É com grande satisfação que republicamos, neste centenário do levante do Forte de Copacabana -, episódio que deu início à marcha que tomaria o poder em 1930 – o excelente artigo de Sérgio Rubens de Araújo Torres, “A revolução de 1922.”
O texto, claro e envolvente, típico de tudo o que Sérgio Rubens fazia, mostra a importância desta data para a história do Brasil, bem como destaca a coragem e o patriotismo daqueles que estiveram à frente deste enfrentamento. Os 18 heróis do Forte de Copacabana serviram de exemplo e abriram os caminhos para a vitória do povo brasileiro. Confira!
S.C.
Os 18 do Forte
“Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?”
- Às Portas da Revolução
Domingo, 2 de julho de 1922. O decreto de fechamento do Clube Militar, anunciado pelo governo, é debatido em Assembléia dirigida pelo marechal Hermes da Fonseca, presidente do Clube. Presentes cerca de 600 oficiais, em clima de grande agitação. Contra o tenente Gwyer de Azevedo, que discursa na tribuna, disparam apartes o major Euclides Figueiredo, o coronel Tertuliano Potiguara, os generais Setembrino de Carvalho, Napoleão Felipe Aché, Carneiro de Fontoura, membros da cúpula militar comprometida com a velha ordem que começava a desmoronar. O relato do episódio, firmado pelo próprio tenente Gwyer de Azevedo, é representativo da tensão que marcava a época. Oito anos e três meses mais tarde, a oligarquia cafeeira seria derrubada do poder pela Revolução de 1930.
Tenente Gwyer: … Os jornais noticiam que o senhor Presidente da República …vai mandar seus agentes fecharem amanhã o Clube Militar, baseado numa lei proíbe as sociedades de anarquistas, de cáftens e de exploradores do lenocínio…
Major Euclides Figueiredo: O senhor Presidente da República tem toda a razão.
Tenente Gwyer: Vossa Excelência concorda que o presidente feche o Clube Militar baseado naquela lei?
Major Euclides Figueiredo: Concordo.
Tenente Gwyer: Então Vossa Excelência é cáften? É explorador do lenocínio?Queira desculpar porque, francamente, eu não sabia.
Marechal Hermes: O senhor tenente Gwyer precisa modificar a sua linguagem…
Tenente Gwyer: … O que revolta é oficiais emprestarem seus galões a um bandido, … deixando-o cavalgar livremente o Exército e fechar o Clube Militar de maneira infame, injuriosa e opressora.
Coronel Tertuliano Potiguara: Vossa Excelência se atreve a chamar o senhor presidente da República de bandido?
Tenente Gwyer: Ele não é somente bandido, é ladrão também, está provado…
Capitão Teopon Vasconcelos: Vossa Excelência é indigno de vestir a farda do Exército. Não agrida seus superiores!
Tenente Gwyer: Eu falei com o coronel Potiguara, e não com o seu ordenança…
Capitão Teopon Vasconcelos: Vou lhe mostrar quem é o ordenança, seu cachorro…
Marechal Hermes: Se os senhores oficiais continuarem nessa linguagem, serei obrigado a suspender a sessão. Todos nós somos do Exército, e o que está se passando aqui depõe contra nossa cultura e nossa educação. Continua com a palavra o Tenente Gwyer de Azevedo.
Tenente Gwyer: A observação do senhor presidente atinge aqueles que me obrigam a responder com violência aos apartes violentos e indelicados…
Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um cretino.
Tenente Gwyer: Cretino é Vossa Excelência. Não estamos no Contestado, onde Vossa Excelência mandava fuzilar a torto e a direito…
General Setembrino de Carvalho: Fosse eu presidente do Clube, esse oficial não continuaria a falar.
Tenente Gwyer: … Como poderia ser presidente deste Clube um oficial-general que na campanha do Contestado roubou da nação dois mil e seiscentos contos, assinando recibos fantásticos de víveres e deixando os soldados morrerem de fome?
Coronel Potiguara: Vossa Excelência é um caluniador:
Tenente Gwyer: Vossa Excelência toma as dores porque mandou encher de palha os 15 vagões que deveriam levar roupas para os soldados no Contestado, remeteu 30 volumes de pedras no lugar de 30 volumes de granadas … fluidificou 20 mil pares de botas de montaria que nunca foram vistas, em ponto algum do planeta, a não ser nas algibeiras de Vossa Excelência, vastas como o oceano…
General Napoleão Felipe: Torna-se necessária uma reação da nossa parte, porque esse oficial está nos enxovalhando.
Tenente Gwyer: Vossa Excelência também tem rabo de palha..
General Napoleão Felipe: Aponte uma irregularidade minha.
Tenente Gwyer: Vossa Excelência, na França, requisitou dinheiro do Tesouro Nacional para pagar dívidas contraídas em conseqüência de jogo e libertinagem… Isso está no relatório do embaixador do Brasil enviado ao Ministério do Exterior.
General Napoleão Felipe: Mas esse embaixador é um canalha…
Tenente Gwyer: Não sou o culpado. Entenda-se com o senhor embaixados.
Marechal Hermes: Não posso aceitar os termos em que o senhor está se expressando…
Tenente Gwyer: Senhor presidente… Estamos às portas da revolução!
2. A República do Café
Em 1894, com a ascensão de Prudente de Moraes à presidência, a oligarquia cafeeira paulista assumira o controle da República.
A produção do café viera se expandindo continuamente, desde 1830. A partir de 1870, com a marcha para o Oeste paulista e a introdução da mão de obra assalariada, esse crescimento foi fortemente acelerado. Porém, no final do século, grandes dificuldades despontaram no horizonte.
Em 1893, a saca de café no mercado internacional estava cotada a 4,90 libras. Em 1899, o preço caíra para 1,48 libras – uma queda de 70% em seis anos. Sob comando dos cafeicultores, a resposta do governo era a desvalorização cambial. A oligarquia cafeeira recebia menos libras por cada saca de café. Mas compensava a perda no momento em que trocava as libras valorizadas pelos mil-réis desvalorizados.
Do outro lado da moeda, o preço, em mil-réis, dos produtos importados se elevava. Como a oligarquia não queria nem ouvir falar em política de industrialização, o país seguia importando quase tudo o que consumia. Portanto, quem acabava pagando a conta da política de manutenção dos lucros do café através da desvalorização cambial era o povo, assolado por uma inclemente carestia.
Em 1901, a produção nacional de café atingiu 16,3 milhões de sacas, enquanto o consumo mundial era de apenas 15 milhões. O problema tornava-se mais grave.
Em 1906, uma nova política foi inaugurada, através do Convênio de Taubaté. O governo paulista – secundariamente os de Minas e Rio -, com o aval do governo federal, contrairia empréstimos junto aos bancos ingleses e norte-americanos para comprar e estocar café, de modo a que a oferta excessiva do produto não acarretasse a redução dos preços.
O resultado era previsível: estoques invendáveis se acumulariam e os bancos não abririam mão de receber seus empréstimos. Para atendê-los o governo acabaria promovendo a socialização dos prejuízos, drenando os recursos do conjunto da sociedade.
Batizada de política de valorização do café, esse expediente arquitetado para garantir lucros à oligarquia cafeeira e ao sistema financeiro internacional, às custas da expropriação de todos os demais setores da sociedade, perdurou até a Revolução de 1930, convivendo, inclusive, em vários períodos com a desvalorização cambial.
Tal situação se refletiria diretamente sobre o sistema político. Na impossibilidade de mantê-la através de regras minimamente democráticas, seus beneficiários transformaram o processo eleitoral num grosseiro cambalacho.
Além do voto a bico de pena – aberto e não secreto – que propiciava toda a sorte de pressões, intimidação e encabrestamento dos eleitores, o sistema de apuração alterava escandalosamente o veredicto das urnas.
A designação de todos os componentes das mesas eleitorais era de responsabilidade exclusiva dos presidentes das casa legislativas. Depois de colhidos e contados, os votos eram incinerados. Sobravam as atas, cuja validação e totalização também estavam sob estrito controle dos presidentes dos legislativos.
Quando isso não se mostrava suficiente para alijar os candidatos oposicionistas, as comissões de verificação de poderes das Assembléias Estaduais e da Câmara Federal, nomeadas pelo mesmo critério, se encarregavam da degola: termo pelo qual celebrizou-se o ato de transformar candidatos derrotados em vencedores e vice-versa.
Tal sistema eleitoral, fraudulento até a medula, garantia às elites estaduais o controle sobre sua província e à oligarquia paulista, coadjuvada pela mineira, o controle sobre a máquina federal.
Só uma única vez, em 1910, uma cisão entre paulistas e mineiros produziu a brecha que levou à presidência da República um candidato fora do eixo café-com-leite, o marechal Hermes da Fonseca.
- As Eleições de 1922
A pressão que a oligarquia cafeeira mantinha sobre a sociedade acabaria explodindo nas eleições presidenciais de 1º de março de 1922. Os estados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia lançariam Nilo Peçanha, contra o candidato oficial Artur Bernardes – a quem a voz do povo, revelando notável antipatia, logo carimbaria com os apelidos de Seu Mé e Rolinha.
O Clube Militar, presidido pelo marechal Hermes, coloca-se frontalmente contra a candidatura situacionista. Empurrado para um papel cada vez mais subalterno, desprestigiado pelos baixos soldos, mas cioso do papel preponderante que desempenhara na Abolição e na constituição da República, o Exército via com olhos cada vez mais críticos o rumo tomado pelo país.
A gota d’ água viria no dia 9 de outubro de 1921. O jornal carioca Correio da Manhã publica em primeira página uma carta de Bernardes dirigida a seu principal colaborador, o senador Raul Soares, lavrada nos seguintes termos:
“Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados, e de tudo que nessa orgia se passou… esse canalha precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina. Veja se o Epitácio mostra agora sua apregoada energia, punindo severamente esses ousados… A situação não admite contemporizações; os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões”.
Os protestos de Bernardes quanto à falsidade do documento não encontraram eco na oficialidade. Uma longa, desgastante e acirrada polêmica sobre a autenticidade da carta arrastou-se durante meses. A idéia que ficou pode ser resumida numa afirmação que revela o grau de radicalização atingido pelo confronto:
Se não escreveu, foi o que disse. E se não disse, é o que pensa.
Nos últimos dias de dezembro, o General Ximeno de Villeroy, depois de condenar com veemência a “desbragada delapidação dos cofres públicos” e a “onda de lama que ameaça submergir a República” lança um dramático apelo:
“Republicanos! Até quando sofreremos tanta ignomínia e abjeção? Uni-vos que é chegada a hora de fazermos justiça implacável! Discípulos de Benjamin Constant! Soldados de Floriano e Deodoro, que vos importam os insultos de um politiqueiro de baixa estofa?”
A campanha da Reação Republicava, nome pelo qual a chapa oposicionista evocava o compromisso com a causa pública contra o processo de privatização do Estado promovido pela oligarquia cafeeira, empolga as ruas. Era absolutamente nítido o contraste entre a vibração produzida pelas duas campanhas. No carnaval, cantada e tocada até a exaustão, apesar de proibida pela polícia, a marchinha de Freire Júnior e Careca, Ai Seu Mé, renovava as esperanças:
Ai, Seu Mé!
Ai, Seu Mé!
Lá no Palácio das Águias, olé!
Não hás de pôr o pé!
- Tribunal de Honra
Encerrada a votação, Nilo Peçanha começa a articular, com o apoio do Clube Militar, a criação de um Tribunal de Honra, para garantir a “apuração isenta” do pleito. Em favor da tese, é invocado o exemplo norte-americano das eleições presidenciais de 1876.
Ao substituir a comissão de verificação de poderes do Congresso, o Tribunal de Honra poria em cheque o principal trunfo da oligarquia para produzir a vitória de seu candidato: a fraude.
A proposta ganha força na sociedade. Os pronunciamentos militares se sucedem. O presidente Epitácio Pessoa tenta contê-los através de atos administrativos, transferências, punições, o que só faz elevar a temperatura.
A oficialidade jovem revela-se cada vez menos disposta a aceitar que as eleições terminem num novo cambalacho. Os tenentes sonhavam com um Brasil livre dos grilhões da monocultura cafeeira, renovado pelo voto secreto, educação pública, industrialização, moralidade administrativa, erradicação da miséria. A fraude eleitoral significava o contrário. Uma idéia vai ganhando força nos quartéis: Tribunal de Honra ou Revolução!
No mês de abril, são presos quatro aviadores navais, sob a acusação de planejarem o bombardeio do trem presidencial, que transportaria Epitácio Pessoa em sua viagem de Petrópolis para o Rio de Janeiro, no dia 28.
Na noite de 1º de maio, o presidente realiza uma reunião de emergência, no Palácio do Catete, com os mentores da candidatura oficial, para avaliar a conveniência de, como resposta ao Tribunal de Honra, promover uma reforma no regimento do Congresso, para que a comissão de verificação de poderes ganhasse o caráter de comissão de arbitragem constituída por três representantes de cada candidato. Seria uma proposta de acordo, que contava com o apoio de Nilo Peçanha.
Os ministros da Guerra e da Marinha alertam para o estado agudo e explosivo da crise militar e consideram o acordo uma boa saída.
O senador Raul Soares – já eleito para substituir Bernardes no governo mineiro – contesta a idéia. Argumenta que tal comissão, por ser paritária, terminaria seu trabalho num impasse, não reconhecendo nenhum dos dois candidatos, o que acarretaria a anulação do pleito.
A bem da verdade, a renúncia dos candidatos e a convocação de uma nova eleição não estava fora das cogitações de Epitácio. Em carta a Bernardes, Raul Soares relata o diálogo que manteve com o presidente:
– O Artur Bernardes – é a minha convicção – não se agüentará 24 horas no Catete… É possível que aqui ainda obtenha certo apoio da guarnição, porque está organizada com o máximo de cuidado… Mas e os estados? As deposição de governadores partidários de Bernardes se sucederão. Não ficará um só governo de pé e o Bernardes não terá forças para restabelecer a ordem. Teremos, pois, a revolução, a anarquia e o mais que se pode prever.
- De acordo com a sua exposição só há uma solução: a desistência do Artur…
- Exatamente, a desistência de Bernades seria a solução.
O senador paulista Álvaro de Carvalho, que havia apoiado a tese do entendimento, comunica, no encerramento da reunião, o recado que Washington Luís lhe transmitira através de uma ligação telefônica: São Paulo não aceita nem reforma, nem renúncia, nem qualquer alteração das regras eleitorais. O pronunciamento do governador reafirmava os termos da nota do Partido Republicano Paulista, porta voz da oligarquia cafeeira, contra as tentativas de apaziguamento realizadas antes da eleição:
“São Paulo, como sempre, assumiu atitude definida e definitiva”.
O assunto estava encerrado. No dia 7 de junho, o Congresso proclamaria a vitória de Bernardes. Porém, até a posse, em 15 de novembro, muita água ainda haveria de rolar por baixo e por cima da ponte.
- O Plano Revolucionário
Fechadas as portas à saída política, a solução revolucionária passa ao centro da cena. O plano que vai sendo arquitetado tem por objetivo estratégico a obtenção do controle sobre 1ª Divisão de Infantaria, sediada na Vila Militar, para, com base nela, organizar uma coluna revolucionária que marchasse até o Catete e depusesse o governo.
Os revoltosos acreditavam que com apoio no 1º Regimento de Infantaria e em unidades situadas nas proximidades – Escola Militar de Realengo, Batalhão Ferroviário, Batalhão de Engenharia, Escola de Aviação – seria possível forçar o 2º Regimento de Infantaria e demais corpos da 1ª Divisão de Infantaria a se integrarem ao movimento.
Obtido esse resultado, o marechal Hermes, escoltado por um piquete do 15º Regimento de Cavalaria, assumiria o comando da coluna que iniciaria o seu deslocamento pelo eixo ferroviário da Central do Brasil. Na região do Méier, previa-se um confronto com as tropas da Marinha, do 1º Regimento de Cavalaria Divisionária, da 3ª Companhia de Metralhadoras Pesadas e do 3º Batalhão de Infantaria da Polícia Militar.
A vanguarda revolucionária suportaria o choque, enquanto a retaguarda, tomando o rumo de Jacarepaguá, se deslocaria pela estrada do Pica-Pau, em direção à Tijuca, visando a Zona Sul, por onde avançaria sob a cobertura dos canhões do Forte Copacabana e da Fortaleza de Santa Cruz, também previamente sublevados, para alcançar o Palácio das Águias, bairro do Catete, sede do governo federal.
Hermes da Fonseca Filho, biógrafo do marechal, apresenta a seguinte avaliação:
“Esse plano não deixava de ser bem estruturado, pois enquanto o combate no Méier empolgasse as atenções do governo, levando-o a concentrar ali todos os reforços, o ataque revolucionário diversionista pelo lado Tijuca-Copacabana-Gávea desenvolver-se-ia a toque de caixa”.
O plano previa também a sublevação da guarnição federal de Mato Grosso, chefiada por seu comandante, o general Clodoaldo da Fonseca.
- O Fechamento do Clube Militar
Durante o mês de junho, a tensão política se eleva. O governador de Pernambuco protesta contra a intervenção de Epitácio Pessoa nas eleições daquele estado. O presidente alega inocência. O incidente, porém, desencadeia uma escalada que culmina no levante de 5 de Julho.
Uma concorrida Assembléia do Clube Militar, realizada no dia 28 de junho, aprova por aclamação o telegrama do marechal Hermes ao coronel Jaime Pessoa, comandante militar de Recife, recriminando a intervenção do Exército nos incidentes contra o governo estadual, provocados pelos Pessoa de Queirós, sobrinhos de Epitácio. Os jornais de Recife estampam o texto do documento. A violência em curso já havia provocado a morte do dentista Tomás Coelho, com um inconfundível tiro de fuzil mauser que convulsionara o estado.
Diz o telegrama:
“O Clube Militar está contristado pela situação angustiosa em que se encontra o Estado de Pernambuco, narrada por fontes insuspeitas que dão ao nosso glorioso Exército a odiosa posição de algoz do povo Pernambucano. Venho fraternalmente lembrar-vos que mediteis nos termos dos artigos 6º e 14º da Constituição, para isentardes o vosso nome e o da nobre classe à que pertencemos da maldição de nossos patrícios… Não esqueçais que as situações políticas passam e o Exército fica”.
Em sua resposta, o coronel Pessoa, também parente de Epitácio, comete a imprevidência de sublinhar que estava agindo por ordens superiores – “outro não é nem será meu intuito que obediência à lei e autoridades constituídas”. A indiscrição expõe e deixa furioso o presidente da República.
No dia seguinte, o coronel é forçado a pedir demissão do comando da 6ª Região Militar. Epitácio incumbe também o ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, de interpelar o marechal Hermes sobre a autoria do telegrama que considera desrespeitoso à sua autoridade.
Em 1º de julho, o marechal e a diretoria do Clube Militar reafirmam sua responsabilidade sobre o telegrama. O governo anuncia, então, duas decisões explosivas. O fechamento do Clube Militar por seis meses, baseado na Lei Adolfo Gordo, que autorizava a interdição – a bem da moral pública – de casas de tavolagem e lenocínio, antros de vigaristas e rufiões, sociedades de cáftens e anarquistas. A outra seria uma medida disciplinar, sob a forma de repreensão, contra o marechal Hermes, que repele pronta e energicamente a punição dirigindo-se à Epitácio nos seguintes termos:
“Considerando que a minha alta patente e a condição de chefe do Exército nacional me conferem tacitamente o direito de aconselhar e encaminhar na senda honrosa, sempre trilhada pelas forças armadas, àqueles oficiais que porventura possam ser mal orientados… declaro à vossa excelência que não posso aceitar a injusta e ilegal pena que me foi imposta”..
No dia 2 de julho, Hermes preside a tormentosa Assembléia do Clube Militar, na qual o tenente Gwyer lança a dramática advertência: “estamos às portas da revolução”. Naquele momento, mais que desejo ou vaticínio, essa era a constatação de um fato.
7. Preparativos Finais
Condenando o decreto de suspensão do Clube e a repreensão ao marechal Hermes, o Correio da Manhã publica um editorial incendiário, no dia 3 de julho, onde afirma:
“Afinal o crime do marechal Hermes e do Clube Militar foi o de terem em documento público aconselhado o respeito a Constituição… Não é preciso mais nada para saber que entramos num estado revolucionário da pior espécie, aquele em que é o agente da ordem que o provoca e entretém. O fechamento do Clube Militar toma o caráter de uma medida em que só se vê o fel que amarga as resoluções de pura vingança”..
O ultraje aos militares e oposicionistas em geral não ficaria sem resposta.
No bairro do Leme, o general Joaquim Inácio em reunião com cem revolucionários, civis e militares de todas as armas, que vinham há meses preparando o levante, fixa o seu início para uma hora da madrugada do dia 5.
Um dos presentes à reunião era o tenente Antônio de Siqueira Campos, brilhante oficial do Forte Copacabana. Nascido numa fazenda de café, em Rio Claro, interior de São Paulo, leitor assíduo de textos sobre a história do Brasil e a revolução mexicana de Villa e Zapata, ocorrida na década anterior, Siqueira, com 24 anos de idade, seria o protagonista da epopéia que o transformaria no grande baluarte do Movimento Tenentista.
Das seis fortalezas que guarnecem a baía da Guanabara, Copacabana (1ª Bateria Isolada de Artilharia de Costa) era a mais moderna. Com suas cúpulas protegendo gigantescos canhões de 305 milímetros, o Forte Copacabana era o que dispunha de maior poder de fogo. Sua guarnição estava sob o comando do capitão Euclides Hermes, filho do marechal Hermes.
Os revolucionários contavam também como certa a adesão da Fortaleza de Santa Cruz (2º Regimento de Artilharia). As demais – Vigia, Laje, São João e Pico – dependeriam da evolução dos fatos. Mas Copacabana e Santa Cruz, pela localização e potência de fogo, eram as principais unidades de artilharia da Capital da Federal.
A 3 de julho, o Forte acelera os preparativos para a revolução. A despensa é abastecida com víveres para um mês; barricadas com centenas de sacos de areia são erguidas em pontos estratégicos; a guarda é reforçada. Siqueira Campos minara diversas áreas do terreno, desde o portão da guarda até o farol. Concentra-se, agora, em recuperar o holofote da unidade.
- A Prisão do Marechal Hermes
Às 23h, por ordem do Presidente da República, o marechal Hermes é preso e recolhido ao 3º Regimento de Infantaria, na Praia Vermelha. A afronta viria colocar mais lenha na fogueira, e sua libertação, ao meio-dia do dia 4, não detém a marcha dos acontecimentos.
A truculência empregada pela oligarquia cafeeira para sufocar o questionamento à fraude eleitoral que patrocinara voltava-se contra ela.
O líder das bancada fluminense, senador Irineu Machado, pronuncia inflamado discurso que conclui dizendo:
“Espero dos acontecimentos e da história os grandes dias em que arrancaremos desse pântano mefítico a nossa nacionalidade. Será essa, ainda uma vez, a obra grandiosa do Exército”.
Também o líder da bancada gaúcha na Câmara Federal, deputado Otávio Rocha, não poupa adjetivos para incentivar a resposta revolucionária que está prestes a ser desencadeada:
“De joelhos, nunca. De pé e de frente eu encaro o ditador… fiquem para todo e sempre malditos os que… tiveram a ilusão de que os césares eram eternos e o poderio da Terra o supremo bem”..
A única pessoa a quem foi permitido visitar o Marechal Hermes, durante a sua estada de dezessete horas na prisão, foi o ex-presidente Nilo Peçanha. A conversa foi reservada e não há relato sobre o que foi discutido. Porém o marechal Hermes não deixou o 3º Regimento de Infantaria com a mesma firmeza de propósitos que havia demonstrado até antão. Talvez porque Nilo de alguma forma o tenha feito entender que tanto ele quanto o governador Borges de Medeiros, que até então vinham apoiando seus pronunciamentos, consideravam inoportuno o recurso à insurreição naquele momento.
Borges formalizaria essa posição em manifesto publicado no dia 7, no jornal gaúcho A Federação:
“Nada mais absurdo nem mais condenável do que corrigir uma violência com outra violência”…
Declarando-se “solidário com os vencidos”, Nilo Peçanha empregaria seus últimos vinte meses de vida na defesa dos tenentes rebelados, e em conversações que conduziriam à eclosão de novo levante, na cidade de São Paulo, dando início à Revolução de 1924.
9. O Forte Está Pronto
À noite, cerca de duzentos oficiais, praças e voluntários civis começam a cruzar os portões do Forte, para reforçar a sua guarnição. Às 22h toda uma bateria do Forte do Vigia, situado na outra extremidade da praia de Copacabana, bairro do Leme, integra-se nesse esforço. São 54 homens comandados pelo tenente Fernando Bruce.
Às 23h30 o general Bonifácio Gomes, comandante do 1º Distrito de Artilharia de Costa, chega ao Forte com ordem expressa de destituir o capitão Euclides Hermes do comando da unidade. Vem acompanhado do capitão José da Silva Barbosa, a quem pretende investir na função. Ambos são presos.
Uma companhia do 3º Regimento de Infantaria, que havia sido deslocada para apoiar a missão do general, é intimada a recuar. O tenente Mário Carpenter, que integra a companhia, confraterniza com os revoltosos e também adere ao levante.
À 1h15 de 5 de julho, um disparo para o céu anunciava o compromisso do Forte Copacabana com a revolução. Conforme o combinado, as outras fortalezas deveriam confirmar o apoio disparando também os seus canhões. A resposta é o silêncio.
Mas o Forte não se deixa impressionar. Seus canhões alvejam a desabitada ilha de Cotunduba. Depois começam os tiros para valer: os dois primeiros, dirigidos ao 3º Regimento de Infantaria e ao Forte do Vigia.
- O Levante da Escola Militar
Às 23h do dia 4 teve início o levante da Escola Militar de Realengo. Por iniciativa do corpo de oficiais instrutores, composto por diversos protagonistas das futuras rebeliões tenentistas, entre os quais os tenentes Victor César da Cunha Cruz, Ricardo Hall, Caio de Albuquerque Lima, Edmundo Macedo Soares e Juarez Távora, cerca de 600 cadetes de várias armas entram em forma e começam a ser armados e municiados.
Patrulhas foram destacadas para vigiar a residência de oficiais sabidamente contrários ao movimento.
Foram detidos o comandante da Escola, general Monteiro de Barros, e um cadete que se recusou a participar do levante.
À meia-noite, sob o comando do coronel Xavier de Brito, diretor da Fábrica de Cartuchos de Realengo e veterano da campanha de Canudos, a Escola deslocou-se pela estrada São Pedro de Alcântara em direção à Vila Militar – a 10 quilômetros de distância. Antes de alcançar a parada de Magalhães Bastos, um elemento de ligação trouxe a informação de que toda a tropa aquartelada na Vila estava de prontidão, e sob o completo controle dos oficiais governistas.
Cinqüenta anos mais tarde, Juarez Távora descreveria o episódio, com as seguintes palavras:
“Soube-se mais tarde que apenas alguns elementos de uma Companhia do 1ºRegimento de Infantaria haviam sido sublevados por um dos seus oficiais, o tenente Frederico Cristiano Buiz….
Diante dessa grave situação, o comando da Escola deslocou a marcha da Coluna para ocupar posição no morro da Caixa d’Água, com bom domínio sobre toda a Vila Militar… Ao clarear do dia 5, o comando da Escola determinou o disparo de alguns tiros de shranpnel da artilharia, sobre os quartéis da Vila… A reação não demorou… Por volta das 9h, a situação estava claramente definida; toda a tropa da Vila se movimentava contra a Escola. Entre os elementos desta já havia um morto – o cadete Fedorval Xavier Leal – e um outro ferido… Seria insensato e desumano prosseguir naquele duelo desigual… A retirada foi feita em ordem”.
11. Malogra a insurreição
Na Vila Militar estava aquartelado o 1º Regimento de Infantaria, principal corpo de tropa a partir do qual os revolucionários pretendiam irradiar o levante às demais unidades da 1ª Divisão de Infantaria.
O comandante do regimento era o coronel Nestor Sezefredo Passos, oficial governista que, às 22h15 do dia 4, recebeu ordens para prender diversos oficiais que haviam tomado o trem na Estação Central com destino à Vila Militar. O coronel Sezefredo incumbiu o tenente-coronel Álvaro Mariante de organizar patrulhas para aprisionar os insurretos, antes que esses sublevassem o regimento.
Assim, quando desembarcaram na Vila Militar, foram presos o capitão Agenor Aguiar, os tenentes Aníbal Duarte, Leônidas Hermes da Fonseca e outros três revoltosos. Também num alojamento da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais, conhecida como Baiúca, as patrulhas do tenente-coronel Mariante detiveram vários oficiais. Desse modo, mais de uma centena de revolucionários foi sendo detida, desarticulando o levante.
O tenente João Alberto Lins e Barros, que poucos anos mais tarde se converteria num destacado expoente do Movimento Tenentista, integrava, na época, o 1º Regimento de Artilharia Montada, sediado na Vila Militar. Eis o testemunho que apresenta sobre o seu malogrado batismo de fogo:
“No dia 4 de julho, durante a noite, todos nós, revolucionários, estávamos a postos para erguer a tropa ao primeiro sinal… Éramos poucos, dentro de um regimento considerado legalista e precisávamos de um apoio vindo de fora do quartel para fazer o levante… fomos presos com a impressão de que o movimento abortara. Só depois de transferidos de unidade, quando nada mais podíamos fazer, soubemos que a Escola Militar e o Forte Copacabana estavam revoltados”.
À meia-noite, no cassino do 1º Regimento de Infantaria, estavam reunidos vários grupos de oficiais. Entre eles encontrava-se o 2º tenente Frederico Cristiano Buiz. Pouco antes da 1h, Buiz dirigiu-se à sua companhia, armou os praças e formou dois pelotões. O primeiro recebeu a missão de guarnecer a frente do quartel. Com o outro sob seu comando, retornou ao cassino. O objetivo era prender o coronel Sezefredo e os oficiais governistas que ali se encontravam.
O cassino foi cercado. Irrompendo pela porta, pistola à mão, seguido por praças de armas embaladas, Buiz surpreendeu os oficiais, mas não conseguiu dominar a situação. Após um cerrado tiroteio, no qual foi mortalmente atingido o capitão José Barbosa Monteiro, Buiz acabou dominado. Falhara o levante do 1º Regimento de Infantaria.
Nas demais unidades o quadro não era alentador. O capitão Luís Gonzaga Borges conseguiu sublevar a Companhia de Pontoneiros do 1º Batalhão de Engenharia, mas não logrou assumir o controle da unidade. O tenente Luís Carlos Prestes, outro futuro vulto da história nacional, responsável pela rebelião no 1º Batalhão Ferroviário, contraíra tifo, no dia 13 de junho, ficando fora de combate. Na Escola de Aviação Militar, quando os pilotos e observadores se dirigiam para o campo, a fim de experimentar os motores das aeronaves, um batalhão governista ocupou os hangares, neutralizando a rebelião. Também na Escola de Sargentos de Infantaria, Fortaleza de Santa Cruz e 15º Regimento de Cavalaria, unidades cuja adesão era esperada, os oficiais revoltosos retraíram-se frente aos reveses iniciais.
Às 6h do dia 5, o marechal Hermes da Fonseca e o general Joaquim Inácio são presos num sítio, onde aguardavam contato com os comandantes das unidades rebeladas. O sítio de propriedade de um dos quatro filhos do marechal, o deputado Mário Hermes, ficava próximo à Vila Militar, nas imediações da estação ferroviária cujo nome lhe rendia homenagem – Marechal Hermes.
A Escola Militar ainda sustentava um desigual duelo de artilharia com as forças da Vila. Às 9h empreenderia a retirada, seguida da rendição ao meio-dia. Só no Forte Copacabana a bandeira da revolução seguia desfraldada.
A guarnição militar do Mato Grosso havia cumprido o compromisso de sublevar-se, concentrando em Três Lagoas, na fronteira paulista, a Divisão Provisória Libertadora, formada a partir das diversas unidades rebeladas. No entanto, surpreendida pela evolução desfavorável dos acontecimentos no Rio de Janeiro, permaneceu estacionada até a deposição das armas, em 13 de julho.
12. Falam os Canhões
Na manhã do dia 5 os disparos do Forte continuam a atingir pontos da cidade, com uma precisão que alarmou as autoridades e assombrou os membros da Missão Militar Francesa.
Durante a fase de organização do levante, Siqueira Campos e outros oficiais do Copacabana haviam preparado cuidadosamente novas tabelas para o tiro de canhões, com redução de carga, para modificar a trajetória dos projéteis, encurtando seu raio de ação. Os cálculos foram revisados por um antigo professor de balística da Escola Militar. Com isso os canhões do Forte tornaram-se aptos a atingir alvos da cidade considerados invulneráveis.
Às 9h, o general Carneiro de Fontoura, chefe da 1ª Região Militar, nomeia o coronel Nepomuceno da Costa comandante das Forças de Assalto ao Forte Copacabana, e encaminha uma intimação à sua guarnição.
A resposta foi um disparo sobre o quartel-general situado no edifício do Ministério da Guerra, na praça Duque de Caxias. O tiro não foi preciso, atingiu os fundos do prédio da Light and Power e a casa número 216 da rua Barão de São Félix.
O ministro da Guerra, Pandiá Calógeras, tomou então a iniciativa de telefonar para o Forte, a fim de protestar contra o bombardeio. Calógeras não era militar. Não percebeu que sua reclamação indicava com precisão a localização do alvo atingido. Com a informação prestada pelo ministro, os revolucionários prontamente refizeram os cálculos, ajustaram a pontaria e realizaram novo disparo. O impacto do obus destruiu parte da ala esquerda do Palácio da Guerra. Em seguida, mais dois tiros explodiram no pátio interno do prédio, onde tropas do Exército e da Marinha estavam estacionadas, espalhando morte e destruição. Rapidamente o quartel-general foi transferido para o Corpo de Bombeiros, do outro lado do Campo de Santana, e, em seguida, para o quartel-auxiliar do Largo de Humaitá.
- O Forte esta isolado
Às 4h da madrugada do dia 6, o capitão Euclides Hermes reúne todos os oficiais que participam da defesa do Forte e expõe claramente a situação vivida. O levante da Vila falhara. A Escola Militar tinha deposto as armas. O mesmo ocorrera com o 15º de Cavalaria. A fortaleza de Santa Cruz não havia aderido. O marechal Hermes e o general Joaquim Inácio estavam presos. O Forte Copacabana era a única unidade que se mantinha rebelada. Estava completamente isolado. Poderia resistir por mais tempo, em virtude de seu imenso poder de fogo, mas as chances de vitória eram inteiramente nulas.
O capitão prosseguiu declarando que, em vista da precariedade da situação, não se considerava no direito de sacrificar seus companheiros. Facultava, portanto, a cada um, a opção pela resistência ou pela retirada.
Desse modo, dos 301 homens que iniciaram a insurreição do Forte Copacabana, restaram apenas 29 – cinco oficiais, dois sargentos, um cabo, dezesseis praças e cinco voluntários civis. Os demais deixaram as armas e se retiraram.
- Contra-Ataque Mortífero
Pouco tempo depois, a Marinha inicia uma ofensiva contra o Forte.
Os encouraçados São Paulo e Minas Gerais, escoltados pelo destróier Paraná, cruzaram a barra. Os revolucionários são atacados pelo fogo dos canhões de 305 milímetros do São Paulo. O impacto das granadas chega a estremecer o solo. Ao organizarem o contra-ataque, os 29 defensores constatam que o motor que movimenta seus canhões de 305 milímetros está inutilizado. Então, manobrando a braço os canhões de 190 milímetros, a guarnição responde ao fogo.
O São Paulo é atingido. O tiro disparado pelo tenente Siqueira Campos explodira na torre de comando. A esquadra recua para uma distância segura, e não volta a entrar em ação. O Forte faz novos disparos contra a Ilha das Cobras, o Forte do Vigia, o Palácio do Catete.
- A Prisão do Capitão Euclides
Sensível às 72 toneladas de granadas de artilharia que abarrotavam os paióis da fortaleza, o ministro da Guerra propõe uma conversação de paz, aceita pelos insurretos.
O major Egídio Moreira de Castro e o tenente-aviador Pacheco Chaves são enviados pelo governo. No momento em que o tenente Newton Prado cruza o portão para recebê-los, dois hidroaviões da Marinha sobrevoam o forte, bombardeando-o. A missão de paz degenera em conflito verbal e físico entre os embaixadores.
Indignado, o capitão Euclides Hermes toma o telefone e protesta. Calógeras desculpa-se, argumenta que foi um engano: a Marinha não fora devidamente informada sobre a trégua. Lembrando as relações cordiais que mantinham até o início do levante, propõe um encontro pessoal entre ambos. A oferta é aceita pelos revolucionários.
Depois de passar o comando do Forte ao tenente Siqueira Campos, o capitão Euclides, a bordo do táxi 231, transpõe as linhas governistas sem ser molestado. Chegando à residência de seu pai, em Botafogo, telefona a Calógeras, que pede para aguardá-lo. Mas quem comparece é o capitão Marcolino Fagundes que lhe dá voz de prisão e o conduz ao Palácio do Catete. Lá, visivelmente embaraçado, Calógeras explica que: por decisão posterior do Presidente da República era forçado a prendê-lo, devendo também o Forte render-se incondicionalmente.
Às 12h30, o capitão Euclides, por telefone, comunica a Siqueira Campos o resultado da missão de paz:
Estou preso, Siqueira. Eles traíram a palavra de honra dada… Eles querem que os oficiais se rendam, que deixem o forte, marchando desarmados, um a um, até se entregarem às tropas legais.
As mais próximas se encontravam na Praça Serzedelo Correia, a mais de um quilômetro de distância. A oligarquia cafeeira pretendia liquidar a fatura com uma lição exemplar e definitiva. Em troca de suas vidas, à guarnição rebelada não bastaria render-se. A humilhação era o preço a ser pago por haverem levado a luta até aquele ponto.
- A Decisão que Mudou a História
Na sala de comando reúnem-se os quatro últimos oficiais que se mantinham em armas pela revolução. Todos eram tenentes. Nenhum tinha mais de 25 anos. Dois eram membros da guarnição original do Forte Copacabana: Siqueira Campos e Newton Prado. Outros dois haviam se juntado a ela no momento da sublevação: Mário Carpenter e Eduardo Gomes. Reinava uma paz temporária, pois o dispositivo legal recebera ordens de aguardar a rendição.
A decisão que sai da reunião é ousada, surpreendente, e muda o rumo da história, transformando a derrota do levante numa esmagadora vitória moral dos revolucionários.
Ao invés de rendição, a resolução é a de marcharem contra a tropa governamental, armados de fuzis e revólveres. Se fossem atacados, reagiriam. Se não, a parada seria no Palácio do Catete. O ânimo retorna e os preparativos são realizados em ritmo febril.
Siqueira pede ao sergipano Manoel Ananias dos Santos, o soldado 108, e ao praça José Olympio, que desçam a bandeira do Forte. Dividiu-a em 29 pedaços, dando um a cada revolucionário presente – cujos nomes foram gravados a prego e bala numa das paredes internas da fortaleza. O último guardou-o consigo, para o capitão Euclides. Todos se municiaram, enchendo os bolsos com cartuchos. Ninguém deixou de levar menos de 200 tiros. Os oficiais barbearam-se, ajustaram seus uniformes, e desfizeram-se das insígnias do grau militar. Naquele momento, eram todos soldados.
As 13h30, antes de transpor as barricadas, Siqueira fala aos companheiros:
Eles têm que atirar primeiro… Não se dá nenhum tiro antes… Deixa eu conversar com quem chegar primeiro… Agora, se derem um tiro na gente, não precisam esperar ordem de fogo.
- Arrancada Final
Marcharam pela rua e a calçada que margeia a praia de Copacabana. A avenida Atlântica, na época, tinha poucas construções, mas não estava deserta. No caminho falavam aos moradores sobre seus motivos. Lenços brancos eram acenados das janelas. De longe, oficiais e praças do 3º Regimento de Infantaria lhes gritavam que se rendessem. Foram assim até o hotel Londres, onde pararam para beber água. Já haviam percorrido mais de um quilômetro.
Ao reiniciar a marcha, Siqueira verifica que alguns haviam desistido. Mas isso já não tinha importância.
Antes de atingirem a rua Barroso, o jovem engenheiro gaúcho Otávio Correia se aproximou do grupo. Dirigindo-se a Siqueira, a quem conhecera na casa da escritora Rosalina Coelho Lisboa, falou:
Vou com vocês Antônio, preciso de uma arma…
Newton Prado entregou-lhe o fuzil que trazia e sacou a parabellum, que passou a empunhar na mão direita.
Ao chegarem na esquina da rua Barroso, hoje Siqueira Campos, uma surpresa. O tenente Segadas Viana, comandante de um dos três pelotões da 6ª Companhia do 3º Regimento de Infantaria, surge diante deles.
A 6ª Companhia, estacionada na praça Serzedelo Correia, havia recebido ordens de preparar-se para deter a marcha dos revolucionários, enquanto se providenciavam mais reforços. Seu comandante, o capitão Pedro Crisol Fernandes Brasil, dispôs então um pelotão na rua Barroso, comandado pelo tenente Segadas; outro na rua seguinte, Hilário de Gouveia, chefiado pelo tenente Miquelina; e o terceiro manteve na praça, sob comando do tenente Sawen.
Algum tempo depois, o tenente Segadas recebeu ordem de descer pela rua Barroso, em direção à praia, para observar a progressão dos reforços. Tendo atrás de si, a uns 30 metros, seu pelotão, logo que chegou na esquina deparou-se com os insurretos. Ao verem o tenente legalista, três soldados tentaram dominá-lo. Ele sacou a arma, mas o tenente revolucionário Mário Carpenter, seu colega no 3º Regimento, ordenou aos praças que se detivessem. Enquanto isso, os 40 membros do pelotão apontavam suas armas contra os revoltosos e vice-versa.
Nessas circunstâncias iniciou-se um diálogo. Siqueira e Carpenter exortavam Segadas a acompanhá-los e este procurava fazer com que se rendessem. Esgotados os argumentos, o destacamento revolucionário retomou a marcha, mas, vindo da Hilário de Gouveia, surge o capitão Brasil que acaba dando a ordem de “fogo” ao pelotão do tenente Segadas. Um soldado obedeceu e disparou. A bala matou pelas costas o soldado Pedro Ferreira de Melo. Siqueira virou-se e devolveu o tiro. O combate começou.
- Combate na Praia
Depois de sustentarem o tiroteio por alguns minutos em pé, na rua, os revolucionários pularam para a areia e se entrincheiraram por trás do paredão da calçada da avenida Atlântica. A esta altura, eram 15. Ali iriam se manter por mais de uma hora enfrentando o fogo combinado do Exército, da Polícia Militar e do Batalhão Naval.
Os pelotões do tenente Segadas e Miquelina, da 6ª Companhia, sofrem imediatamente várias baixas, inclusive seis mortes.
As forças legalistas acorrem em massa à praça Serzedelo Correia, em socorro aos pelotões do 3º Regimento de Infantaria. Até mesmo a tropa de guarda do Palácio do Catete foi deslocada para essa finalidade. Ao todo, 4.000 homens foram mobilizados contra os 18 do Forte.
Embora a desproporção entre as forças fosse esmagadora, o paredão representava excepcional proteção aos revolucionários. E a motivação com que pelejavam dava às suas ações a objetividade que faltava às forças governistas.
O voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior, que sobreviveu ao combate, relatou:
“O tiroteio foi renhido, mas atirávamos com calma e precisamente… as forças do governo avançavam lentamente”.
O primeiro revolucionário atingido pela fuzilaria foi Eduardo Gomes, o único que não sofreu um ferimento mortal. Teve o fêmur partido por uma bala, mas seguiu combatendo. Depois tombou o gaúcho Otávio Correia, com um tiro no coração.
Considerando a dificuldade de sufocar os revoltosos, foi cogitada a carga de baionetas. Os oficiais, no entanto, recusaram-se a empregá-la contra aqueles que, mesmo na condição de inimigos, lutavam tão corajosamente. Que se rendessem ou fossem mortos a tiros, nunca estripados.
A luta prosseguiu, até que a munição dos rebeldes se esgotou. Já havia caído o sargento José Pinto de Oliveira, com uma bala na fronte. O tenente Mário Carpenter, atingido no tórax, mergulhara na inconsciência. Estavam feridos também os praças Hildebrando da Silva Nunes e Manoel Antônio dos Reis – corneteiro, cujos toques de clarim vibravam duros golpes no moral das tropas governistas.
Siqueira Campos – com um ferimento na mão esquerda – e o tenente Newton Prado – baleado no abdome e na perna – ainda guardavam a última bala em seus revólveres. Aos demais combatentes já não restava nenhuma.
- Retirada dos Praças
O tenente Siqueira Campos ordena, então, aos praças e voluntários civis, que que cada qual tome um rumo, mas não se deixem prender.
Dois conseguem fazê-lo com êxito.
O soldado 108, Manoel Ananias dos Santos, respirou fundo, saltou para cima do paredão e desviando-se das balas atravessou a avenida em busca de abrigo. “Os legalistas deram uma rajada contra mim, mas não acertaram”, conta ele, quarenta e dois anos mais tarde ao jornalista Glauco Carneiro, da revista O Cruzeiro. “Consegui alcançar e pular o muro de uma casa… havia no jardim uma corda estendida com vários calções de banho.” Disfarçado de banhista, ele conseguiu atravessar o túnel, por volta das 16h30, chegando em seguida à residência de um sargento, na rua Mena Barreto, Botafogo.
O voluntário Joaquim Maria Pereira Júnior escapou pelo mar:
“Esgotada a minha munição, ordenou o tenente Siqueira Campos que eu me retirasse… Atirei o meu fuzil ao mar e logo adiante nadei até um lugar abrigado, onde alguns operários humanitários me vestiram à paisana”.
Preso, ao tentar romper o cerco, o soldado João Anastácio Falcão de Melo fez um significativo relato do acontecimento:
“Quando não tinha mais munição fui avançado, com um bruto ferimento na perna, mas com um punhal na mão. Me pegaram logo adiante e um oficial legalista me chamou de bandido. Aquilo moeu-me a alma. Lutara de peito descoberto contra gente armada em número muito superior e aquele homem a chamar-me de bandido! Depois, sendo da Paraíba, de uma terra em que o inimigo é seguro pelo nariz e degolado a frio, eu nunca tinha matado ninguém até aquele dia”.
O inquérito policial registra também as prisões dos soldados Francisco Ribeiro de Freitas, Benedito José do Nascimento, Heitor Ventura da Silva e do civil Lourival Moreira da Silva. Em seus depoimentos eles admitem que estavam na praia no momento dos combates, porém negam terem feito uso das armas que portavam.
- A Última Bala
Como os revolucionários não respondiam mais aos disparos, o capitão Brasil e o tenente Segadas Viana suspenderam o fogo e iniciaram um avanço lento e cuidadoso em sua direção. Já tinham caminhado cerca de vinte metros quando, repentinamente, um contingente de 100 homens do 3º Batalhão de Infantaria da Policia Militar, sob o comando do coronel Tertuliano Potiguara, sai da rua Barroso, em veículos de transporte apelidados de viuvinhas. Em alta velocidade, chegam ao local onde se encontram Siqueira Campos e seus companheiros.
Calar baioneta! Avançar! Foi a ordem de Potiguara.
Debaixo de uma gritaria infernal os atacantes se precipitam contra uma fortaleza sem muralhas guarnecida por mortos e feridos. Mas a surpresa ainda os espera.
A última bala do tenente Newton Prado é certeira, derrubando para sempre o atacante mais afoito. Siqueira aguarda até o último instante para disparar a sua, atingindo na boca o sargento Lindolfo Garcia Godinho que lhe enterrara a baioneta no fígado.
Levantem os vivos! Os vivos levantem! – uivam os comandados de Potiguara, tomados de histérico frenesi.
Não há quem os possa atender.
Junto ao corpo inerte do tenente Mário Carpenter jaz o seu quinhão da bandeira do Forte. Nele está escrito:
“Forte Copacabana – 6 de julho de 1922
Aos queridos pais ofereço um pedaço da nossa bandeira em defesa da qual resolvi dar o que podia…minha vida”.
- Epílogo
O jornal Gazeta de Notícias foi o primeiro a dar a notícia de que o número de heróis que participaram da saga foi de 18. Não seria a primeira nem a última vez em que o rigor histórico haveria de ceder lugar à lenda. Cantado em verso e prosa, o feito dos 18 do Forte incendiou corações e mentes e ganhou a força do mito.
Apesar de mortalmente ferido, Siqueira Campos sobreviveu. Em breve estaria comprovando que não fora precipitado o juízo expresso pelo escritor Coelho Neto, no artigo Arrancada Radiante. Mesmo opondo-se aos objetivos do levante, ele conclui:
“Que povo não se orgulharia de possuir na raça tais leões?”
A oligarquia cafeeira perdera as condições de exercer tranquilamente o seu poder autocrático. Mais radicais e mais amplas, novas revoluções se sucederiam até a sua derrocada em 1930.
SÉRGIO RUBENS DE ARAÚJO TORRES