seus vermes, e agora, extinto o cativeiro negro, hão de conspirar tenazmente pela eternidade do cativeiro branco” (grifos nossos).
Posteriormente, alguns ideólogos iriam descobrir que a Abolição não foi uma bênção da princesa Isabel – algo que Rui, Silva Jardim e outros abolicionistas tinham afirmado já em 1888. Porém, pior foram aqueles que afirmaram o contrário – e, supostamente, em nome do “movimento negro” e até da memória de Zumbi dos Palmares…
Esse texto de Rui tem, precisamente, este outro mérito: a consideração de que a Abolição foi uma obra nacional, inclusive dos próprios escravos.
15
Ler o que escreveram homens que participaram pessoalmente da luta é tão esclarecedor, que é possível entender porque essa memória da Abolição foi, praticamente, banida para a clandestinidade nos anos que se seguiram a 1964, época em que a opressão da nacionalidade tornou-se a essência de um modelo econômico perverso e pervertido.
Por exemplo, no artigo de Rui Barbosa, que mencionamos (v. a parte anterior deste trabalho):
“A reação do gabinete 20 de agosto [Cotegipe] levara ao paroxismo a crise, em que a propriedade servil arquejava desde o ministério 6 de junho [Dantas]. Complicada com o conflito abertamente travado entre o exército e o governo, (…) com a dispersão incruenta, mas geral e definitiva, dos cativos em S. Paulo, a agonia do escravismo chegara ao estertor, desesperada e implacável.
“(…) Quando o êxodo da raça escravizada, propagando-se já pela província do Rio de Janeiro, mostrou ao poder que, para demorar os dias da escravidão, seria mister recativar, homem por homem, a massa inumerável dos evadidos, e guardar cada fazenda mediante uma companhia de sicários fardados (pois o soldado brasileiro repelia a missão ignóbil) – as exigências dessa conjuntura, decisiva em relação a toda a ordem social no país, encontraram a coroa e o executivo trêmulos, quase súplices, aos pés do exército agitado pelo calor da grande conflagração, a fraternizar publicamente com ela.
“Logo que o escravo se fez homem, pela consciência de que o era, e o non possumus [não podemos] militar desarmou as reivindicações dos proprietários, a abolição estava de fato promulgada. Ninguém se iludiu a este respeito, senão os diretamente interessados em eternizar a escravidão, e, dentre esses mesmos, apenas os menos inteligentes, ou os mais apaixonados. O tropel longínquo do povo negro, derramando-se pelos serros paulistas, murmurava aos nossos ouvidos. Entre as comoções, que traziam suspenso o espírito público, diríeis que, no azulado escuro das montanhas, cujo vulto se recorta no horizonte desta cidade, a imagem da raça levantada projetava a sombra pela imaginação do povo, como se o Cubatão estendesse de sobre os Órgãos a cabeça coroada pela insurreição pacífica dos escravos” (grifos nossos).
Ao contrário de certa historiografia posterior, que viu um conflito – ou quase isso – entre a ação dos escravos e o movimento nacional, Rui descreve a situação de um ponto de vista além dessa suposta contradição:
“A nação inteira declarava-se acoitadora dos fugidos. A lei espúria e infame de 1885 [a “lei Saraiva-Cotegipe”] convertera-se no maior dos triunfos para a propaganda abolicionista, que do estigma de ladra, forjado contra ela, soube fazer o mais glorioso dos florões, e obrigou a realeza, nas festas de Petrópolis, a penitenciar-se da sua obra, adereçando-se com as camélias do quilombo do Leblon. A polícia, hostilizada pela tropa e sequestrada nos quartéis a bem da ordem, perdera toda a ação nas ruas eletrizadas da capital (…).
“Tratava-se, portanto, apenas de saber que ministério viria assinar o ato da nação. O trono não deliberou, senão quanto à escolha pessoal dos referendatários. Não deliberou o gabinete, que, tendo oscilado, até à véspera, entre projetos de emancipação mais ou menos indenizada em serviços, viu-se obrigado, à última hora, pela pressão pública a subscrever o golpe imediato. Não deliberou a câmara, onde a liberdade foi decretada por servilismo, e as formas regimentares desapareceram no alvoroto. Não deliberou o senado, cujo voto a coroa reduziu à condição de formalidade subentendida, anunciando-lhe, pelos ministros, a sanção antes do debate final. Não deliberou a regência, que, comprometendo-se, por essa manifestação oficial, antes de receber o autógrafo legislativo, confessou a sua coação de ânimo (…).
“A lei de 13 de maio constitui, pois, um troféu revolucionário; troféu em que não há sangue, porque foi arrancado às inconsciências da política imperial, desarmada pela rebeldia incruenta dos escravos, com o apoio da opinião pública e do exército brasileiro. Não representa um benefício dos partidos, nem liberalidade alguma da coroa, mas a mais estrondosa submissão desta à intransigência de forças indisciplinadas e extralegais, assim como a mais inaudita decepção por que aqueles já passaram — um [partido], vendo envolvidos os seus créditos conservadores na mais radical de todas as ousadias, o outro achando-se reduzido a protestar contra uma usurpação, que vinha merecidamente punir-lhe os conluios recentíssimos com o escravismo.
“O ministério, que se organizasse, para opor veto a essa torrente, cujas represas estoiravam, teria desaparecido na catadupa como desprezível casca de noz, e, com ele, o príncipe que o sustentasse” (Rui Barbosa, Diário de Notícias 10/03/1889, in Queda do Império, OC, Vol. XVI, Tomo I, pp. 33-40, grifos nossos).
LAMENTO
Desde 1886, a situação nas fazendas era – não achamos outro termo mais adequado – insurrecional. Aliás, pode-se dizer, como Rui – com outras palavras – que a situação era insurrecional ou pré-insurrecional em todo o país. O governo de Cotegipe perdera qualquer legitimidade – e, portanto, autoridade. O Exército recusava-se a caçar escravos, que saíam em massa das fazendas. A polícia não conseguia reprimir nem abolicionistas nem escravos. No parlamento, Cotegipe queixava-se: “Estas fugas em massa, estes crimes que se cometem diariamente contra os senhores, são provocados sem dúvida por uma propaganda, não esta alta propaganda que se manifesta no seio do Parlamento, mas essa a que chamarei a propaganda da anarquia” (cf. Sessão do Senado, 13/09/1887).
Não era a escravidão, portanto, o problema, mas a propaganda abolicionista…
Entretanto, a onda de insubmissão dos escravos, que começara em São Paulo – a única província, segundo Nabuco, em que, após a supressão do tráfico, a escravidão “florescia” – alcançava o Rio de Janeiro.
Em defensiva, Cotegipe, no Senado, lamentava as acusações ao seu governo:
BARÃO DE COTEGIPE (presidente do Conselho de Ministros): … Nunca o governo, nem intencionalmente, pôs obstáculos à humanidade de alguns senhores que têm alforriado os seus escravos, em massa ou individualmente.
SENADOR DANTAS: Era o que faltava.
COTEGIPE: … o que nós reprovamos, o que o governo deve conter, é aquilo que a mesma lei manda punir: ela não permite que se perturbe, nem que se imponha por meio da coação aos senhores, a liberdade dos escravos.
Cotegipe exemplifica a “coação” a que estavam submetidos os senhores de escravos:
COTEGIPE: Ainda há poucos dias procurou-me aqui um fazendeiro da província de São Paulo, cuja família e ele próprio, creio, pertencem à comunhão liberal, e expôs-me o estado de falta de segurança em que ele e todos os seus se achavam. Disse-me que os seus escravos abandonavam em massa as fazendas, e entre eles até as próprias servas de casa, que eram tratadas como membros da família. Disse-me mais, que muitos dos seus vizinhos, levados pelo temor de perder de todo o serviço desses escravos, tinham resolvido dar-lhes liberdade condicionalmente, uns por três e quatro anos, outros por dois anos, e até um, somente pela colheita do presente ano; e que portanto recorria ao governo para que os garantisse, recomendando ao presidente da província que contivesse, como era de seu dever e ele tinha praticado, essa desorganização completa do trabalho das fazendas.
Não são necessários comentários para essa descrição. Mais adiante, o presidente do Conselho de Ministros explicita sua posição sobre o fim da escravatura:
COTEGIPE: (…) Ora, se entendo que a aceleração para o acabamento do estado servil, maior do que a estabelecida na lei, é um mal, como não quererei executar essa lei de forma que a transição se faça da maneira mais suave que possível for? (…) Se assim penso, não posso acoroçoar, e menos promover, essa continuada agitação contra efeitos de uma lei que não estão perfeitamente reconhecidos.
SENADOR DANTAS: Mas não poderá abafá-la, como não poderá fazer o sol parar em seu caminho.
COTEGIPE: Isto são palavras…
SENADOR DANTAS: São ideias; está na natureza desta questão em toda a parte; não está na força de ninguém fazer parar tal movimento.
COTEGIPE: Não se pode deixar de considerar como um efeito desta propaganda ilegal o fato da fuga em massa dos escravos das fazendas e crimes que em qualquer circunstância seriam reprovados, e que por isso passam como que despercebidos. A lei é muito severa sobre este assunto…
SENADOR CÂNDIDO DE OLIVEIRA: E daí a dificuldade de execução dela; eu denunciei isto na Câmara.
COTEGIPE: … [a lei] garante a propriedade, e, garantindo-a, não faz mais do que repetir o que a Constituição determina. Ora por insinuações, ora por provocação, porque outro motivo não pode haver para a retirada desses escravos das fazendas, retiram-se eles em massa ou individualmente e vão formar reuniões perigosas à tranquilidade dos habitantes, ou procurar — note-se — aqueles que são considerados chefes da propaganda, como se eles, nas fazendas, soubessem diretamente quem os devia proteger!
Cândido de Oliveira, senador por Minas Gerais, seria, depois, relator da Lei Áurea no Senado. Adquiriu fama como jurista – é patrono da mais conhecida entidade de estudantes de Direito do país; mas estava longe, nessa época, de ser um abolicionista.
Mais adiante, na mesma sessão do Senado, diz o presidente do Conselho:
COTEGIPE: Nada desacredita tanto a qualquer causa como os excessos dos mais exaltados, ou dos que, sob a capa da causa, promovem certos interesses que não são confessáveis.
SENADOR DANTAS: Mas isso também é um meio de condenar todas as grandes ideias.
Cotegipe, enfim, faz uma lamentação sobre os problemas do governo – e dos senhores de escravos:
COTEGIPE: Os atos praticados pelo governo e pelas autoridades, propriamente, são malsinados, de maneira que é difícil já encontrar autoridades que queiram arrostar esse perigo. “Capitães do mato” é o menos que se diz daqueles que pretendem restituir escravos fugidos às fazendas. Cumprindo com o que a lei manda, essas autoridades merecem elogios, em vez de censuras.
Pela disposição da lei, os próprios libertos que se retiram das fazendas, tendo contratado os seus serviços por um certo número de anos, são aprisionados pela polícia. Ora, se o homem que já é livre, e que apenas está sujeito à prestação de serviços por alguns anos, é apreendido pela polícia e entregue àquele que tem direito de usufruir esses serviços, como é que o escravo não poderá ser apreendido?
Hoje, Sr. presidente, censura-se a apreensão dos escravos, amanhã censurar-se-á da mesma forma e com mais razão a captura dos libertos obrigados à prestação de serviço.
Sobre isso, Cotegipe, mais uma vez, sacou um exemplo:
COTEGIPE: Um importantíssimo fazendeiro de Pernambuco libertou mais de 100 escravos (140 ou 150) sob condição de prestação de serviços por poucos anos. Isto há um ano, e quer V. Ex. saber, Sr. presidente, quantos existem na fazenda? Oito; todos os outros a abandonaram.
O senador mineiro Afonso Celso – o futuro visconde de Ouro Preto, que seria o último presidente do Conselho de Ministros do Império -, depois que Cotegipe leu os dispositivos legais sobre essa “prestação de serviços” dos libertos, fez uma pergunta: Como se há de obrigar o liberto a trabalhar por cinco anos?
Não houve resposta. Apenas o visconde de Taunay, senador por Santa Catarina, observou que “é melhor não censurar a generosidade dos proprietários”.
Cotegipe fez, ao final, um elogio à “liberalidade”, aos “princípios humanitários” e à “generosidade” dos senhores de escravos. O que era, em larga medida, um elogio em causa própria, pois ele era o principal senhor do Recôncavo Baiano. Ao dizer que “esses nossos concidadãos não são o que alguns figuram, isto é, homens bárbaros, ignorantes, capazes de crimes atrozes”, Cotegipe foi apoiado intensamente pelo plenário. Um senador pela Paraíba fez um breve aparte:
SENADOR MEIRA DE VASCONCELLOS: O fazendeiro é o primeiro emancipador.
Toda a argumentação de Cotegipe e seus apoiadores, como já vimos, consistia em que a revolta dos escravos não era causada pela escravidão, mas pela propaganda abolicionista “que provoca a fuga de trabalhadores, de escravos das fazendas, excita insurreições e torna muito precária a sorte e a segurança daqueles que possuem esta espécie de propriedade” (Cotegipe, pronunciamento no Senado, 16/09/1887).
Portanto, ao modo das vociferações, oito décadas depois, da ditadura sobre a “propaganda subversiva”, a propaganda abolicionista deveria ter a propriedade mágica de influenciar os escravos, sem que houvesse base real. Afinal, eles eram tão bem tratados…
Mas Cotegipe foi além, preconizando a ação do governo contra a liberdade dos escravos:
COTEGIPE: … quando a lei garante uma propriedade ou qualquer direito do cidadão, basta que um seja constrangido por meios ilegais a abrir mão desse direito, para que seja obrigação, senão dever, do governo vir em seu auxílio.
Mas o governo não tinha mais esse poder. Cotegipe acha que o governo deve garantir a escravidão, mas que não pode, porque é um abuso, garantir a liberdade:
COTEGIPE: Tenho por vezes declarado que este modo de legislar é uma espécie de comunismo; é o Estado absoluto dispondo como lhe convém de direito alheio (…).
Enfim, ele enuncia, mais uma vez, seu único programa de governo:
COTEGIPE: O meu esforço, segundo a promessa que fiz (…), tem sido garantir os proprietários contra as violências que já então sofriam, e contra aquelas que, era muito natural, continuassem a sofrer.
No entanto, sente-se, com razão, isolado:
COTEGIPE: Estou, Sr. presidente, na situação de um militar que defende uma fortaleza assediada por grande força. (…) Entregando-a desde já, ao menos pouparemos as vidas. (…) Mas, se a minha convicção é tão profunda a respeito dos males que uma medida precipitada neste assunto pode trazer, como mudar? (…) Eu sou da opinião, Sr. presidente, que a escravidão tem de acabar em menor prazo do que a lei permite pelas suas disposições. Uma lei, porém, acabando com a escravidão em dois, três, quatro e cinco anos é, no meu modo de pensar, extinguir a escravidão no mesmo dia”.
Na carta que divulgou após sua queda, em março de 1888, Cotegipe atribui seu destino a “conselheiros ocultos” da regente Isabel. Nem ao menos nessa hora a revolta explícita do país pareceu tocá-lo – embora o tenha derrubado.
A 10 de março, o novo presidente do Conselho de Ministros, o senador pernambucano João Alfredo, penúltimo chefe de gabinete do Império e último do Partido Conservador, tomou posse – não havia mais o que fazer, senão enviar a lei da Abolição ao parlamento, o que foi realizado em oito de maio.
16
Em algum trecho de sua correspondência, Monteiro Lobato lamenta que as obras de Júlia Lopes de Almeida fossem cada vez menos lidas.
Não temos uma opinião sobre o conjunto dos romances e demais livros dessa autora, que, em sua época, foi considerada a maior escritora do país.
Entretanto, seu primeiro romance, A Família Medeiros, permanecerá como um documento literário de valor inestimável – não apenas histórico, mas também artístico – sobre o período final da escravidão.
Na mania das listas, que ainda não passou, existem algumas que pretendem exibir, de acordo com as preferências dos leitores, os melhores inícios de romances. A amplitude à disposição é tão grande que logo alguém se pergunta qual a validade de tais listas. Mas o início de A Família Medeiros não deveria ficar mal colocado:
“O comboio parara numa das estações da estrada de ferro Paulista, no oeste da província de S. Paulo. Ajeitando no corpo a capa de viagem, Otávio Medeiros apeou-se com um movimento alegre e decisivo. Momentos depois o trem partia de novo, deitando ao ar da manhã, profundamente límpida, o seu silvo estrídulo e a sua pluma de fumo muito branca, que subia em espirais, desenrolando-se como uma bandeira vitoriosa.”
A descrição do fim do dia de trabalho, nesse romance, adquire notável precisão, com a tendência à síntese da autora:
“Quando chegaram à Santa Genoveva eram Ave-Marias, caíam as sombras e perdiam-se no ar as vibrações do sino chamando os escravos para a revista. No fundo esfumado do céu, destacava-se o batalhão dos negros suados, doridos de cansaço, com um feixe de lenha e a enxada ao ombro, silenciosos e tristes. Alinhavam-se em frente à casa do senhor. E, ao aproximarem-se, Otávio e as amazonas ouviram, como um sussurro de onda triste, o – Sum Christo! murmurado ao mesmo tempo por cem vozes, e o baque da lenha caindo como um fardo ao chão” (Júlia Lopes de Almeida, A Família Medeiros, 2ª ed., 1891, Horacio Belfort Sabino Editor, p. 86).
Embora carioca, Júlia Lopes de Almeida passou parte da infância em Campinas, um dos centros do escravismo. Conhecia, portanto, bastante bem a situação dos escravos que trabalhavam no café (algumas observações importantes sobre a vida, a época e a obra de Júlia Lopes de Almeida – embora não seja o assunto central do livro – foram feitas por Hilda Machado em Laurinda Santos Lobo: mecenas, artistas e outros marginais em Santa Teresa, Casa da Palavra, 2002, pp. 64-71).
Em A Família Medeiros, há trechos que são muito específicos da década de 80 do século XIX. Por ex., a figura do senhor de escravos, comendador Medeiros, pai de Otávio:
“O pai declamava, jurando maldições contra os abolicionistas, os ‘pescadores de águas turvas’ e ladrões! Seguia por aí fora contra a execrável raça, concluindo: ‘Os negros fogem, livram-se e o infeliz lavrador não tem nem o direito de se queixar! Infames, canalha!’” (idem, p. 23).
A insegurança dos senhores, que resistiam à Abolição, perpassa o personagem:
“Medeiros arrependia-se de ter deixado partir sozinho o filho. Confiava no Antunes, que tinha boa gente e dispunha de recursos; além de que, recomendara-lhe que levasse consigo alguns soldados: as fardas intimidam os negros” (idem, p. 136).
Ou o diálogo entre o jovem escrivão e o delegado (no Império, o juiz acumulava a função de delegado de polícia):
“… as galés para um cativo são a liberdade. Não seria punição, bem vê: seria um prêmio!
“– Nesse caso não competiria à Justiça intervir seriamente no crime? perguntou com ingenuidade o moço escrivão.
“– Oh, a Justiça é muitas vezes iludida e… e muitas vezes também há uma série de conveniências que a obrigam a fechar os olhos. Que remédio!
“Como o Fonseca demonstrasse surpresa, o delegado, retorcendo as suíças grisalhas, continuou:
“– É bom notar uma coisa, que até certo ponto atenua a gravidade do delito: muitos negros matam sem ódio, praticando as mais absurdas vilanias com o único intento de irem para as galés! Desaparecendo essa esperança…
“– Diminui o número de crimes de tal ordem, por certo, interrompeu o escrivão.
“– Homem… não sei… mas é possível!” (idem, p. 157).
Júlia Lopes de Almeida, além do talento literário – e, melhor ainda, por causa dele – é bem representante de toda uma estirpe de mulheres abolicionistas, que lutaram ao longo do século XIX. A personagem Eva, de A Família Medeiros, é uma condensação dessas personalidades femininas da luta abolicionista (um artigo importante sobre as abolicionistas é o de Wladimir Barbosa Silva e Maria Renilda N. Barreto, Mulheres e Abolição: protagonismo e ação, Revista da ABPN, vol. 6, nº 14, Julho-Outubro/2014).
NAÇÃO
O objetivo deste trabalho, naturalmente, foi responder à seguinte questão: como um parlamento de esmagadora maioria escravista aprovou a Lei Áurea quase que por unanimidade?
Não é uma questão inédita. Nem a sua resposta é inédita. Muitos dos homens e mulheres que viveram os últimos dias da escravidão ressaltaram que, ao final, a escravidão tornou-se insustentável não somente pelo repúdio dos homens e mulheres livres, mas pela própria ação dos escravos, que a rejeitaram em massa, saindo das fazendas. Com isso, o Império perdeu sua última razão de existir.
No entanto, pelos descaminhos ideológicos em que se meteu certa historiografia – incluindo aqui certa sociologia – e a impossibilidade, durante duas décadas de ditadura, de debate livre, a revolta dos escravos foi relegada a uma espécie de limbo da memória. Houve, inclusive, quem pregasse a rejeição ao 13 de Maio, como data que marcaria a passividade dos negros e sua desgraça posterior.
Mas, ainda que todos os negros fossem escravos – a noção grosseira de um Brasil do século XIX composto apenas por escravos e senhores de escravos acompanha inevitavelmente esse tipo de concepção deformada sobre a Abolição – a passividade somente ocorreu na mente daqueles que projetaram a sua própria passividade, o seu próprio esmagamento ideológico, nos negros em geral, nos escravos em especial, e, por consequência, no Brasil – esta criação, sobretudo, dos negros.
Grande parte dessa deformação passiva da História do Brasil teve sua formulação em um dos primeiros livros de Fernando Henrique Cardoso, de 1961. Ainda que a influência de Cardoso tenha sido posteriormente hipertrofiada – uma espécie de “revisão secundária”, como se diz em psicanálise, pela qual acontecimentos do passado são reajeitados de acordo com determinados interesses: no Rio, por exemplo, Cardoso era considerado um zero à esquerda, até que aproveitou-se da generosidade de Ulysses Guimarães, que promoveu um encontro para lançar, na antiga capital do país, um livro, “Autoritarismo e Democratização” (1975).
[NOTA: É verdade que a burrice intrínseca da ditadura ajudou a promover o livro de Cardoso. Apesar de ser um manual direitista para a oposição da época, um trecho provocou a histeria daqueles que o general Geisel chamava “os bolsões sinceros, mas radicais”: exatamente aquele em que Cardoso faz uma caricatura da resistência armada, que se encerrara em 1972, ao dizer que “a ação redentora de grupos organizados redimindo a indigência das maiorias marginalizadas e exploradas, dever-se-ia opor à exploração de uns poucos, sustentados pelo braço armado estrangeiro de uma pátria ocupada por seu próprio exército”. A ditadura acabou por deixar Cardoso e seu livro intocáveis. Ele já era, naquela época, favorito dos americanos. Mas, voltemos à Abolição.]
VALORES
Alguns acadêmicos e ativistas, que depois integraram, com destaque, o PT, seguiram – nessa questão, assim como em outras – o malsinado Cardoso.
Quanto a Florestan Fernandes, o seu A Integração do Negro na Sociedade de Classes, de 1964, é, com certeza, um dos piores livros já escritos sobre o tema. O triste – realmente, causa tristeza – é que, pelo material que cita, o autor tinha a possibilidade de escrever um grande livro.
E de nada adianta o autor dizer que “note-se que não está em jogo saber se o negro e o mulato reagiam de ‘modo passivo’ ou ‘com indiferença’ aos acontecimentos históricos. Não havia passividade ou apatia em suas reações”, se, logo antes, se diz que eles não tiveram “influência ativa” (sic), “o que os expôs a sofrer a conquista da liberdade como o cataclisma que se abate sobre seres indefesos” (cf. Florestan Fernandes, A Integração do Negro na Sociedade de Classes, Vol. 1, 3ª ed., Ed. Ática, 1978, p. 50).
Se a conquista da liberdade foi um sofrimento e um cataclismo sobre seres indefesos, maldita seja a liberdade!
Apenas mais um exemplo é o texto “Os Pretos Desaparecem deste Estado”, publicado em junho de 1897 (nove anos após a Abolição, portanto), no jornal de Antonio Bento, A Redenção, que Florestan transcreve numa nota, ao pé de uma página:
“Depois da lei de 13 de Maio de 1888, tem-se notado que a raça preta vai desaparecendo aos poucos deste Estado.
“Afirmam alguns pessimistas e antigos escravocratas que a raça preta desaparece deste Estado porque, abusando da liberdade e entregando-se ao vício da embriaguês, tem morrido.
“Mentira e calúnia contra essa infeliz raça que foi a causa de todas essas riquezas que põem este Estado acima de todos os outros.
“O excesso de barbaridade de que usavam os antigos senhores de escravos, o horror que essa pobre gente tinha ao café, que, sendo a base de toda a riqueza de seus senhores, era contudo a origem de todos os castigos contra os infelizes escravos, as prepotências das autoridades policiais que entendiam perseguir os libertos, impossibilitando-os a formar família, o desaforo com que os juízes de órfãos arrancavam os filhos dos libertos, mesmo casados, para pô-los como escravos em casa dos antigos senhores, obrigavam os libertos a escolherem outros Estados aonde naturalmente encontravam melhores autoridades, melhores patrões e meios mais fáceis de viverem.
“Acresce ainda que a maior parte dos escravos vinha das antigas Províncias do Norte para ser vendida aqui e nas Províncias do Sul.
“A barbaridade do comércio fazia com que se separassem os filhos das mães, maridos das mulheres, irmãs de irmãos, e a facilidade de conseguirem a falsificação das matrículas fazia com que tudo isso se tornasse um fato normal, apesar das leis em contrário.
“Dada a Lei Áurea que confraternizou todos os brasileiros, entenderam os libertos nortistas partir para os Estados de onde tinham vindo à procura não só de seus parentes, como de uma vida superior à que passavam neste Estado.
“A uberdade e a fertilidade dos terrenos do Norte para os gêneros de primeira necessidade, o pouco trabalho que precisavam para tirar da terra o necessário para viver, vai fazendo com que os libertos do Norte procurem suas antigas pátrias para serem mais felizes do que têm sido aqui.
“Acresce ainda que, neste Estado, é mais feliz o estrangeiro do que o nacional.
“Cada estrangeiro tem o seu cônsul que reclama por qualquer injustiça que possa sofrer, e o brasileiro, especialmente o liberto, não encontra aqui o apoio e a justiça quando pedem.
“Está portanto explicada a razão pela qual os libertos vão pouco a pouco desaparecendo deste Estado”.
No entanto, essa citação serve para muito pouco no livro de Florestan Fernandes. Em seguida, ele expõe sua hipótese da “mobilidade horizontal”, isto é, que a população negra foi deslocada pela população estrangeira imigrante (Literalmente: “… acredito que é na mobilidade horizontal da ‘população negra’ que se encontra a principal explicação das referidas tendências. Tudo indica que um setor dessa população, mais ou menos entrosado às ocupações artesanais e aos serviços urbanos, reagindo desfavoravelmente às condições da concorrência com o imigrante, deslocou-se para outras cidades paulistas ou brasileiras, em que pudesse encontrar aproveitamento condigno e reais oportunidades econômicas” – cf. op. cit., p. 64).
Para economizar tempo e espaço, podemos nos contentar com a apreciação de Guerreiro Ramos, na década de 50, em sua Cartilha brasileira do aprendiz de sociólogo, quanto aos autores que “veem o negro do mesmo ângulo (…) como algo estranho, exótico, problemático, como não-Brasil, ainda que alguns protestem o contrário. (…) Ainda entre esses estudiosos, incluo os mais recentes: Donald Pierson, Charles Wagley, Florestan Fernandes e Thales de Azevedo” (cf. Alberto Guerreiro Ramos, Introdução Crítica à Sociologia Brasileira, Ed. UFRJ, 1995, pp. 189-190).
Nada que Florestan Fernandes tenha publicado posteriormente tornou antiquada essa avaliação de Guerreiro Ramos. O problema residiu na subestimação – em alguns outros, anulação ou escamoteamento – da questão nacional. Sem considerar o Brasil como Nação – e a Abolição como parte decisiva do processo de formação nacional – é impossível uma avaliação justa (ou decente) do papel dos negros e dos escravos em nossa História.
Por mais que pareça esdrúxula a comparação, quanto à essência não se distinguem aqueles que preconizam a passividade dos negros nesse processo, daqueles que arguiram – como o historiador mais importante do período da República oligárquica – que a contribuição dos negros à civilização brasileira foi “emprestar-lhe a doçura afetiva, a imprevidência, a resignação passiva e fatalista, e, mais do que tudo, a incapacidade de iniciativa, de confiança em si mesmo, de direção autônoma” (cf. José Maria Bello, História da República, 3ª ed., CEN, S. Paulo, 1956, p. 90).
Como se sabe, a carreira política de José Maria Bello, senador e escolhido para presidir o Estado de Pernambuco em 1930, foi encerrada pela revolução daquele ano. Foi melhor sucedido como historiador, mas nem por isso deixou de levar para suas obras os preconceitos da oligarquia e dos ex-senhores de escravos. É uma pena, porque, sob outros aspectos, ele possuía talento.
O mesmo não se pode dizer de seus seguidores mais “modernos”.
17
Em seu grande livro Os Condenados da Terra (Les Damnés de la Terre), de 1961, Frantz Fanon alerta sobre a precariedade de concepções como “cultura negra”, ou, inclusive, “negritude” – cujo criador, Leopold Senghor, quando presidente do Senegal, apoiou os franceses durante a luta de libertação da Argélia (“Senghor, que é igualmente membro da Sociedade africana de cultura e que trabalhou conosco em torno da questão da cultura africana, não receou, nem mais nem menos, em dar ordem à sua delegação [na ONU] para apoiar as teses francesas sobre a Argélia” – cf. Les Damnés de la Terre, Éditions La Découverte/Poche, Paris, 2002, p. 221).
Diz Frantz Fanon:
“A negritude achou, então, seu primeiro limite nos fenômenos que dão conta da historicização dos homens. A cultura negra, a cultura negro-africana se fragmentou porque os homens que se propunham a encarná-la compreenderam que toda cultura é antes de tudo nacional (…). A cultura nacional é o conjunto dos esforços feitos por um povo sobre o plano do pensamento para descrever, justificar e cantar a ação através da qual o povo se constituiu e se manteve. A cultura nacional, nos países subdesenvolvidos, deve, portanto, se situar no próprio centro da luta de libertação conduzida por esses países” (idem, pp. 202 e 220).
E, numa comunicação ao 2º Congresso de escritores e artistas negros, acontecido em Roma, no ano de 1959:
“Eis aqui o momento de denunciar o farisaísmo de certos elementos. A reivindicação nacional, se diz aqui e ali, é uma fase que a humanidade já ultrapassou. A hora é dos grandes conjuntos e os atrasados do nacionalismo devem, em consequência, corrigir seus erros. Nós pensamos, ao contrário, que o erro, de consequências graves, consistiria em querer saltar a etapa nacional. Se a cultura é a manifestação da consciência nacional, eu não hesitarei em dizer, no caso que nos ocupa, que a consciência nacional é a forma mais elaborada da cultura” (cf. Frantz Fanon, Les Damnés de la Terre, ed. cit., p. 233).
Hoje, alguns negam, no Brasil, não apenas a existência de uma cultura nacional, mas a própria necessidade de uma cultura nacional. Há quem denomine isso por nomes mais ou menos empolados – “multiculturalismo”, “diversidade”, etc.
Independente das intenções dos elementos que proferem esse tipo de bobagem (pois, ao fim e ao cabo, não passa disso), trata-se não apenas de uma forma desnaturada de negar a Nação, portanto, de negar a necessidade de um país independente e livre – que não seja uma colônia – mas também é uma forma de racismo.
Pois a cultura nacional brasileira foi, antes de tudo, criada e conformada pelos negros. Negá-la é, também, negar a contribuição dos negros naquilo que ela tem de mais supremo.
Não é necessário, aqui, estendermo-nos sobre esse assunto. Apenas lembraremos que, antes do samba (palavra que já aparece nos romances de Alencar com o significado de uma dança específica, p. ex., em O Tronco do Ipê, de 1871), a senzala ocupara os salões e festas dos brancos com o lundu, que surgiu por volta de 1760 (v. J.R. Tinhorão, História Social da Música Popular Brasileira, Ed. 34, 1998, pp. 99 e segs.).
NACIONAL
Ainda é preciso elencar algumas outras questões historiográficas, que têm importância na atualidade.
A primeira se confunde com aquela que abordamos na parte anterior deste trabalho – e tem por suposta base, também, a suposta sociologia paulistana, isto é, da USP.
Trata-se do preconceito de que a vida dos “negros” em nada (ou em muito pouco) mudou após a Abolição. Quase é possível concluir que melhor teria sido permanecer escravo… No entanto, não há notícia de algum ex-escravo que tenha lamentado a Abolição (um excelente texto sobre esse tipo de concepção reacionária, tanto direitista quanto esquerdista, é o do professor Álvaro Pereira do Nascimento, Qual a condição social dos negros no Brasil depois do fim da escravidão? – o pós-abolição no ensino de História, in Maria Aparecida Andrade Salgueiro (org.), A República e a Questão do Negro no Brasil, Museu da República, Rio, 2005, pp. 11-24).
Uma parte dos autores que abordaram o período posterior à Abolição tende a ver como uma desgraça a migração de ex-escravos para as cidades. Mas, se a vida nos cortiços e favelas das cidades estava longe de ser maravilhosa, a decisão de sair das fazendas não foi tomada pelos ex-escravos porque sua vida no campo fosse farta e saudável…
A população do Rio, capital do país, aumentou rapidamente depois da Abolição: “Se no ano de 1872, incluindo escravos e livres, havia na capital federal 274.972 pessoas, esse número aumentou para 522.651 em 1890, chegando, no ano de 1920, a 1.157.873 habitantes” (cf. Carlos Eduardo Coutinho da Costa, Migrações negras no pós-abolição do sudeste cafeeiro (1888-1940), Topoi, v. 16, nº 30, jan./jun. 2015, p. 106).
Foi essa população negra que marcou indelevelmente a cultura nacional na primeira metade do século XX. A origem rural – inclusive no nome – do “partido alto” é apenas um dos sinais da terra de onde provinha. Além da população ex-escrava do Vale do Paraíba, houve uma sensível população negra de origem baiana no Rio de Janeiro (e não somente baiana: se para alguma coisa servem as histórias de família, a avó de minha avó, Mariana, cozinheira no então grã-fino Catete, chegou do Maranhão com a filha, Firmina, que tornou-se costureira para moradoras do mesmo bairro).
Um dos homens que estiveram na origem do samba tal como o conhecemos hoje, Alcibíades Barcelos, o Bide, afirmou algo importante para a compreensão das condições de vida dessa população: “Malandros nós éramos, no bom sentido, vagabundos não!” (cf. J.R. Tinhorão, op. cit., p. 293; o autor discute esta diferença em outro de seus livros, Música Popular: do Gramofone ao Rádio e TV, Ática, 1981).
O “malandro” correspondia a um período anterior à industrialização do país. Quando Noel Rosa, em 1933, na famosa polêmica com Wilson Batista, cantou que “Malandro é palavra derrotista…/ Que só serve pra tirar/ Todo o valor do sambista./ Proponho ao povo civilizado/ Não te chamar de malandro/ E sim de rapaz folgado”, estava, também, marcando a fronteira entre duas épocas.
Porém, que nas condições econômicas e sociais da República Velha – especialmente o emprego escasso da tênue e travada industrialização – essa população urbana com origem (ela ou seus pais) nos eitos das fazendas, tenha sido decisiva na criação de uma cultura nacional, não precisamos ressaltar. Antes de tudo, é um fato histórico.
MIGRAÇÃO
Existe, também, como desdobramento da questão anterior, um persistente ruído que atribui à Lei Áurea a culpa da marginalização posterior dos negros. Mais uma vez, quase se diz que a vida dos ex-escravos piorou com a Abolição…
Porém, em geral, não se chega a esse ponto. Mas aí está o mais anômalo: o sentido desse ruído é o de que faltou uma “legislação social” para promover os negros, tirá-los do atraso, como se uma legislação “social” tivesse resolvido o problema.
Este é, inclusive, o ponto de partida de Florestan Fernandes: “A desagregação do regime escravocrata e senhorial operou-se, no Brasil, sem que se cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias que os protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o Estado, a Igreja ou outra qualquer instituição assumissem encargos especiais, que tivessem por objeto prepará-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho. O liberto viu-se convertido, sumária e abruptamente, em senhor de si mesmo, tornando-se responsável por sua pessoa e por seus dependentes, embora não dispusesse de meios materiais e morais para realizar essa proeza nos quadros de uma economia competitiva. Essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho escravo imprimiram à Abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel” (Florestan Fernandes, op. cit., p. 15, grifos nossos).
No entanto, tudo reside no pântano cafeeiro em que o país viveu a partir do governo Prudente de Morais – e, principalmente, do governo Campos Salles.
Sem a industrialização do país (ou, pior ainda, com a desindustrialização, como ocorreu no período posterior à Iª Guerra Mundial), era impossível que os negros ascendessem econômica e socialmente, não importa a legislação “social” que houvesse. Aliás, o mais exato é dizer que sem uma política de industrialização e desenvolvimento do país era impossível qualquer legislação social que promovesse econômica e politicamente aos ex-escravos – e aos negros em geral.
Pelo contrário, o laconismo da Lei Áurea, apenas declarando “extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil”, que era a expressão do sentimento nacional, significava o fim das protelações, que já duravam quarenta anos, desde a Lei Eusébio de Queirós.
A suposta falta de preparação dos escravos para o trabalho livre e a necessidade de uma legislação que recuperasse o “atraso” dos então cativos, fora, ao longo do século XIX, um dos principais pretextos protelatórios dos escravistas. Ao mesmo tempo, era repetido que somente com a imigração europeia seria possível a emancipação dos escravos.
Um grande fazendeiro e dirigente do Partido Conservador, Antonio Prado, convertido ao abolicionismo após 1884, apesar de defensor da imigração, fez um comentário irônico sobre o suposto desastre que a libertação dos escravos iria causar à agricultura, ao dizer que “os braços [dos então escravos] não iriam desaparecer” após a Abolição.
Não desapareceram. Mas é verdade que uma parcela dos escravos – e, principalmente, seus filhos, a primeira geração após a Abolição – preferiu migrar em direção às cidades do que permanecer em uma situação que era muito semelhante à escravatura.
O que impediu, em seguida, que a nacionalidade avançasse na construção de um país livre e independente, naturalmente, não foi a Lei Áurea, mas o domínio da oligarquia cafeeira – e a consequente dependência aos bancos ingleses.
Tanto isso é verdade que, superado esse domínio, os negros, sem dúvida, tiveram outro espaço no país, assim como o conjunto do povo brasileiro.
Nem – quase – é preciso dizer que os problemas atuais dos negros e do povo brasileiro estão diretamente ligados à outra dependência e domínio, que é preciso superar.
ARTÍFICES
Há uma outra questão historiográfica, que se desdobra em duas, e merece uma rápida consideração: a principalidade na conquista da Abolição, se ela cabe aos escravos ou aos abolicionistas.
Nós diríamos que é uma falsa questão, só possível de ser colocada por quem apresenta especial dificuldade de conceber a luta pelo fim da escravatura como a luta, naquela época e naquelas circunstâncias, para a formação de uma nação.
Pois escravos e abolicionistas – e não existe porque não considerar também os primeiros como abolicionistas – faziam parte da mesma nação e da mesma luta.
Desse ponto de vista, que tais ou quais abolicionistas tivessem tal ou qual preconceito em relação aos escravos, é totalmente irrelevante.
O desdobramento dessa questão recai sobre a periodização da luta, particularmente em São Paulo, província em que a escravidão se expandiu após o fim do tráfico transatlântico de escravos (depois de 1850) e mesmo após a Lei do Ventre Livre (1871).
Segundo alguns, a um período “legalista” da luta pela Abolição, liderado por Luiz Gama, sucedeu um período “revolucionário”, liderado por Antonio Bento. Em alguns autores quase se pode concluir (aliás, é o que se pode concluir) que a morte de Luiz Gama, em 1882, liberou o movimento de suas amarras “legalistas”.
Ninguém poderá apagar a grandeza de Antonio Bento – juiz de Direito e delegado de polícia, membro do Partido Conservador, e, no entanto, líder dos “caifazes”, que organizavam a saída dos escravos das fazendas.
Mas, por alguma razão, o próprio Bento considerava-se um seguidor de Luiz Gama. Este, com seu grupo – os jovens que se reuniam, a princípio, no escritório de advocacia de Zoroastro Pamplona, na rua Boa Vista, em São Paulo (Rui Barbosa, Américo de Campos, Jorge de Miranda, Bernardino Pamplona de Menezes, João Peregrino Viriato de Medeiros e André Duarte Pinto) -, elevou a luta abolicionista ao nível político, já por volta de 1860.
É mais do que interessante essa descrição:
“… ao discutir a necessidade do fim da escravidão (…) o alvo privilegiado de ataque dos companheiros de Luiz Gama não eram os senhores de escravos. O governo, que aqui aparece personalizado no Imperador, seria o acusado então de ser o principal responsável pela escravidão perdurar em terras brasileiras; e o partido conservador – a situação naquele momento – deveria arcar com a responsabilidade de ter sacrificado, ‘à pequenez das relações pessoais, os direitos inalienáveis de uma raça escravizada.’ Portanto, nas reformas propostas pelo grupo de Luiz Gama o primeiro passo seria extinguir o poder moderador que, segundo os radicais, era ‘incompatível com toda liberdade’, consequentemente resolver-se-ia o escandaloso fato de ser o Brasil o único país da América a manter toda uma ‘raça’ alienada de seu direito à liberdade” (cf. Elciene Azevedo, Entre escravos e doutores: A trajetória de Luiz Gama na imperial cidade de São Paulo, Unicamp/1987, p. 61).
O “poder moderador”, um resquício do absolutismo, era o poder pessoal de Pedro II sobre o Estado. Ao torná-lo o alvo da luta abolicionista, Luiz Gama e seus companheiros deram um passo gigantesco – a luta pela Abolição passava a ser a luta pela liberdade de todos os brasileiros. Ao contrário de outros, inclusive na atualidade, Gama não se iludia em relação à monarquia.
Resta dizer que, sem esse passo, a atividade posterior de Antonio Bento nem ao menos seria concebível.
FIM
Há outras questões – mas vamos deixá-las para outra oportunidade.
Durante a pesquisa e escrita deste trabalho, vários amigos foram importantes.
Porém, há uma pessoa que suportou a prova mais pesada e nem por isso deixou de ser, sempre, a principal incentivadora – e leitora – de tudo o que eu escrevia. Durante um tempo que deve ter-lhe parecido infinito, minha mulher, Sandra, aguentou a casa desarrumada por livros espalhados numa ordem (?) que estava apenas na minha cabeça – e o marido, diariamente, inclusive nos sábados, domingos e feriados, dedicado ao trabalho nas horas, digamos, mais impróprias. Nem por um momento ouvi alguma queixa, exceto aquelas que diziam respeito à minha saúde – jamais à dela.
Por isso e por muito mais, Sandra, este trabalho é dedicado a você.