CARLOS LOPES
Para Fábio Palácio e Adalberto Monteiro
Existe uma sintomática inconsciência na Semana de Arte Moderna de 1922: o Brasil, como nação concreta – como nação que luta para se constituir enquanto tal – parece não existir, ou existir de forma muito tênue, para aqueles artistas e intelectuais que se reuniram em fevereiro daquele ano, no Teatro Municipal da capital paulista.
Uma nação é, antes de tudo, seu povo. Se comparados a Euclides (Os Sertões, de 1902); ou a Simões Lopes Neto (Contos Gauchescos, de 1912); ou a Monteiro Lobato (Urupês, de 1918, Cidades Mortas, de 1919, Negrinha, de 1920); ou Lima Barreto (Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de 1909, Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, de 1919), os participantes da Semana pareciam (e parecerão) habitantes de outro planeta – isto é, de outro país – tal o desligamento em relação à realidade nacional, ou seja, ao povo, e, portanto, à nacionalidade.
Essa inconsciência foi, de certa forma, como veremos, reconhecida posteriormente pelo poeta, musicista e intelectual mais sério dos que participaram da Semana, Mário de Andrade.
O testemunho de Mário é muito importante. Porém, mesmo sem ele, onde encontrar ali o país que estava, então, travado em seu desenvolvimento, com as relações capitalistas – isto é, a industrialização – travadas pelo domínio e sufocamento da economia por parte da oligarquia cafeeira?
O espantoso é que a Semana aconteceu apenas oito anos antes da Revolução de 30, que acabou com esse domínio da oligarquia cafeeira e abriu a época que foi chamada, na década de 50 do século passado, Revolução Brasileira.
Entretanto, a Semana, enquanto acontecimento, foi apoiada por Washington Luís, então governador (presidente) de São Paulo, e financiada pelo principal líder da oligarquia cafeeira, Paulo Prado.
Como acontecimento cultural, não poderia ser mais definido em termos de classe.
O que é verdade também do ponto de vista dos participantes: Guilherme de Almeida foi, depois, o poeta oficial da contrarrevolução de 1932; Menotti Del Picchia foi secretário de Carlos de Campos, o governador de São Paulo sob cuja égide os bairros operários e populares paulistanos foram bombardeados em 1924 – e permaneceu um reacionário empedernido até sua morte, em 1988; quanto a Plínio Salgado, bem…
O discurso inicial de Graça Aranha foi tão desastroso que a maioria – talvez todos – os “modernistas” se desvincularam, em seguida, dele (Graça Aranha tinha uma relação próxima a Paulo Prado, inclusive através de seus laços afetivos, que eram públicos, com a irmã deste, Nazaré Prado).
Porém, Graça Aranha era maranhense e seu principal livro, Canaã, que nada tem a ver com o “modernismo” (muito menos com o “modernismo paulista”), transcorre no Espírito Santo.
Antes que o leitor nos cobre, e Mário de Andrade? E Oswald de Andrade?
Mário de Andrade dedicará Macunaíma (1928), exatamente, ao oligarca Paulo Prado. Mas isso foi antes da Revolução de 30. Após a revolução, ainda sob a liderança de Prado, ele seria um dos editores do órgão oficial da contrarrevolução de 1932, a Revista Nova (além de Prado e Mário de Andrade, o outro editor seria o também modernista Alcântara Machado).
Mas façamos justiça a Mário: depois dessa época, ele aproximou-se da Revolução, com um balanço honesto do passado e uma contribuição imperecível para o futuro de nossa nacionalidade.
Quanto a Oswald, é sabido que ele apoiou Júlio Prestes, o candidato da oligarquia, contra Getúlio Vargas, em 1930. Quanto a 1932, sua posição nos parece, no mínimo, ambígua, sobretudo quando comparada, por exemplo, àquela mantida por Afonso Schmidt (v. Marcio Luiz Carreri, 1932, heróis de farda e farsa: capital, trabalho e memória, em posições, ArtCultura Uberlândia, v. 23, n. 43, p. 210-225, jul.-dez. 2021).
Como não estamos seguros quanto à sua alegada trajetória no Partido Comunista, nos abstemos de outros comentários políticos sobre ele.
Por fim, nessa breve lista, Heitor Villa-Lobos, Manuel Bandeira e Guiomar Novaes.
Ninguém pretenderá que Guiomar Novaes, o maior sucesso da Semana, fosse uma modernista. Grande pianista, ela estava ali para dar prestígio à Semana. E o fez brilhantemente.
Pode-se dizer o mesmo sobre Villa-Lobos, cuja música foi muito bem recebida – e que, como mostraria do início ao fim de seu percurso, era, das figuras presentes, a mais identificada com o país, isto é, com o seu povo.
Manuel Bandeira, o maior poeta entre os citados, não estava presente. Teve lido um de seus poemas, Os Sapos, por Ronald de Carvalho. Além de pernambucano, o poema demonstra que antes da Semana, Bandeira não demonstrava nenhuma dependência em relação ao modernismo paulista.
O ensaísta Franklin de Oliveira (mais um maranhense) apontou, em seu A Semana de Arte Moderna na Contramão da História, que o desconhecimento do país era geral entre os modernistas de São Paulo:
“Os modernistas paulistanos queriam passar o Brasil a limpo. Mas, como poderiam fazê-lo, se eles nada conheciam sequer da capital bandeirante, fora a mansão dos Prado e a redação do Correio Paulistano? Fora desse círculo fechado, o mundo não existia para eles. Passar o Brasil a limpo era combater o parnasianismo e negar tudo o que até então tinha sido feito por parnasianos e não parnasianos. De um poeta como Da Costa e Silva já não falaram, tanto quanto de dois romancistas: Lima Barreto e Enéas Ferraz. O velho Marx dizia que a ignorância nunca foi útil a ninguém. Os corifeus da Semana atuaram à revelia desse conceito” (cf. Franklin de Oliveira, A Semana de Arte Moderna na Contramão da História e Outros Ensaios, Topbooks, 1993, pp. 23-24).
Este autor nota que os modernistas paulistanos foram totalmente insensíveis diante da greve geral de 1917 – em São Paulo – assim como diante das revoltas tenentistas.
Tal insensibilidade revelava uma posição de classe.
Voltaremos a isso.
Por agora, é preciso ressaltar o nosso objetivo: diante da confusão estabelecida no centenário da Semana de Arte Moderna, estabelecer alguns fatos, vistos à luz dos tempos atuais – mas, para isso, é também necessário saber como esses fatos eram vistos à luz da época.
Daí, a quantidade de citações que se seguem, pois elas são necessárias, já que a maioria dos leitores não tem condições de tomar conhecimento dos textos originais.
No entanto, qual é o desvio que enxergamos – e que, portanto, torna este texto possivelmente útil?
Acontece que, de uns tempos para cá, tudo é derivado do “modernismo”. O que veio antes – inclusive Euclides, Lobato e Lima Barreto – é “pré-modernismo”. O que veio depois – inclusive Graciliano, Jorge Amado, José Lins do Rego e Guimarães Rosa – é “pós-modernismo”.
Ou, senão, todos os escritores – ou artistas de outros ramos – são da primeira, da segunda, da terceira, ou da enésima geração “modernista”.
Tais confusões servem a que objetivo?
Ou, fazendo a pergunta de outro modo: o modernismo de 1922 foi um precursor da Revolução Brasileira ou representava uma ideologia antagônica a ela?
Se a segunda resposta for a verdadeira, não é difícil responder por que tenta-se diluir toda a literatura brasileira no caldeirão do modernismo paulistano.
2
Então, examinemos a questão com mais algum rigor.
Como tudo, ou quase tudo, no Brasil de hoje, o centenário da Semana de Arte Moderna, acontecida em 1922, tornou-se o cerne de uma acirrada luta ideológica. É natural que isso aconteça em um país que ainda não completou a sua construção enquanto nação – o que significa um Estado nacional, uma economia nacional e uma cultura nacional -, mas que iniciou a luta por essa construção há muitas décadas.
Assim, os acontecimentos do passado tendem a sofrer – este verbo é bem próprio ao que queremos significar – novas interpretações, o que é agravado, hoje, pela aberração “pós-moderna” de substituir a verdade por “narrativas”.
Mas a questão continua a mesma: qual o papel (ou a importância) da Semana de 22 na Revolução Brasileira, ou seja, no processo histórico de constituição nacional?
Pois, em relação aos outros centenários deste ano (o da primeira revolta tenentista e o da fundação do Partido Comunista), sua contribuição a esse processo é mais clara.
Comecemos, então, por estabelecer uma distinção: o termo “modernismo”, frequentemente, na literatura de acólitos da Semana de 22 – e em boa parte da literatura acadêmica sobre o assunto – serve para abrigar, como debaixo de um guarda-chuva, coisas que nada têm a ver com a Semana, e que são misturados com ela, exatamente, para legitimá-la como algo que não foi: um acontecimento revolucionário.
O traço mais nítido desse recurso está na historiografia da própria literatura, onde alguns pretendem – como já apontamos acima – que nossos autores sejam divididos em pré-modernistas, modernistas e pós-modernistas.
Assim, quem não foi modernista, ou foi pré-modernista (Euclides da Cunha, Augusto dos Anjos, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Simões Lopes Neto) ou foi pós-modernista (José Américo de Almeida, Jorge Amado, Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Amando Fontes, Graciliano Ramos, Dionélio Machado, Érico Veríssimo, Octávio de Faria, Lúcio Cardoso, Guimarães Rosa, Clarice Lispector).
Portanto, dessa forma, tudo é modernismo – ou porque teria sido um precursor, ou porque teria sido, de uma forma ou de outra, um seguidor.
Junto a essa historiografia, cujo objetivo é colocar o modernismo – e, como veremos, o modernismo paulista – como centro da cultura brasileira, existe a tentativa de transformar toda a literatura em uma sucessão de fases ou gerações modernistas.
Mas voltemos à distinção que apontamos – entre “modernismo” em geral e a Semana de 22 – para perquirir sobre o acontecimento de 100 anos atrás.
Tomemos, para isso, o testemunho do mais sério e honesto escritor, entre os paulistas que participaram da Semana de 22.
3
Em seu “Roteiro de Macunaíma”, Cavalcanti Proença compara a obra literária de Mário de Andrade – em especial, evidentemente, “Macunaíma” – com a obra de José de Alencar – em especial, “Iracema”.
Após demonstrar várias similitudes entre uma e outra obra, escreve Manuel Cavalcanti Proença:
“Porém há coisa de mais importância que é o sentido de manifesto linguístico, de plataforma para a criação de uma língua nacional, um grito contra o complexo colonial na literatura brasileira. (Hoje não há mais complexo, mas esperteza e gosto pelas comendas. E esse gosto, afinal, é também um indianismo.) Com Alencar, em verdade, começa o brasileiro nos livros, o reinol deixa de ser o modelo, e surge um grande livro escrito em linguagem diversa da portuguesa de Portugal. É preciso dizer ‘de Portugal’, pois que a do Brasil também é portuguesa e José de Alencar hoje está consagrado como escritor correto, por um filólogo do peso de Cândido Jucá Filho.
“Alencar foi para Mário de Andrade o ‘patrono santo da língua brasileira’. Para a época o cearense teve a mesma ousadia do paulista. Nem Gonçalves Dias nem Gonçalves de Magalhães possuíam a inteireza brasílica do grande cearense. Já haviam estudado na Europa, estavam contaminados e Alencar ainda não deixara o Brasil, conhecia o sertão, vivera nele desde menino. Nem Manuel Bandeira nem Alcântara Machado irão tão longe como Mário de Andrade pelos mesmos motivos.
“A língua artificial e caprichada dos diálogos das Minas de Prata e o exagero da Carta pras Icamiabas são outros pontos de aproximação.
“Em Iracema é o civilizado vivendo entre índios; em Macunaíma, o índio entre os civilizados e um e outro voltando à terra de origem. Em ambos o mesmo desajustamento entre a mentalidade primitiva e a civilizada.
“Foram dignos um do outro, Mário e José, pela seriedade, pela honestidade intelectual, pela erudição, pela nobreza com que exerceram a profissão de escritor” (cf. M. Cavalcanti Proença, Roteiro de Macunaíma, Civilização Brasileira, ed. 1969, pp. 47-48).
Esse apego a Alencar é muito pouco próprio do modernismo, em especial de seu patrocinador financeiro e ideológico, Paulo Prado – a quem Mário de Andrade, por sinal, dedicou Macunaíma -, que detestava o romantismo. Revela, em Mário, uma identificação com o Brasil, bem além da estreita (e suposta) identificação com São Paulo, que era própria de Prado.
Podemos discutir – como fez o próprio Mário (e, aliás, o próprio Alencar) – a questão da “plataforma para a criação de uma língua nacional”. Nenhum dos dois foi tão longe, mas Cavalcanti Proença não está negando que ambos escreveram em português, como explicitamente afirmaram. Uma “plataforma” não é sua realização – é apenas um projeto, algo para o futuro a partir da libertação progressiva de laços passados. Além disso, a “língua nacional” pode ser o português, contanto que seja o português do Brasil.
Entretanto, há um pressuposto na colocação de Proença, aliás, bastante comum em alguns artigos: a de que o romantismo e o modernismo foram os dois movimentos artísticos com fundo nacionalista que tivemos.
Do ponto de vista da nossa perspectiva, após a Revolução de 30, isso é sustentável?
Quanto ao romantismo, temos o que foi estabelecido pelo grande crítico da época, Machado de Assis, em seus artigos “O passado, o presente e o futuro da literatura” (1858) e “Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade” (1873). Parece-nos indubitável o seu fundo nacionalista, mesmo sob o ângulo atual.
Mas, de que nacionalismo podemos falar na época da República Velha, em que o modernismo paulista surgiu, em 1917, com a exposição de Anita Malfatti?
Havia o malfadado ufanismo, que tomara o nome da obra de uma viúva do Império, o conde Afonso Celso, que a república oligárquica, infelizmente, entronizara, após a morte de Rio Branco, no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB).
Ao mesmo tempo, havia outro nacionalismo, que era, precisamente, o ataque ao ufanismo, a essa espécie de cegueira cultivada pela oligarquia cafeeira em relação aos males do país – ataque cuja maior expressão literária seria o Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, em seu primeiro livro, “Urupês” (1918), posto em evidência por Rui Barbosa.
Trata-se de um nacionalismo aparentado com aquele dos tenentes que, em 1922, mesmo ano da Semana de Arte Moderna, farão sua entrada na História nacional, com a Revolta do Forte de Copacabana.
Mas o modernismo de 1922 passará ao largo desse nacionalismo – seja o de Lobato, seja o dos tenentes.
Mário é honesto sobre a questão. Mesmo muito tempo depois, respondendo a Joel Silveira, em 1939, disse, literalmente, que não se considerava nacionalista. Vejamos a pergunta e a resposta:
– Nota-se sempre em seus livros a presença do Brasil. Considera-se um nacionalista convicto?
Não. Apesar de minha orientação nacional, não sou um “nacionalista” no sentido apologista desta palavra. Considero-me um cidadão do mundo, e se trabalho a coisa brasileira, é pelo interesse humano que isso tem.
De resto, somente um pequeno contato com as minhas obras, me demonstra muito mais marcado pelo tropicalismo que propriamente pelo nacionalismo.
Nos artigos que escreveu, em 1942, para o jornal “O Estado de S. Paulo”, por ocasião dos 20 anos da Semana de Arte Moderna, Mário de Andrade afirmaria: “o autor verdadeiro da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado”.
Não haveria patrono mais antinacional possível – exceto se fosse algum estrangeiro.
Paulo Prado, filho mais velho do Conselheiro Antonio Prado, era o suprassumo da oligarquia cafeeira. Como intelectual, sua obra mais notória foi “Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira”, um livro muito preconceituoso sobre o Brasil, apesar de bastante badalado, inclusive nos últimos anos.
Por exemplo, em seu livro, Prado leva a sério as veleidades histórico-raciais de Martius em “Como se deve escrever a história do Brasil”, já desmoralizadas por Sílvio Romero desde o início do século XX, e segue esse caminho:
“Martius foi o primeiro a assinalar o papel do negro na nossa formação racial, e assim tocou no problema mais angustioso dessa evolução.
(…)
“A hiperestesia sexual, que vimos no correr deste ensaio, ser traço tão peculiar ao desenvolvimento étnico da nossa terra, evitou a segregação do elemento africano, como se deu nos Estados Unidos dominados pelos preconceitos das antipatias raciais. Aqui a luxúria e o desleixo social aproximaram e reuniram as raças. Nada e ninguém repeliu o novo afluxo de sangue. Salvo uma ou outra objeção aristocrática, que já não existe, o amálgama se fez livremente, pelos acasos sexuais dos ajuntamentos, sem nenhuma repugnância física ou moral. Repetiu-se o que já acontecera com o índio cruzado com o europeu adventício na poliginia dos primitivos povoamentos. Pelo contrário, tornou-se lendária a sedução da negra e da mulata para o colono português.
(…)
“Afastada a questão de desigualdade, resta na transformação biológica dos elementos étnicos, o problema da mestiçagem. Os americanos do Norte costumam dizer que Deus fez o branco, que Deus fez o negro, mas que o diabo fez o mulato. É o ponto mais sensível do caso brasileiro. O que se chama a arianização do habitante do Brasil é um fato de observação diária. Já com 1/8 de sangue negro, a aparência africana se apaga por completo: é o fenômeno do ‘passing’, dos Estados Unidos. E assim na cruza contínua de nossa vida, desde a época colonial, o negro desaparece aos poucos, dissolvendo-se até a falsa aparência de ariano puro.
“Etnologicamente falando, que influência pode ter no futuro essa mistura de raças? (…) A mestiçagem do branco e do africano ainda não está definitivamente estudada. É uma incógnita. Na África do Sul Eugen Fischer chegou a conclusões interessantes: a hibridação entre boers e hotentotes criou uma raça mista, antes uma mistura de raças, com os característicos dos seus componentes desenvolvendo-se nas mais variadas cambiantes. Tem no entanto um defeito persistente: falta de energia, levada ao extremo de uma profunda indolência. No Brasil, não temos ainda perspectiva suficiente para um juízo imparcial. A arianização aparente eliminou as diferenças somáticas e psíquicas: já não se sabe mais quem é branco e quem é preto.(…)
“O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral. Por outro lado, as populações oferecem tal fraqueza física , organismos tão indefesos contra a doença e os vícios, que é uma interrogação natural indagar se esse estado de coisas não provém do intenso cruzamento das raças e sub-raças. Na sua complexidade o problema estado-unidense não tem solução, dizem os cientistas americanos, a não ser que se recorra à esterilização do negro. No Brasil, se há mal, ele está feito, irremediavelmente (…)” (grifos nossos).
Em seguida, finalizando este capítulo – o “Post Scriptum” -, Prado elenca uma longa lista de males do Brasil anterior a 1930, todos eles devido ao domínio de sua classe sobre o país, acabando por propor uma “revolução”, como se uma revolução não implicasse, precisamente, como implicou dois anos depois de seu livro, na derrubada do poder da oligarquia de que era expoente.
Mas, desta revolução, Prado não gostará. Tornou-se um dos principais contrarrevolucionários de 1932, depois que Getúlio Vargas acabou com os privilégios da oligarquia cafeeira – isto é, com os empréstimos, pagos por toda a população, para que os cafeicultores não tivessem prejuízos, mesmo quando não conseguiam vender o café. Infelizmente, arrastou Mário de Andrade nessa aventura.
Rescende em todo o seu livro a tristeza de Prado pelo Brasil não ser um país como a Inglaterra, ou talvez a França, ou, ainda, os Estados Unidos. Talvez seja essa a tristeza de que fala o seu título (“Retrato do Brasil – Ensaio sobre a tristeza brasileira”).
Mário de Andrade, nos artigos de 1942, está plenamente consciente de que a Semana fora patrocinada pela “aristocracia” (isto é, a oligarquia cafeeira), mas não pela burguesia. E, mais, que a “aristocracia” que sustentara a semana era uma fração de classe tão decadente que já deixara de ser “funcional”.
Alfredo Bosi, em artigo sobre a conferência de Mário, pronunciada também em 1942, para a Casa do Estudante do Brasil (realizada no auditório do Itamaraty), lembra que não tivemos uma aristocracia pré-mercantil. É verdade, mas, como o próprio Bosi nota em seguida, Mário, independente do termo utilizado, sabe do que está falando – ou seja, sabe distinguir a oligarquia cafeeira da burguesia industrial e da pequena burguesia.
Mas, vejamos como Mário formula a questão nacional. Diz ele:
“O modernismo no Brasil foi uma ruptura, foi um abandono consciente de princípios e de técnicas, foi uma revolta contra a intelligentsia nacional. (…) E as modas que revestiram este espírito foram diretamente importadas da Europa” (grifos nossos).
E, logo em seguida:
“Quanto a dizer que éramos antinacionalistas, é apenas bobagem ridícula” .
Por que é “bobagem ridícula”?
“É esquecer todo o movimento regionalista aberto anteriormente pela Revista do Brasil primeira fase, todo o movimento editorial de Monteiro Lobato, a arquitetura e até urbanismo (Dubugras) neocolonial aqui nascidos. Isso sim eram raízes engrossadas desde o início da guerra. Mas o espírito e as modas foram diretamente importados da Europa” (grifo nosso).
Aqui, Mário, apesar de ressaltar uma ruptura com a intelectualidade nacional da época, incorpora correntes anteriores ao modernismo de 22 ao próprio modernismo. Inclusive Monteiro Lobato, o crítico da então musa do movimento, Anita Malfatti, citado aqui como editor, que jamais manifestou respeito pelo modernismo, apesar de sua amizade com Oswald de Andrade (por exemplo, em um de seus artigos anteriores à Revolução de 30, reunidos em “Na Antevéspera”, Lobato escreve: “O futurismo apareceu em São Paulo como o fruto da displicência dum rapaz rico e arejado de cérebro: Oswald de Andrade. Turista integral, alternando estadias em Paris com estadias em Ribeirão Preto, leituras de Marinetti e outros com leituras d’O Democrata, de Pilão Arcado, visões de mármores de Mestrovich com santos de olho arregalado feitos na Bahia, apachismos elegantes de boulevard com o mumismo urbano de Marianas e Diamantinas — sentiu melhor do que ninguém a nossa cristalização mental e empreendeu combatê-la. Mas combatê-la como? O velho processo do riso, da sátira, do sarcasmo sempre se revelou inútil entre nós. Dá resultados nos países de cultura disseminada, onde um riso como o de Voltaire se propaga em ondas hilariantes dum extremo do país ao outro. Aqui morre nos lábios de quem o arrepanha, porque a incultura não ondula coisa nenhuma. Mas Oswald, psicólogo de fartos recursos, teve uma ideia genial: recorrer ao processo da atrapalhação”).
Reparemos que, nesta passagem de Mário, ele não se refere a Graça Aranha, que, dos escritores da geração anterior, seria aquele que abriria a Semana de Arte Moderna, mas cuja obra e mentalidade estão longe de qualquer nacionalismo, sobretudo em “Canaã”, mas também na obra posterior à sua conversão modernista (há uma única menção, nesses artigos, a Graça Aranha, como “exegeta” do “conformismo modernista”).
Vejamos como o aristocratismo é coerente com o fim do próprio modernismo de 22. Primeiro, sua caracterização, por Mário:
“… o movimento renovador era nitidamente aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro, pelo seu internacionalismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabecido, pela gratuidade antipopular, era uma aristocracia do espírito. Era natural que a alta e a pequena burguesia o temessem. Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoentes da aristocracia intelectual paulista, era uma das figuras principais da nossa aristocracia tradicional. E foi por tudo isto que ele pôde medir bem o que havia de aventureiro, de exercício do perigo no movimento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual e tradicional na aventura.
“Se Paulo Prado, com a sua autoridade intelectual e tradicional, abriu a lista das contribuições e arrastou atrás de si os seus pares e… alguns outros que a sua figura dominava, a burguesia protestou e vaiou. Tanto a burguesia de classe como a do espírito.”
Mas, então, veio a revolução real – e o modernismo, tal como se manifestara desde antes de 1922, passou a não corresponder mais a nenhuma exigência nacional ou social, nem mesmo a dos divertimentos da aristocracia, que patrocinara o movimento:
“E foi a vez do salão de Tarsila se acabar, 1930… Tudo estourava, políticas, famílias, casais de artistas, estéticas, amizades profundas. O período destrutivo e festeiro do movimento modernista já não tinha mais razão de ser. Na rua o povo amotinado gritava: Getúlio! Getúlio!…”
A partir daí, as conquistas nacionais do modernismo são absorvidas pelo próprio regime que surge da revolução, inclusive pelo Estado Novo, apesar dos modernistas. Aliás, é em pleno Estado Novo que Mário de Andrade escreve, nos artigos que estamos citando, de 1942:
“Quem se revolta mais, quem briga mais contra o politonalismo de um Lourenço Fernandez, contra a arquitetura do Ministério da Educação, contra os versos ‘incompreensíveis’ de um Murilo Mendes, contra o expressionismo de um Guignard?…Tudo isto são manifestações normais, discutíveis sempre, mas que não causam o menor escândalo público. Pelo contrário, são as próprias forças governamentais que aceitam a realidade de um Portinari, de um Vila Lobos, de um Lins do Rego, de um Almir de Andrade, pondo-os em cheque e no perigo constante das predestinações.”
Aqueles artistas e autores tinham, portanto, superado o modernismo de 1922 em sua integração à nação, através, inclusive, do Estado nacional.
Cavalcanti Proença, ao comparar “Macunaíma” com “Retrato do Brasil”, de Paulo Prado, acaba por mostrar a fraqueza da obra propriamente literária – em prosa – de Mário, anterior a 1930:
“O próprio Mário já acentuara que não concordava com a imoralidade, porém Macunaíma teria de concordar com o brasileiro. Aliás é corrente na literatura dos cronistas esse traço de luxúria nacional e que teve sistematização das mais brilhantes no Retrato do Brasil, de Paulo Prado. São muito comparáveis os dois livros e aquilo que é análise e dissertação no historiador, se transforma em ação no herói da nossa gente” (M. Cavalcanti Proença, op. cit., p. 22).
Ou seja, há um ranço da República Velha (no caso de Retrato do Brasil não é apenas um ranço) em ambos os livros, expresso na consideração da luxúria como um traço do brasileiro.
Há nisso um desconhecimento – também no sentido de falta de identificação – grande do Brasil e de sua formação, que o próprio Cavalcanti Proença revela em outro trecho de seu livro, ao falar do “espírito de aventura nacional contrapondo-se ao trabalho”, concepção do país que seria comum a Mário e a ilustres sociólogos brasileiros.
Trata-se de uma questão já resolvida pelos abolicionistas, que enxergaram no trabalho escravo – e no trabalho negro em geral – a base da construção do Brasil como Nação.
Entretanto, Macunaíma é, sobretudo, o índio, muito mais do que o negro. Mas é um índio falsificado, pois é, sobretudo, um “individualista”, “sem preocupações sociais”, que prefere qualquer coisa, menos o trabalho (M. Cavalcanti Proença, op. cit., p. 20).
Há pouco de comum entre essa suposta síntese do brasileiro e o brasileiro real, aquele que sustentava, com seu trabalho, a oligarquia cafeeira.
Mário de Andrade percebe o problema, mas apenas como uma sombra, que não chega a alterar o caráter (ou a falta de caráter) de seu herói. Mas, não por acaso, Proença sintetiza o Mário de “Macunaíma” do seguinte modo:
“No fundo Mário de Andrade era porque-me-ufanista, a seu modo. Um porque-me-ufanismo desiludido” (p. 38).
O ufanismo, como já nos referimos, é, exatamente, o “nacionalismo” falso da República Velha, isto é, do regime da oligarquia cafeeira.
Resta dizer que, a medida que Mário aproximou-se da Revolução de 30 – e a medida que a literatura e a arte pós-1930 tornaram o modernismo de 22 uma manifestação de menor importância na história do país – muitos desses problemas tornaram-se, para ele, conscientes.
Talvez por isso, sua contribuição à crítica musical seja tão mais importante, do ponto de vista da cultura nacional.
Mas ele era um homem bom e honesto.
Em 1942, a conferência que fez no auditório do Itamaraty, para a Casa do Estudante do Brasil, tem quase o mesmo texto que os artigos publicados, no mesmo ano, em “O Estado de S. Paulo”.
Mas não o final, que é diferente. Aquele da conferência do Itamaraty é uma autocrítica:
“Se tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea. E isso era o principal. Mas aqui meu pensamento se torna tão delicadamente confessional, que terminarei este discurso falando mais diretamente de mim. Que se reconheçam no que eu vou dizer os que puderem. (…) Minhas intenções me enganaram. Vítima do meu individualismo, procuro em vão nas minhas obras, e também nas de muitos companheiros, uma paixão mais temporânea, uma dor mais viril da vida. Não tem. Tem, mas é uma antiquada ausência de realidade em muitos de nós. Estou repisando o que já disse a um moço… E outra coisa senão o respeito que tenho pelo destino dos mais novos, se fazendo, não me levaria a esta confissão bastante cruel, de perceber em quase toda a minha obra a insuficiência do abstencionismo. Francos, dirigidos, muitos de nós demos às nossas obras uma caducidade de combate. Estava certo, em princípio. O engano é que nos pusemos combatendo lençóis superficiais de fantasmas. Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso de maior angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar nossa curiosidade na cultura. E, se agora percorro a minha obra já numerosa e que representa uma vida trabalhada, não me vejo uma só vez pega a máscara do tempo e esbofeteá-la como ela merece. Quando muito, lhe fiz de longe umas caretas. Mas isto, a mim, não me satisfaz.”
Na mesma conferência, no Itamaraty, ele considerou:
“Eu creio que os modernistas da Semana de Arte Moderna não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição. O homem atravessa uma fase integralmente política da humanidade. Nunca jamais ele foi tão ‘momentâneo’ como agora. Os abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois. E apesar da nossa atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não ajudamos verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do homem” (Mário de Andrade, O Movimento Modernista, ed. Casa do Estudante do Brasil, Rio, 1942, pp. 79-80).
Melhor síntese dos problemas do modernismo de 22, realizada por Mário, não poderia haver.
4
Vejamos, outra vez, o livro de Franklin de Oliveira.
O ensaísta considera Mário de Andrade “o único dos modernistas a deixar uma obra importante como Música de feitiçaria, Danças dramáticas do Brasil e o ensaio pioneiro sobre o Aleijadinho, sem falar no Macunaíma” (cf. Franklin de Oliveira, A Semana de Arte Moderna na Contramão da História e Outros Ensaios, Topbooks, 1993, pp. 32-33).
“Mário era um intelectual e um homem sério”, escreve Franklin de Oliveira, “ao contrário de seu ex-amigo Oswald de Andrade, que se declarou ‘palhaço da burguesia’. Mário era tão sério que, passados os anos, (…) confessou que eles, os da Semana, não eram exemplo para ninguém. Não teve medo de dizer a verdade” (cf. op. cit., p. 38).
Oliveira aponta uma estranha identidade entre os modernistas de São Paulo e o seu grande inimigo, Coelho Netto.
“… estavam praticando um coelho-nettismo às avessas”.
Mas, se isso é (muito) discutível, o que vem em seguida, do ponto de vista político, é (muito) menos:
“Os rapazes da Semana fizeram a sua bulha de 22 em nome do espírito revolucionário. Que aconteceu em 22?
“Poucos meses depois da Semana, nas areias de Copacabana, os Dezoito do Forte deflagraram, num extraordinário lance épico, o primeiro protesto – a ‘crítica das armas’, diria Marx – contra a República Oligárquica. Os modernistas estavam, em nome da coerência, obrigados a emprestar solidariedade a Siqueira Campos e seus heroicos companheiros. Não o fizeram. Preferiram o silêncio. Mas a solidariedade da cultura brasileira aos Dezoito do Forte não afundou no comodismo alienado dos rapazes da Semana. Ela veio pela voz de um escritor – de quem?
“De Coelho Netto que, rompendo o bloqueio que a censura impusera à imprensa, escreveu a bela página A aventura radiante, de apologia aos jovens tenentes de Copacabana. Escrita a página, o Jornal do Brasil, do qual o romancista maranhense era colaborador, não a pôde publicar. Coelho Netto não se conformou. Levou-a a Leônidas de Resende e Pedro Motta Lima, que dirigiam A Nação, jornal onde defendiam os ideais revolucionários que tiveram sua expressão espartana no primeiro 5 de Julho. E foi assim que, nas colunas de A Nação, apareceu o destemido texto de Coelho Netto.
“Não se diga que este é um episódio extraliterário. Não. Ele serve para deixar patente que a cultura brasileira é uma cultura feita à revelia. Só assim se explica que um autor de formação e índole conservadora faça a apologia de um gesto revolucionário, de um ato de rebeldia política. Como também explica porque um grupo de jovens escritores que se propunha fazer uma ‘revolução cultural’, colocasse a sua proposta sob o patrocínio de um partido político ultrarreacionário e se deixasse gratamente prostituir nos salões da plutocracia paulista.
“Tal o caso da Semana de 1922, nutrida à sombra do PRP e regada pelos magnatas do café. É significativo que tendo sido Coelho Netto o único escritor a assumir o elogio público dos Dezoito do Forte, Oswald de Andrade se esmerasse na composição de um poema saudando a ascensão de Júlio Prestes à presidência da República, numa farsa eleitoral que levou o país à Revolução de 1930” (cf. op. cit., pp. 60-61).
Já nos referimos ao reacionarismo de alguns próceres modernistas. Aqui, queremos apenas ressaltar alguns aspectos de classe em relação ao mais incensado dos modernistas paulistanos, Oswald de Andrade – exatamente aquele que constitui, supostamente (e, talvez, sozinho), a ala esquerda do modernismo.
“A grande tolice do meu amigo Oswald de Andrade é imaginar que descobriu o Brasil”, escreveu Carlos Drummond de Andrade a Mário de Andrade, em carta de 14 de dezembro de 1925. (Franklin de Oliveira, op. cit., p. 22).
Drummond era insuspeito em relação ao modernismo. Mas não pôde deixar de apontar – e para Mário de Andrade – o quanto considerava Oswald ignorante quanto ao Brasil.
O grande poeta também considerava Oswald um poeta algo tosco: “A poesia dele peca por pobreza de processos. É tecnicamente mal construída”. E mais adiante: “ Ainda tenho fé de vê-lo escrevendo como todos nós”. E acrescentou: “… sem os balbuciamentos do Pau Brasil” (op. cit., p. 23).
Oswald de Andrade não era apenas patrocinado pela oligarquia paulista. Ele próprio era um membro da oligarquia paulista, sob mais de um ângulo, um membro característico da oligarquia.
“Seu pai, ‘seu Andrade’, que lhe deu o mesmo nome de batismo, foi um dos membros da oligarquia paulista, grande proprietário de terras da cidade de São Paulo, que atuou também na vida política. (…) Em 1902, Oswald de Andrade entrou para o Colégio de São Bento onde conheceu o colega de classe Guilherme de Almeida, futuro poeta, que também fazia parte da elite paulistana. Seu pai, Estevam de Almeida, cuidaria tempos depois dos negócios do pai de Oswald de Andrade. Em 1909, Oswald ingressou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, a mesma que frequentara seu tio, Inglês de Sousa.
(…)
“O jovem Oswald passou a frequentar, ainda em 1909, uma roda de boêmios em que travaria contato com Indalécio de Aguiar, Francisco Rangel e Inácio Pinheiro, Ricardo Gonçalves e Monteiro Lobato. Oswald foi aos poucos entrando em contato com o meio intelectual e artístico; nesse mesmo ano iniciou sua carreira de jornalista no Diário Popular com o pseudônimo de Joswald e, ainda em 1909, conheceu Washington Luís, assíduo frequentador dos salões da Villa Kyrial – também frequentados por Oswald.
“Como jornalista, fez várias viagens ao Rio, onde frequentou a mesma roda que João do Rio, Olegário Mariano, Olavo Bilac e Elói Pontes.
(…)
“Também em 1911, às custas do pai, Oswald fez sua primeira viagem à Europa. Lá o jovem não demonstrou interesse por questões sociais do continente, que naquele momento de pré-guerra passava por uma grande crise, tão pouco tomou contato com o Manifesto Comunista de Karl Marx e com as manifestações políticas que organizavam a Revolução Russa de 1917. Mas voltou sua atenção exclusivamente para as manifestações literárias, em extrema efervescência, e para a vida boêmia.
(…)
“Graças à fortuna de seu pai, Oswald teve uma vida de extremo requinte, sem precisar trabalhar para o próprio sustento. Em virtude de sua posição social, frequentou a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, teve acesso às rodas da alta burguesia e também ao meio intelectual.
“Como seu grande interesse era a literatura, o jovem teve garantido, graças a sua posição social, seu espaço no campo literário. Ao longo dos anos de 1910 e durante a primeira metade da década de 1920, período que corresponderia à primeira fase da formação do Modernismo brasileiro, publicou as peças Mon coeur balance e Leur âme, ambas em co-autoria com Guilherme de Almeida (1916), Os condenados (1922), Memórias Sentimentais de João Miramar (1924).
“Nesse período, colaborou vivamente na imprensa: fundou O Pirralho, foi redator do Diário Popular, do Jornal do Commercio, edição de São Paulo, e de O Jornal, do Rio de Janeiro, foi correspondente do Correio da Manhã, publicou trechos de Memórias Sentimentais de João Miramar na revista A Cigarra, foi colaborador de A Gazeta, foi editor da revista Papel e Tinta, escreveu para o Correio Paulistano, além de colaborar nas revistas modernistas.
“Em 1917, aos 27 anos, criou seu próprio ponto de encontro para intelectuais, quando montou uma garçonnière em um apartamento alugado à rua Líbero Badaró, região central da cidade, ‘onde reúne os amigos Guilherme de Almeida, Leo Vaz, Ignácio da Costa Ferreira, Monteiro Lobato, Pedro Rodrigues de Almeida, Menotti del Picchia, Edmundo Amaral, Sarti Pedro e Vicente Rao’. Nesse mesmo ano, Oswald conheceu Mário de Andrade e o pintor Di Cavalcanti; agregando-os ao pequeno grupo que formava com Guilherme de Almeida e Ribeiro Couto, começaram a projetar uma possível renovação no campo literário brasileiro.
“Oswald de Andrade, ao longo dos anos de 1920, continuou mantendo esse estilo de vida – entre intensa produção literária e extremo requinte – tão praticado pela alta burguesia. Em 1922, passou a se relacionar com Tarsila do Amaral, também proveniente de família da oligarquia; separam-se em 1929.
“Oswald de Andrade representava o grau máximo da sofisticação na perspectiva da alta burguesia paulistana, tanto pelos seus bens materiais quanto simbólicos. Como se pôde verificar, no início do Modernismo, Oswald não manifestou interesse por questões políticas e sociais, dedicou-se à literatura e às artes, o que aumentava seu refinamento aos olhos da elite. Era essa a imagem que a oligarquia, no final dos anos de 1910 e início da década de 1920, queria ter atrelada a ela. Nesse sentido, em virtude de sua condição social, Oswald de Andrade possuía livre circulação entre as rodas da alta sociedade paulistana, com destaque aos Prado e Guedes Penteado; frequentava, também, os salões da Villa Kyrial e era amigo de Washington Luís. Somada a seu status estava a disposição de revitalizar a produção literária e artística, estilizando as tendências artísticas e sociais europeias. Desse modo, teve as condições essenciais para o Modernismo dar seus primeiros passos. Sua livre circulação tanto no meio intelectual quanto nas rodas da oligarquia paulista contribuiu fundamentalmente para que os ‘futuristas’ pudessem conquistar espaço para publicação de seus textos e divulgação das novas ideias. Nessa perspectiva, Oswald de Andrade tornou-se uma das peças-chave do que foi denominado aqui de ‘primeira fase da formação do Modernismo brasileiro’” (cf. Marcia Regina Jaschke Machado, O Modernismo dá as cartas: circulação de manuscritos e produção de consensos na correspondência de intelectuais nos anos de 1920, FFLCH-USP, 2012, pp. 214-217).
Oswald colocou como título de suas memórias, Um homem sem profissão: sob as ordens de mamãe.
Mais justo seria Um homem que nunca trabalhou ou Um homem que nunca precisou trabalhar.
Como tal, ele conhecia muito pouco da vida.
Uma consideração de Franklin de Oliveira é, aqui, pertinente: “A consideração do trabalho como coisa infamante traz embutida o elogio da preguiça – a virtude máxima que une o Manifesto [Antropófago] ao Macunaíma” (op. cit., p. 27).
Os dois, aliás, são do mesmo ano – 1928, portanto, dois anos antes de 1930 -, assim como Retrato do Brasil, de Paulo Prado.
Embora, Mário de Andrade trabalhava para viver – era professor do Conservatório de Música, substituindo o pai, que também lá fora professor.
5
Até aqui nos ativemos aos elementos históricos e sociais do modernismo paulista. Entretanto, o Brasil não é somente São Paulo. Por isso, é forçoso consultar os autores – e os maiores autores – de outras regiões.
Em seu livro Gordos e Magros (1942), José Lins do Rego faz um comentário sobre a época em que Gilberto Freyre retornou ao Brasil (1923), depois de seus estudos no exterior:
“Havia nessa época o movimento modernista de São Paulo. Gilberto criticava a campanha como se fosse de uma outra geração. O rumor da Semana da Arte Moderna lhe parecia muito de movimento de comédia, sem importância real. O Brasil não precisava do dinamismo de Graça Aranha, e nem da gritaria dos rapazes do Sul; o Brasil precisava era de se olhar, de se apalpar, de ir às suas fontes de vida, às profundidades de sua consciência. A literatura brasileira carecia de homens como foram Machado de Assis, Nabuco, Pompeia, de homens que soubessem tirar de dentro de si o que havia mesmo de original, de expressivo. Havia terra, havia gente, havia todo um Brasil característico, no Nordeste, no Rio Grande do Sul, em São Paulo, em Minas Gerais. E por que arrancar raízes que estavam tão bem pregadas à terra e desprezar os nossos sentimentos e valores nativos?” (reproduzido em José Lins do Rego, O Cravo de Mozart é Eterno, org. Lêdo Ivo, ed. José Olympio, 2004, p. 52).
No mesmo livro, José Lins do Rego contesta a ideia de um modernista paulista (trata-se de uma rima, não de uma solução), Sérgio Milliet, de que toda a literatura brasileira, inclusive o romance dos autores nordestinos, derivava da Semana de Arte Moderna.
O artigo de José Lins do Rego (intitulado “Espécie de história literária”) é muito interessante por abordar uma interpretação que hoje, em algumas universidades, se tornou um dogma. Por isso, reproduziremos mais extensamente alguns trechos:
“Para ele [Sérgio Milliet], tudo o que há nas letras do Brasil de hoje procede de uma chamada ‘Semana da Arte Moderna’, que meia dúzia de rapazes inteligentes e lidos em francês realizou em São Paulo, com todos os tiques e toda a mise-en-scène com que Marinetti se exibira em palcos italianos, há 15 anos atrás.
“Para nós, do Recife, essa Semana da Arte Moderna não existiu, simplesmente porque, chegando da Europa, Gilberto Freyre nos advertira da fraqueza e do postiço do movimento. Eu mesmo, num jornal político que dirigia com Osório Borba, me pus no lado oposto, não para ficar com Coelho Netto e Laudelino Freire, mas para verificar na agitação modernista uma velharia, um desfrute que o gênio de Oswald de Andrade inventara para divertir os seus ócios de milionário.
“Graça Aranha viera da Europa, atrás de discípulos entusiastas, de uma plateia mais vibrante, de uma claque mais decidida.
“A Semana da Arte Moderna de São Paulo foi olhada e comentada por nós do Recife mais ou menos assim.
“Vem agora o sr. Sérgio Milliet e reivindica para a tal Semana tudo que em literatura se tem feito no Brasil, de 1922 para cá. O crítico se esquece que desde 1923 Gilberto Freyre começou a existir, e que desde esse tempo o eixo literário — Recife — apareceu independente do Rio e São Paulo e até um tanto hostil.
“É preciso que se saiba que o grande poema modernista de Manuel Bandeira, que deu nascença a tantos outros do gênero, o grande poema da evocação da cidade natal, foi escrito para um jornal do Recife, a pedido e por sugestão do autor de Casa-grande & senzala.
“Gilberto Freyre insinuara ao grande poeta que havia o Recife, o velho Recife, da saudade de Manuel Bandeira. Isso em 1924.
“O movimento literário que se irradia do Nordeste muito pouco teria que ver com o Modernismo do Sul. Nem mesmo em relação à língua. A língua de Mário de Andrade em Macunaíma nos pareceu tão arrevesada quanto a dos sonetos de Alberto de Oliveira. A língua que Mário de Andrade quis introduzir com o seu livro é uma língua de fabricação; mais um arranjo de filólogo erudito do que um instrumento de comunicação oral ou escrito. O livro de Mário de Andrade só foi bem entendido por estetas, por eruditos, e o seu herói é tão pouco humano e tão artificial quanto o boníssimo Peri, de Alencar. A diferença é que, em vez de Chateaubriand, Mário de Andrade procurou a erudição alemã para fabricar o seu herói sem nenhum caráter. Macunaíma é um Peri que se serviu da ruindade natural, em vez da bondade natural. Este livro de Mário de Andrade é um repositório do folclore, o livro mais cerebral que já se escreveu entre nós. Se não fosse o autor um grande poeta, seria o Macunaíma uma coisa morta, folha seca, mais um fichário de erudição folclórica do que um romance.
“No entanto, para o sr. Sergio Milliet, todo o romance que vem do Norte está fadado a morrer, porque lhe falta horizonte, que é um produto da terra, porque exprime uma realidade infeliz. O grande romance seria o Macunaíma, por onde sopra uma humanidade com fôlego para ir além das fronteiras.
“O grande erro do sr. Sérgio Milliet está na sua ignorância da história da arte e da literatura. O que o sr. Milliet repele na literatura que ele chama de nordestina para humilhá-la, para dar-lhe limites estreitos, é o que há de grande em toda literatura. É o vigor, é a saúde que vem da terra, das entranhas da terra, da alma do povo. É o que salvou as letras francesas, quando a Renascença não teve forças para brunir a obra de um Rabelais. É o que Tolstói trouxe do Cáucaso, e Dostoiévski do imenso cotidiano das prisões da Sibéria.
“Criticar o romance porque ele exprime a desgraça de uma região, de uma porção de humanidade, é querer conduzir a criação para o puro artifício gramatical. Deram o Prêmio Nobel de Literatura a Knut Hamsun porque o povo das aldeias e dos campos escandinavos através do seu lirismo abriu as suas esperanças e as suas desgraças ao mundo. Ninguém mais local do que ele, mais restrito à sua terra, ao detalhe e ao humano do seu país.
“Para o sr. Milliet a humanidade de um Hamsun deveria morrer pelos gelos, ou comida pelos lobos. Um nordestino que morre de fome na seca, ou afogado numa enchente, não tem força para ser ‘um herói universal’ da classificação do sr. Milliet. Para este crítico, ou o romance brasileiro entra a falar em esperanto para ser entendido por todos, ou ficará eternamente sepulto no esquecimento, pobre enjeitado que só sabe chorar e sofrer as dores do seu povo. É o sr. Milliet quem diz mesmo: ‘Será um romance simples demais nos seus enredos, monotonamente igual’.
“Se o sr. Milliet conhecesse a história da arte, veria o que é a catedral gótica de regional, de chão, do povo, em relação ao que no tempo da Renascença era tido como universal e eterno. Mas, para que entrarmos em detalhes? O sr. Milliet quer heróis requintados, sujeitos com prosa de deck de transatlânticos, romance que não seja da terra e do povo do Brasil. Muito fácil seria para o crítico enriquecer as nossas letras com o romance desse gênero. Está aí em São Paulo o sr. René Thiollier, ótimo para um herói dessa finura…” (op. cit., pp. 42-45).
René Thiollier, colunista social da elite oligárquica paulista, foi, sob as ordens de Paulo Prado, um dos organizadores e incensadores da Semana de 22.
Como o próprio Oswald de Andrade lembraria depois, ele chamara aos autores nordestinos (José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Amando Fontes, Graciliano Ramos, etc.), “búfalos com os cornos enfiados na questão social”.
6
Em 1948, entrevistado para a Revista do Globo por Homero Senna, o maior escritor brasileiro da época, e um dos maiores da nossa história literária, Graciliano Ramos, afirmou que acompanhara, de Alagoas, o “movimento modernista” que se desenvolvia em São Paulo.
“E que impressão lhe ficou do Modernismo?”, perguntou Senna.
“Muito ruim. Sempre achei aquilo uma tapeação desonesta. Salvo raríssimas exceções, os modernistas brasileiros eram uns cabotinos. Enquanto outros procuravam estudar alguma coisa, ver, sentir, eles importavam Marinetti”, respondeu Graciliano.
“Não exclui ninguém dessa condenação?”
“Já disse: ‘salvo raríssimas exceções’. Está visto que excluo Bandeira, por exemplo, que aliás não é propriamente modernista. Fez sonetos, foi parnasiano. E o ‘Solau do Desamado’ é como as ‘Sextilhas de Frei Antão’. Por dever de ofício, pois estou organizando uma antologia de contos brasileiros, antologia que rola há mais de três anos, tive de reler toda a obra de um dos próceres do Modernismo. Achei dois contos de cinco ou seis páginas cada um. E pergunto: isso justifica uma glória literária?”
Graciliano, em seguida, torna mais preciso o seu julgamento:
“Os modernistas brasileiros, confundindo o ambiente literário do país com a Academia, traçaram linhas divisórias rígidas (mas arbitrárias) entre o bom e o mau. E, querendo destruir tudo que ficara para trás, condenaram, por ignorância ou safadeza, muita coisa que merecia ser salva. Vendo em Coelho Netto a encarnação da literatura brasileira — o que era um erro — fingiram esquecer tudo quanto havia antes, e nessa condenação maciça cometeram injustiças tremendas. Nas leituras que tenho feito, para a organização da antologia a que me referi, encontrei vários contos, de autores propositadamente esquecidos pelos modernistas e que seriam grandes em qualquer literatura. Lembro-me de alguns: ‘O Ratinho Tique-Taque’, de Medeiros e Albuquerque; ‘Tílburi de Praça’, de Raul Pompeia; ‘Só’, de Domício da Gama; ‘Coração de Velho’, de Mário de Alencar; ‘Os Brincos de Sara’, de Alberto de Oliveira. Nas antologias que andam por aí essas produções geralmente não aparecem, e de alguns dos autores citados são transcritos contos que não dão ideia exata do seu talento e do domínio que tinham do gênero. Só posso atribuir isso, como jádisse, à desonestidade. Porque, se os compararmos aos produtos dos líderes modernistas, estes se achatam completamente”.
“Quer dizer que não se considera modernista?”
“Que ideia! Enquanto os rapazes de 22 promoviam seu movimentozinho, achava-me em Palmeira dos Índios, em pleno sertão alagoano, vendendo chita no balcão” (cf. Homero Senna, República das Letras: entrevistas com 20 grandes escritores brasileiros, 3ª ed., Civilização Brasileira, 1996, pp. 201-202).
Graciliano manteve uma posição firme sobre o modernismo de 1922 – isto é, sobre o modernismo paulista – o que é valioso para o nosso julgamento atual, pois, ao mesmo tempo, o grande escritor demonstrou respeito e consideração pessoal tanto por Oswald quanto por Mário de Andrade, a quem elogiou como crítico.
Entretanto, em 1952, escreveria, no artigo “Uma palestra”:
“No Brasil, nesse infeliz meio século que se foi, indivíduos sagazes, de escrúpulos medianos, resolveram subir rápido criando uma língua nova do pé para a mão, uma espécie de esperanto, com pronomes e infinitos em greve, oposicionistas em demasia, e preposições no fim dos períodos. Revolta, cisma, e devotos desse credo tupinambá logo anunciaram nos jornais uma frescura que se chamava ‘Gramatiquinha da fala brasileira.’
“Essa gramatiquinha não foi publicada, é claro: não existe língua brasileira. Existirá, com certeza, mas por enquanto ainda percebemos a prosa velha dos cronistas. De fato, na lavoura, na fábrica, na repartição, no quartel, podemos contentar-nos com a nossa gíria familiar. Seria absurdo, entretanto, buscarmos fazer com ela um romance. Às vezes a expressão vagabunda consegue estender-se, dominar os vizinhos, alargar-se no tempo e no espaço” (Graciliano Ramos, Linhas Tortas, 13ª ed., Record, 1986, pp. 275-276).
E, mais adiante, no mesmo artigo:
“O que não existe, ao sul, ao norte, a leste, a oeste, são as novidades que pretenderam enxertar na literatura, com abundância de cacofonias, tapeações badaladas por moços dispostos a encoivarar duas dúzias de poemas em vinte e quatro horas e manufaturar romances com o vocabulário de um vendeiro.
“Ninguém por estas bandas, que me conste, usou na linguagem falada preposições em fim de período. Essa construção inglesa não nos dará nenhum Swift. Porque em francês se diz jouer avec, o literato nacional descobre a pólvora escrevendo: ‘Temos aqui uma coisinha para a gente brincar com.’ Tencionarão justificar isso lembrando a sintaxe dos índios, mas a verdade é que não falamos nheengatu, e a composição insensata, alegremente recebida por garotos propensos a conquistar a glória num mês, é falsa” (idem, p. 277).
Isso foi em 1952, portanto, um ano antes de sua morte. Porém, já em 1926, Graciliano, um homem (ao contrário da lenda) de bom humor, escrevia, de Palmeira dos Índios, em Alagoas, ao amigo J. Pinto da Mota Lima Filho, que estava no Sudeste do país:
“Li hoje uma poesia que tem este começo:
‘Neste rio tem uma iara…
‘De primeiro o velho que tinha visto a iara
‘Contava que ela era feiosa, muito!’
“Isto é bom, com certeza, porque há quem ache bom. Naturalmente os meus netos aí descobrirão belezas que eu não percebo. Questão de hábito. (…) Acreditas que no Brasil possa aparecer alguma coisa nova? Em vista da amostra, eu dispensava o resto.
“Afinal, quando o sujeito não tem inteligência para compreender essas inovações, o mais prudente será, talvez, seguir o velho preceito do alcorão de Lilliput: ‘Cada qual quebrará os seus ovos pela parte que achar mais cômoda.’ Como toda a gente até hoje tem quebrado os ovos pelo lado grosso, não sei que vantagem há em experimentar quebrá-los pelo lado fino.
“Outra coisa: vê se me arranjas aí uma gramática e um dicionário de língua paulista, que não entendo, infelizmente. E manda-me dizer se é absolutamente indispensável escrever sem vírgulas. Faço-te esta consulta porque em Palmeira, compreendes, não encontro quem me possa orientar” (Graciliano Ramos, Cartas, 6ª ed., Record, 1986, pp. 83-84).
7
A questão que aparece, diante desses depoimentos é: se a Semana de Arte Moderna de 22 não tivesse acontecido, a literatura – e, de resto, a arte – seria diferente?
Não se trata de dizer que em outros países (França, Inglaterra, Estados Unidos, a América Latina, etc.), não houve necessidade de semana de arte moderna alguma para que houvesse renovação na literatura e nas artes.
Tal constatação seria incapaz de provar alguma coisa, pois é evidente que somente serviria para subestimar a real ou suposta originalidade de nosso processo histórico. Por que o processo, no Brasil, teria que ser igual ao de outros países?
Portanto, a questão com que iniciamos esta parte deste artigo tem outro sentido. Equivale a perguntar: em que o modernismo paulista, além de si próprio, definiu a literatura – e o conjunto da arte – brasileira posterior?
Mário de Andrade, em um dos artigos publicados em 1942 no “Estado de S. Paulo”, bordejou a questão, respondendo a Ascendino Leite (“Creio que foi um crítico paraibano, Ascendino Leite, quem falou uma vez que tudo quanto fez o movimento far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Não conheço lapalisada mais graciosa. Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o Movimento Modernista, seria pura e simplesmente… o movimento modernista”).
Não é uma resposta, pois seu conteúdo consiste em afirmar que tudo o que veio após o modernismo paulista é modernismo – e seria, mesmo se o modernismo paulista não tivesse existido.
Mas isso é, exatamente, o que não está provado, nem a realidade permite declarar. Mesmo Josué Montello, que, para rotular com o mesmo nome dois fenômenos diferentes, divide o modernismo em dois (um sulista, o outro nortista – e um de características opostas ao outro), não assinaria embaixo da afirmativa de Mário.
Se, do ponto de vista estritamente literário ou artístico, é impossível considerar a Semana de Arte Moderna de 1922 como a origem da renovação na literatura nacional brasileira, resta indagar do seu significado em termos sociais e políticos mais gerais.
Carlos Berriel, em seu livro sobre a obra do patrocinador da Semana, faz uma observação muito importante:
“… enquanto a arte moderna na Europa, principalmente na França, teve que abrir seus espaços à margem dos salões oficiais – pensemos na batalha do Impressionismo -, no Brasil esta mesma arte ingressa pela via oficial e conduzida pela mão do poder. Essa inversão de situações faz pensar: revela, antes de mais nada, um esforço de modernização de um poder já assentado, mas que quer mais do que isto. Já não basta, para o café, a hegemonia num país subordinado, de extração colonial: trata-se agora de realizar uma emancipação ampla que deve necessariamente passar pelo vestíbulo da emancipação expressional. Nesse sentido, a arte moderna, pelo seu caráter renovador, teria algo a sugerir, pela sua vocação insurrecional, às mentalidades nacionais satisfeitas com os mestres do passado – na expressão de Mário de Andrade. A arte moderna servia, e muito, para separar São Paulo do resto do Brasil e, ao separar, estabelecer uma hierarquia” (Carlos Berriel, Tietê, Tejo, Sena: a obra de Paulo Prado, ed. Unicamp, 2013, p. 95, grifos nossos).
E, logo em seguida:
“Eram eles [a oligarquia cafeeira] os fundadores da pátria, e os responsáveis pela existência da nação. Basta de indianismo romântico! Matemos Peri! O Brasil é obra dos bandeirantes. Proclame-se o novo mito. (…) A elite paulista vê a cultura como meio de efetivação de sua hegemonia, no sentido mais amplo” (Berriel, op. cit., p. 102 e p. 104).
Haveria duas colonizações no Brasil: uma realizada em São Paulo pelos bandeirantes; outra, no resto do país. Os elementos racistas e separatistas que estão implícitos em tal concepção, ficariam claros tanto na obra de Paulo Prado quanto de outros próceres da oligarquia (v., p. ex., Júlio de Mesquita Filho, Ensaios Sul-Americanos), para não falar da propaganda durante a contrarrevolução de 1932.
Assim, a “arte moderna” serviria para distinguir a oligarquia cafeeira – e seu território-sede, São Paulo – do país no qual já tinha hegemonia econômica e política, mas não cultural.
O peculiar dessa tentativa é que ela se deu, se tomarmos a Semana como marco, apenas oito anos e pouco antes da derrocada política da própria oligarquia paulista.
Essa oligarquia, portanto, vivia seus últimos momentos de hegemonia política, quando pretendeu estabelecer sua hegemonia cultural sobre o país.
Pretende-se, muitas vezes, que essa Semana – e, de resto, o modernismo paulista – teve um caráter nacionalista. Certamente houve pelo menos uma expressão nacionalista na Semana – a música de Villa-Lobos. Mas isso não é verdade em relação ao conjunto da Semana nem do modernismo paulista.
O próprio Mário de Andrade desmentiu essa atribuição, ao declarar-se “tropicalista” e não “nacionalista. Entretanto, até hoje se insiste no suposto nacionalismo da Semana de Arte Moderna de 1922, apesar da influência evidente de Marinetti e demais futuristas italianos.
Não se trata de má-fé, mas de algo bem identificado por um filósofo posterior:
“O sentido do interesse nacional, a consciência aristocrática ou idealizante acredita que o traz em si mesma. O desprezo pelo vulgo, pelo sentimento popular, considerado como terreno inculto, grosseiro, improdutivo, é justificado a seus olhos por ser a única portadora do sentido autêntico. Este, por definição, não está na mente da maioria do povo, obrigado a viver colado à realidade objetiva, preso às coisas materiais, por motivo do trabalho que executa para sobreviver, não dispondo por isso do lazer que lhe abriria as portas da subjetividade. O sentido nacional da consciência popular é, diz, a forma primária, obtusa, tosca, do que será nas elites o sentido autêntico, esclarecido, culto, e por isso o único apto a converter-se em ideia eficaz na prática. Para alcançá-lo, segundo crê, é preciso cultivar o espírito, informar-se do mundo de ideias e valores que a civilização produziu, e pensar a nossa particular realidade à luz de princípios ideais, que nos são transmitidos pelas especulações dos filósofos e dos sábios das regiões desenvolvidas” (Álvaro Vieira Pinto, Consciência e Realidade Nacional, 2º vol., ISEB/MEC, 1960, pp. 334-335).
De onde se conclui que Mário de Andrade estava inteiramente certo, tanto quanto ao aristocratismo da Semana (aliás, não havia nada mais aristocrático, no Brasil da época do que Paulo Prado e seu clã), quando à negação de seu próprio caráter nacionalista.
8
As seis primeiras partes deste texto já estavam escritas – embora não em sua forma final – quando o relançamento do livro de Carlos Berriel, citado acima, nos chamou atenção sobre ele e forçou-nos (é bem o termo) a estudar alguns materiais a que não pretendíamos estender nossa pesquisa.
Existe, bem entendido, uma influência positiva do modernismo, tal como compreendido pela Semana de Arte Moderna de 1922.
Mário de Andrade, além de crítico musical e literário notável, foi (e é) um dos poetas da língua que são indispensáveis aos seres humanos que queiram conhecer a nossa cultura nacional.
Além disso, sua influência – e, através dele, do modernismo paulista – sobre Drummond, Bandeira e outros escritores deve ser considerada, na formação de nossa literatura do século XX, como imperecível.
Mas essas são questões sobre as quais o consenso é amplo – e até, como diria Graciliano, se exagera.
Preferimos, neste artigo, nos concentrarmos nos aspectos que foram obscurecidos pela apologia à Semana, apologia que deforma e falsifica a realidade, abafando o espírito crítico das pessoas.
Isso nos levou a não economizar nas citações, pois há uma série de fatos que são apagados – e permanecem borrados – da memória geral, pela desmedida apologia a que nos referimos.
Há um último aspecto, referente às dificuldades gerais do Brasil daquela época, que começou a ser enfrentado no mesmo ano da Semana, com a revolta tenentista e a fundação do Partido Comunista:
“Quando a contradição dominante é a que se dá entre dois polos, sendo um a nossa realidade nacional, como um todo, e o outro a nação hegemônica, situada fora, no estrangeiro, o País ou nem sequer é capaz de pensar que existem contradições, ou, quando as admite, tende a considerar principal uma das que lhe são interiores. Este último caso produz-se em virtude de ser difícil à consciência incipiente abranger com o olhar a conjuntura histórica mundial e se ver como figurante de uma oposição na qual o outro polo está situado ao longe” (Álvaro Veira Pinto, Consciência e Realidade Nacional, 2º volume, ISEB/MEC, Rio, 1960, pág. 80).
A Semana – ao contrário da revolta tenentista e da fundação do Partido Comunista – estava, ainda, dentro desse horizonte a que se refere o filósofo.