[Intervenção na mesa-redonda Alternativa Socialista, do Seminário Nacional: PCdoB Centenário e Contemporâneo, no dia 14 de maio de 2022]
CARLOS LOPES
Gostaria de cumprimentar os amigos que estão nos assistindo, e, em especial, os que aqui estão, comigo, nesta mesa – Luís Fernandes, Elias Jabbour, Ana Prestes e a nossa coordenadora Mariana Moura.
Não costumo ler as minhas intervenções. Mas, desta vez, devido à complexidade do tema e ao tempo que dispomos, preferi recorrer a um texto escrito de antemão. A sorte é que tenho, entre outros, dois precedentes – o nosso candidato a presidente também leu o pronunciamento que fez em seu lançamento; e, se não fosse isso, restaria o camarada Sérgio Rubens, que não fazia informes de improviso, preferia escrevê-los e lê-los.
Colocado isso, gostaria de fazer uma advertência, isto é, um aviso. Meu ponto de vista, naquilo que se segue, é o da economia política e não o da política econômica, para usar uma distinção enfatizada por Stalin em Problemas Econômicos do Socialismo na URSS.
Em outras palavras, considero que as relações de produção predominantes no Brasil não são apenas relações de produção capitalistas, mas relações de produção capitalistas dependentes, sendo este último aspecto, o de sua subordinação às relações capitalistas dos países imperialistas, o principal.
Isto tem uma decorrência prática, mas, por ora, queria apenas me referir a um problema na exposição do tema, que espero explicar com um exemplo: quando me refiro ao Investimento Estrangeiro Direto (IED), estou plenamente consciente de que é possível, do ponto de vista da política econômica, estabelecer algo vantajoso para o país, desde que seja sob o controle nacional.
Porém, a análise que se segue não é sob esse ponto de vista, mas sob o ponto de vista da economia política, das relações de produção dentro do país.
Acho importante esse aviso, para que seja bem entendido o que quero dizer.
Existem duas maneiras de abordar o nosso problema, considerando o ângulo que escolhi. Uma, é ressaltar que se as mudanças nacionais e democráticas – isto é, o nacional-desenvolvimentismo – não tiverem uma orientação para o socialismo, poderão regredir, ou, mesmo, inevitavelmente, regredirão; a outra é sublinhar que não existe como chegar ao socialismo, no Brasil – e em países como o Brasil – senão através da luta e realização das mudanças nacionais e democráticas.
Por várias razões, que ficarão claras no que vem a seguir, a última maneira é aquela da análise presente no que vou dizer.
Vou abordar o nosso tema de maneira, talvez, polêmica, não por amor à polêmica, mas porque esta é uma forma de transmitir mais claramente o que quero dizer.
Nosso assunto são os caminhos para o socialismo, ou seja, qual é a luta concreta e as transformações necessárias para que cheguemos à revolução socialista.
Porém, por que estou colocando a questão desta forma?
Porque nosso ponto de partida é que o socialismo não é uma utopia. Sendo assim, é justo dizer que cada país tem um caminho próprio, um caminho real, um caminho concreto, para o socialismo. Esta, aliás, foi a formulação de Xi Jinping, em seu Discurso aos membros do Comitê Central eleitos no 18º Congresso do Partido Comunista da China (2012). O “socialismo com características chinesas”, disse então Xi Jinping, é o caminho próprio da China, embora seja, antes de tudo, socialismo.
Não se trata, portanto, de inventar um socialismo para cada país, mas de perceber que o socialismo assume características próprias em cada país.
Então, a nossa questão é desbravar a vereda para o socialismo no Brasil, considerando que, no nosso caso, a revolução ainda não foi realizada. Portanto, temos que partir da situação anterior ao socialismo.
A primeira constatação é que não se pode, na luta pelo socialismo, passar por cima da questão nacional.
Mas o que isso significa, no Brasil?
Podemos dizer que, hoje, as transformações revolucionárias necessárias e possíveis, em nosso país, são transformações socialistas, isto é, a socialização dos meios de produção?
Isto seria, precisamente, transformar o socialismo em utopia, pois é evidente que não são transformações com esse caráter as que estão na ordem do dia.
Considerar o problema desta maneira, como se as transformações socialistas fossem as transformações revolucionárias necessárias e possíveis, seria afundar-nos na paralisia e, na prática, desistir da luta.
Seria, na verdade, fugir da luta pelo socialismo, na medida em que substituiríamos a luta concreta pela fantasia abstrata, irreal, de um socialismo utópico.
Sabemos que, em outra época, Lenin apontou a fuga de Trotsky da luta revolucionária concreta, quando o último defendeu que a revolução na Rússia, já na primeira década do século passado, tinha caráter diretamente socialista.
Pelo contrário, escreveu Lenin em uma série de artigos, a única forma de chegar ao socialismo na Rússia era a luta pela revolução democrático-burguesa – as transformações democrático-burguesas eram as necessárias e possíveis na Rússia da primeira década do século XX, e, como tal, um passo gigantesco em direção à revolução socialista, ainda que as transformações não fossem socialistas e não redundassem em socialismo algum.
Lenin escreveu mais. Contra os mencheviques, em seu livro Duas Táticas da Social-democracia na Revolução Democrática, propugnou que as transformações democrático-burguesas – em um país ainda sufocado pelo feudalismo, como era a Rússia – interessavam mais à classe operária que à burguesia. Como consequência, era possível que a própria revolução democrático-burguesa fosse dirigida pela classe operária – e não pela burguesia.
Por que Lenin colocava a situação, pratica e teoricamente, deste modo?
Primeiro, pelo fator objetivo: a base econômica, que, em 1905, não permitia a passagem direta ao socialismo.
Segundo, porque se tratava de aproximar do socialismo, e isso somente era possível com a realização das transformações democrático-burguesas.
Ao contrário do que dizem alguns, a Revolução Russa de 1917 comprovou inteiramente a teoria leninista. O fato de ocorrerem apenas alguns meses entre a revolução democrático-burguesa (Revolução de Fevereiro) e a revolução socialista (Revolução de Outubro), apenas demonstrou que não existia uma muralha da China (a expressão é de Lenin) entre a primeira e a segunda. A realização da revolução democrático-burguesa, na verdade, aproximou aceleradamente a revolução socialista.
Entretanto, o Brasil – e sobretudo o Brasil de hoje – é um país diferente do que era a Rússia no início do século XX.
A Rússia, ao contrário do Brasil, não era um país submetido – ou seja, oprimido e explorado – pelo imperialismo. A Rússia, como notou Lenin na época da I Guerra Mundial, era, inclusive, um país imperialista.
Essa diferença foi o centro da discussão sobre a China, na década de 20, tanto dentro do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) quanto na Internacional Comunista.
Tanto antes quanto, principalmente, após o massacre de Xangai, em 1927, Trotsky e seus adeptos acusaram o PCUS e a Internacional pela responsabilidade do banho de sangue. Esta responsabilidade consistiria, fundamentalmente, na aliança com a burguesia nacional chinesa, ao invés de seguirem o caminho da Revolução Russa – e, portanto, considerarem como socialista, já naquele momento, o caráter da revolução na China.
Em alguns informes e artigos, Stalin apontou que a China, ao contrário da Rússia, era um país dependente, isto é, oprimido e explorado pelo imperialismo. Isto determinava o caráter de sua revolução como uma revolução de libertação nacional, com tarefas de cunho anti-imperialista e antifeudal, o que é chamado pelos chineses de Revolução da Nova Democracia, tal como formulado pelo presidente Mao Tsé-tung.
Reparemos que somente em 1953, portanto, quatro anos após a tomada do poder pelo povo da China, a revolução começou a transitar para o socialismo, segundo a resolução sobre a história do partido, aprovada na 6ª sessão plenária do 19º Comitê Central do PCCh em 11 de novembro de 2021.
Voltemos, agora, ao Brasil.
O principal obstáculo ao nosso desenvolvimento são os laços de subordinação ao imperialismo – ou, na linguagem da Internacional, em resolução aprovada ainda durante a vida de Lenin, o Brasil é um país oprimido e explorado pelo imperialismo.
O que isso determina, dentro do país?
Em primeiro lugar, uma miséria e fome que têm sido crônicas, apesar de terem piorado nos últimos anos.
E, convenhamos, sem um setor produtivo que possa sustentar dignamente a educação, saúde e outros setores sociais, qualquer suposto “estado de bem-estar social” será sempre muito precário. Entretanto, não temos razão para nos contentar com as políticas compensatórias neoliberais como política social.
Segundo, os efeitos sobre o próprio setor produtivo.
Não existe dúvida sobre o setor dinâmico para o crescimento de um país: a indústria manufatureira, a indústria de transformação. Esta, aliás, é uma das observações mais perspicazes de Nicholas Kaldor, em seus artigos sobre a produtividade e o crescimento. O encolhimento do setor manufatureiro corresponde a um decréscimo no potencial de crescimento do país.
Então, quais são os efeitos da desnacionalização sobre a indústria manufatureira?
Adiantando um pouco o assunto, há muito os arautos do capital estrangeiro atribuem poderes mágicos ao chamado Investimento Estrangeiro Direto (IED).
A questão foi analisada – e bem analisada – pelo camarada Haroldo Lima em seu Informe especial sobre a desnacionalização, proferido no 10º Congresso de nosso partido, em 2001.
Porém, o tema é recorrente na literatura revolucionária. Além dos trabalhos oriundos do ISEB, especialmente os de Nelson Werneck Sodré, gostaria de lembrar um livro decisivo sobre o tema, de autoria de Aristóteles Moura, Capitais Estrangeiros no Brasil, de 1960 – e, também, as observações de Celso Furtado, nos textos reunidos no livro Em Busca de Novo Modelo, de 2002.
A apologia do Investimento Estrangeiro Direto (IED) nunca deixou de existir em nosso país, mas adquiriu fúria redobrada com o neoliberalismo, em especial no governo Fernando Henrique e depois.
Havia até mesmo a teoria de que o IED é mais benéfico ao país do que o capital meramente especulativo (Investimento Estrangeiro em Carteira), porque seria investimento em empresas, ao contrário do outro, que é investimento em papéis, em geral títulos públicos.
No entanto, o problema são os danos que o Investimento Estrangeiro Direto causa à economia nacional.
Primeiro: a maior parte do Investimento Estrangeiro Direto não entra no país para instalar novas fábricas ou unidades de produção, mas para comprar empresas brasileiras, que passam, assim, a ser filiais estrangeiras, remetendo lucros para o exterior, que antes ficavam aqui.
Segundo: uma parte dessas empresas compradas pelo IED são fechadas, para que a produção nacional seja substituída por importações.
Terceiro: uma parte do IED é composto por empréstimos intra-companhias, ou seja, empréstimos entre matriz e filiais, sem nenhum benefício para o país.
Quarto: o efeito geral é a desindustrialização, com a primarização crescente das exportações, ou seja, a diminuição da parcela de produtos industriais e aumento da parcela de produtos primários nas exportações, com a consequente deterioração dos termos de intercâmbio, isto é, troca desigual com o exterior.
Quinto: os investimentos feitos pela filiais e subsidiárias das multinacionais são realizados com recursos (lucros e empréstimos obtidos inclusive em bancos oficiais) dos países em que estão instaladas – e não do país onde se encontra a sua matriz – aumentando o grau de espoliação a esses países.
Sexto: o estabelecimento sistemático de operações de superfaturamento e subfaturamento nas relações de compra e venda entre a matriz, nos países centrais, e as filiais, nos países dependentes. Esta é uma forma especialmente predatória para países como o Brasil (v. Constantine V. Vaitsos, Distribuição de Renda e Empresas Multinacionais).
Esses seis pontos são uma lista sumária, apenas para apresentar o problema – e não entraremos em problemas correlatos, que mais fazem parte da política econômica, como a apreciação artificial do câmbio (também conhecida como “câmbio flutuante”) e a manutenção dos juros básicos em patamares siderais.
Preferimos abordar sobretudo o Investimento Estrangeiro Direto (IED), não porque seja uma forma nova de exploração do país, mas porque é aquela que, nos últimos tempos, mais tem alimentado ilusões, inclusive em elementos que se dizem, ou se diziam, “de esquerda”. Incrivelmente, houve um giro ideológico em alguns setores: as multinacionais, que eram consideradas danosas à economia nacional – até porque não fazem parte da economia nacional, são antes enclaves estrangeiros dentro de nossa economia – transformaram-se, para alguns setores, em benfeitoras e modernizadoras do país. Por pouco não são consideradas entidades filantrópicas…
De nossa parte, estamos de acordo com Haroldo Lima em que “a subordinação do país aos interesses externos nunca deixou de existir, mudou de formas, não de essência”.
Luciano Coutinho, em uma conferência para o fórum Brasil: Desafios de um País em Transformação, coordenado pelo ex-ministro João Paulo dos Reis Velloso, em 1997, chamou ao resultado do processo de desnacionalização e desindustrialização, ocorrido a partir de 1995, “dessubstituição de importações”.
Com efeito, o resultado foi substituir a produção nacional pela produção importada, com efeito arrasador sobre o principal contingente da burguesia nacional, a média burguesia produtora de bens intermediários, isto é, produtos destinados a outras fábricas.
O que não quer dizer, em absoluto, que a burguesia nacional tenha deixado de existir – inclusive com grandes empresas.
A questão da nacionalidade, aqui, não tem importância apenas ideológica. Tem importância diretamente econômica.
No conceito do ISEB, formulado principalmente por Nelson Werneck Sodré, país dependente ou colonial é aquele em que sua renda se concentra no exterior.
A partir disso, podemos traçar uma longa trajetória da subordinação em nosso país, desde os empréstimos aos bancos ingleses no Império e na República Velha até a instalação de multinacionais dentro do Brasil – e a irrupção da desindustrialização.
Ao processo aberto com as revoltas tenentistas da década de 20 e com a Revolução de 30, chamou-se, na década de 50 do século passado, Revolução Brasileira.
Esse processo corresponde ao da nossa industrialização.
Alguns autores, especialmente João Manuel Cardoso de Mello, em seu livro O Capitalismo Tardio, chamaram a essa industrialização do período Getúlio Vargas, “industrialização restringida”.
De nossa parte, acreditamos que o termo é impróprio. Como chamar de restringida uma industrialização que comporta, além do setor de bens de consumo, a construção da Companhia Siderúrgica Nacional e a fundação da Petrobrás – e somente não foi além pelas vicissitudes da história?
Além disso, as concessões econômicas às empresas estrangeiras do governo Juscelino foram a base para o golpe de 1964 e a ditadura posterior, que, apesar do breve período do II Plano Nacional de Desenvolvimento, foi um instrumento para submeter o país ao imperialismo.
Portanto, considerar essas concessões como a instalação da indústria pesada no Brasil, nos parece um erro.
Porém, bem entendido, não estamos considerando que o crescimento econômico durante o governo Juscelino foi um resultado automático da instalação de multinacionais.
Mais importante, assim como no II PND do governo Geisel, foi o investimento público, consubstanciado, principalmente, nas estatais. Há dois artigos sobre isso, muito importantes, ambos de autoria de Luciano Coutinho e Henri Philippe Reichstul (muito antes das aventuras do último na Petrobrás), que demonstram como o setor estatal foi decisivo para o crescimento em ambos os momentos (v. Carlos Estevam Martins (org.), Estado e Capitalismo no Brasil e Luiz Gonzaga M. Belluzzo e Renata Coutinho (orgs.), Desenvolvimento Capitalista no Brasil Nº 2).
Realizar as tarefas nacionais e democráticas (isto é, a superação da subordinação ao imperialismo) sem a participação econômica do Estado – não somente como indutor, mas como empreendedor – é uma impossibilidade.
Da mesma maneira que é impossível realizar essas tarefas sem a existência de um setor empresarial privado nacional.
A ideia de que a luta pela ruptura com a subordinação serve apenas para reforçar a burguesia, é, se os amigos me permitem a expressão, estúpida por si só.
Porque, muito mais oprimida pela subordinação ao imperialismo está a classe operária do que a burguesia.
E, se não conseguirmos romper com esses grilhões, de que socialismo ou luta pelo socialismo podemos falar?
Da mesma forma, sob o ângulo subjetivo: a luta pelas transformações nacionais e democráticas – em suma, a luta pela libertação nacional – é a escola possível à classe operária para educar-se na luta pelo socialismo.
Infelizmente, há quem tergiverse a questão, pretextando que existe um nacionalismo de esquerda tanto quanto um nacionalismo de direita.
Na verdade, em nosso país, assim como nos demais países dependentes, a direita – sobretudo o fascismo – é sempre entreguista, sempre antinacional, assim como antipopular, porque antidemocrático.
O que era o integralismo, senão a pregação de que o Brasil deveria se submeter ao imperialismo alemão, isto é, ao nazismo?
O que é Bolsonaro, senão um lacaio de Trump e do que mais apodrecido há nos EUA?
Fascismo em país dependente é, sempre, fascismo dependente.
O caráter das transformações necessárias ao país, no momento, deriva da constatação de que o principal entrave ao nosso desenvolvimento são as forças econômicas externas – isto é, dos países imperialistas, sobretudo os EUA – e seus representantes internos.
Não é, evidentemente, uma constatação original. Há muito o nosso partido já consagrou a sua posição sobre o problema. Por exemplo, escreveu, em 1960, Maurício Grabois:
“Nesta etapa, a revolução no Brasil não tem caráter socialista. Não existem condições objetivas, nem subjetivas para uma revolução deste tipo. Na atual etapa, a revolução no Brasil é anti-imperialista e antifeudal, nacional e democrática. Deve criar um novo regime econômico e político.”
E, também:
“São imensas e poderosas (…) as forças sociais que se opõem aos inimigos do povo brasileiro. Incluem o proletariado, os camponeses, a pequena burguesia urbana e a burguesia nacional, além de outros elementos patrióticos. Todas estas forças estão interessadas na liquidação do domínio imperialista e na extinção do monopólio da terra.”
E, sobre o regime advindo da revolução nacional e democrática:
“Este regime assegurará, no terreno econômico, a completa emancipação do Brasil do jugo imperialista, em particular do norte-americano; a transformação radical da atual estrutura agrária, com a liquidação do monopólio da terra e das relações pré-capitalistas de trabalho: o desenvolvimento independente e progressista da economia nacional. Os interesses da burguesia nacional não serão afetados, pois a revolução, nesta etapa, não visa à liquidação do capitalismo. Não serão atingidos igualmente os interesses dos camponeses ricos. Desde que não hostilizem a revolução, serão mantidas, sob controle, as empresas estrangeiras não pertencentes aos trustes norte-americanos.
“Estas tarefas expressam os dois aspectos da revolução: o nacional e o democrático. Estes dois aspectos estão intimamente ligados.”
Algum companheiro, muito justamente, poderá perguntar se o Brasil de hoje não é muito diferente daquele de 1960, quando Maurício Grabois escreveu Duas Concepções, Duas Orientações Políticas, de onde extraímos essas citações.
Com efeito, o Brasil é diferente. Mas entre essas diferenças não está a de ter rompido com os laços de subordinação ao imperialismo. Nisso, como disse Haroldo Lima, variou a forma da subordinação, mas não a sua essência.
Esta é a razão pela qual o nosso programa delineia o caminho para o socialismo através de um programa nacional de desenvolvimento.
Porque é impossível chegar ao socialismo, em país como o nosso, senão através da luta e resolução das questões nacionais.
É forçoso reconhecer que uma parte grande dos grupos e organizações originários do rompimento com o PCB na década de 60, após o golpe de 1964, não tinham isso claro.
Embora, como observou Cláudio Campos, a “estratégia socialista” adotada por essas organizações, entre as quais o Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR8), cumpria uma necessidade: a de sublinhar o compromisso com o proletariado, pois revolução socialista é sinônimo de revolução proletária.
No entanto, apesar de cumprir essa necessidade, havia uma subestimação das tarefas democráticas e das tarefas nacionais. Foi um longo percurso – e uma longa luta – até que essas subestimações (pois não foram vencidas ao mesmo tempo) fossem superadas.
Já abordamos essa questão algumas vezes, inclusive no seminário sobre o nacional-desenvolvimentismo da Fundação Maurício Grabois. Mas será ilustrativo, para os companheiros que não viveram essa época, alguns extratos de um documento de 1982:
“Há cerca de dez anos [o MR8] travou uma profunda luta política, ideológica e teórica em torno da questão democrática, combatendo incompreensões à direita e à esquerda então existentes a esse respeito, com vistas ao pleno e consequente assumimento do caráter democrático da atual revolução brasileira, e à precisa compreensão da relação entre a luta pelo socialismo e a luta pela democracia. Vimos mais, naquela época, como a luta pela democracia é sempre, no terreno político, a coluna dorsal da luta pelo socialismo e pelo seu desenvolvimento.
(…)
“O que está em pauta neste Congresso é o assumimento preciso e completo do caráter mais profundo, central e determinante da atual revolução brasileira: o seu caráter nacional.
(…)
“… não há como argumentar com a luta democrática para negar o caráter central da luta nacional. A nível político, essas duas questões não pertencem a campos diferentes, ainda que interligados. Em seu aspecto político, a questão nacional e a democrática são expressão, em níveis de abstração diferentes, exatamente de um mesmo fenômeno de fundo. Na verdade, no Brasil de hoje, a questão nacional é exatamente o cerne e o centro da questão democrática.”
E, sobre uma questão frequentemente confundida por alguns setores, tanto esquerdistas quanto direitistas:
“A contradição entre a Nação e o Imperialismo é uma contradição de classe. De um lado, colocam-se as classes e setores sociais objetivamente interessados na ruptura da dependência. Do outro, as classes e os setores de classe, fora e dentro da Nação, interessados na sua manutenção” (Claudio Campos, Unir a Nação e Romper com a Dependência, Informe ao 3º Congresso do MR8, 1982).
Resta dizer que, jamais, em nenhum outro momento da nossa história, nem sob a ditadura, foi tão evidente que o principal obstáculo ao nosso desenvolvimento é a subordinação ao imperialismo.
O descaminho do governo Fernando Henrique, com o notório tripé macroeconômico, foi exacerbado, no atual governo Bolsonaro.
O financeirismo desarvorado faz com que, no momento em que a maioria da população geme sob a miséria, fome e carestia, os bancos privados tenham lucros hediondos no primeiro trimestre deste ano.
Enquanto isso, a indústria nacional definha em permanente anemia, segundo as palavras de uma entidade empresarial.
Quanto às estatais, a começar pela Eletrobrás e Petrobrás, que são o principal instrumento do povo brasileiro para romper com os laços de subordinação econômica, estão sendo atacadas ou colocadas contra a própria nação.
É possível dizer que esses são problemas conjunturais, que podem ser abordados apenas taticamente, sem tocar em questões estruturais, isto é, estratégicas?
Com certeza, não.
Removido Bolsonaro e o fascismo do governo, a tarefa de reconstruir o país certamente levará ao questionamento dos entraves ao nosso desenvolvimento.
Porque, sem a remoção também desses entraves, estaremos destinados à mediocridade, e, pior, à volta do que há de mais pútrido, neste país, ao governo.
E não há motivo para que estejamos destinados à mediocridade ou ao obscurantismo fascista.
Este é o aspecto mais próximo no tempo da questão que abordamos. Mas o fato de ser mais próximo não quer dizer que deixe de ser estratégico. O hábito de considerar os aspectos próximos como táticos – ou conjunturais – e os aspectos longínquos como estratégicos – ou estruturais – pode ser enganoso, até porque existe um momento em que aquilo que é tático coincide com aquilo que é estratégico.
A partir disso, é possível antecipar algo sobre a relação entre as questões nacionais e democráticas e a revolução socialista.
Da mesma forma que no exemplo anterior – o da Revolução Russa – não existe muralha entre as transformações nacionais democráticas e as transformações socialistas.
Pelo contrário, as primeiras aproximam as segundas.
Se isso foi verdade em países mais atrasados que o Brasil de hoje, mais ainda se pode dizer que as transformações nacionais e democráticas – a ruptura com a subordinação ao imperialismo -, em nosso país, nos deixarão no limiar da revolução socialista.