Os crimes do cartel do bilhão contra o Brasil (19)
(HP 09/10/2015)
CARLOS LOPES
Na instalação do gasoduto entre os campos de Lula e Cernambi, uma subsidiária da empresa italiana ENI, a Saipem, representada por um certo João Bernardi Filho, conseguiu ganhar uma tortuosa concorrência – se for possível chamar o que houve de “concorrência” – através de uma propina ao sr. Renato Duque, então diretor de Serviços da Petrobrás e parceiro de João Vaccari, tesoureiro do PT.
Bernardi Filho, ex-diretor da Odebrecht, é dono da Hayley, registrada no Uruguai, sem sede conhecida naquele país, mas com uma conta na Suíça e uma “subsidiária” no Rio de Janeiro, a Hayley do Brasil, proprietária das salas 3.418 e 3.419, na rua da Assembleia nº 10. Nessas salas, funcionava uma outra empresa, a D3TM Consultoria e Participações, de propriedade, vejam só a coincidência, do sr. Renato Duque – posteriormente, a D3TM compraria as salas por R$ 770.000,00 (setecentos e setenta mil reais).
O mesmo Bernardi Filho é dono de outra empresa, a Oil & Gás Service, em sociedade com Alexandre Santos de Oliveira – que, por outra coincidência, é genro de Irani Carlos Varella, antecessor de Duque na diretoria de Serviços da Petrobrás, ex-diretor da Petrobras Uruguai, e, depois, assessor especial da senhora Foster, quando presidenta da Petrobrás.
Aqui, vejamos o que foi provado:
“A partir dos depoimentos de Júlio Camargo, tomou-se conhecimento que uma das empresas responsáveis para intermediar o pagamento de propina no exterior em favor de Renato de Souza Duque era a empresa offshore Hayley S/A (…).
“… João Bernardi atuou lavando dinheiro proveniente de crimes de corrupção em favor de Renato de Souza Duque, mediante a utilização das contas das empresas Hayley S/A e Hayley do Brasil para o recebimento e posterior internalização dos valores. A Hayley do Brasil ocultava e dissimulava o pagamento de vantagem indevida a Renato de Souza Duque por intermédio da aquisição e posterior destinação de obras de arte ao ex-diretor.
“… João Bernardi ofereceu vantagem indevida a Renato Duque para favorecer a Saipem S/A na celebração do contrato da obra de instalação do gasoduto submarino de interligação dos campos de Lula e Cernambi” (cf. AP nº 5014721-44.2015.404.7000).
Vamos poupar aos leitores os detalhes da “licitação” – na qual a Saipem foi “concorrente” única, pois as outras empresas desistiram (cf. Anexo 15 da AP citada).
Então, continuemos nosso resumo:
“No dia 05/10/2011, às 11:30 horas, no Largo da Carioca, Centro do Rio de Janeiro/RJ, João Bernardi se dirigia à sede da Petrobrás para entregar R$ 100.000,00 de vantagem indevida prometida a Renato de Souza Duque, quando foi assaltado a cerca de 270 metros da Petrobrás na posse dos valores em espécie.”
Bernardi Filho foi assaltado na frente do prédio onde se localiza o BNDES, na Avenida Chile, onde também está o prédio-sede da Petrobrás.
“… João Bernardi afirmou à Polícia que tinha acabado de sacar tal quantia do Banco Citibank (…). O trajeto percorrido por João Bernardi deixa claro que ele se dirigia à sede da Petrobrás para entregar a vantagem prometida a Renato de Souza Duque”.
Em suma, Bernardi sacou o dinheiro na agência do Citibank na rua da Assembleia e foi a pé até à Avenida Chile. Um caminho interessante, que muitos cariocas já percorreram. Mas não com R$ 100 mil no bolso – ou na mala.
O mais interessante é que o assalto parece ter tocado o alarme na Saipem, até então agindo com uma tranquilidade espantosa nas aposições de margens de preço que fez nas negociações com a diretoria de Serviços da Petrobrás – sem que esta fizesse o que lhe competia: desclassificar a empresa italiana.
No dia seguinte ao assalto, nada menos que sete representantes da Saipem entraram no prédio da Petrobrás entre 9:10 h e 9:30 h da manhã (cf. AP cit.).
No mesmo dia, à tarde, “João Bernardi, junto com Roberto Noce, identificado como visitante da Saipem, também visitam a estatal” (idem).
Também no mesmo dia, as negociações com a Saipem foram fechadas.
O contrato foi assinado por R$ 248.970.036,92, o que significa 26% acima da segunda estimativa da Petrobrás (a mágica de Duque foi variar os itens do contrato, cada vez que a Saipem apresentava uma proposta acima da estimativa da Petrobrás, e, por fim, adaptar a estimativa à proposta da Saipem; os +26% a que aludimos tem o objetivo de tornar nítido, para o leitor, o que significavam essas negociações – mas não ignoramos que as propostas, quanto ao que a Saipem deveria fornecer, não eram idênticas).
DESTINO
Quando se pretende apresentar o roubo, o favorecimento a um cartel – e a propina – como uma atividade “de esquerda”, é inevitável que a patifaria se torne, ao mesmo tempo, ridícula. Mas nem por isso é menos patifaria.
Permitam os leitores, no final desta série, algumas considerações de ordem geral.
Não é uma novidade que monopólios privados são achacadores por sua própria natureza econômica – em suma, são antissociais.
Nem é preciso lembrar – mas, afinal, essa lembrança é bem a propósito – o “caso Lockheed”, onde até o marido da rainha da Holanda foi subornado – além do ministro da Defesa da Alemanha Ocidental, do primeiro-ministro, do presidente e de dois ministros da Itália, e do primeiro-ministro do Japão – para vender, por preço estúpido, um caça norte-americano, uma das versões do Starfighter F-104, especialmente ineficiente: na Alemanha Ocidental, caíram 292 deles, com perda total, inclusive a morte de 115 pilotos alemães, sem que aparecesse nenhum MiG soviético ou alemão oriental pela frente ou fosse travado qualquer combate; na Itália, caíram 137 Starfighter; na Bélgica, 42 desses caças da Lockheed foram ao chão, sem que se possa dizer que alemães, italianos ou belgas sejam mais incompetentes que os americanos no manejo de um avião. A solução desses países da Otan foi, também, interessante: revenderam esses caças, comprados devido ao suborno, para Taiwan e outros lugares mais desafortunados.
Os sobrepreços e o superfaturamento, assim como o suborno de agentes públicos, é a regra nos cartéis, exatamente porque o objetivo de um cartel é o monopólio privado, para que as empresas integrantes obtenham superlucros através de sobrepreços, com o esmagamento de outras empresas, que não pertencem à confraria. Mas esse esmagamento de outras empresas não se dá porque as empresas monopolistas, as empresas cartelizadas, sejam mais eficientes que as outras, ou seus produtos sejam melhores, e, sim, porque têm maior poder financeiro e influência política.
No entanto, não é uma fatalidade que monopólios e cartéis dominem o país e corrompam os funcionários, o governo e os partidos governistas.
Tanto isso é verdade que nos EUA, a terra dos monopólios privados e cartéis, Franklin Delano Roosevelt e outros governantes conseguiram, ao menos, limitá-los. Se mais não foi feito nesse terreno, deve-se às sentenças a favor de monopólios e cartéis, emitidas pela Corte Suprema ou sob a égide desta.
Somente para exemplo: em 1938, o governo Roosevelt quis dissolver a Alcoa, um caso óbvio de monopólio, pois dominava 100% do mercado de alumínio nos EUA. Não conseguiu, devido a várias sentenças judiciais. Hoje, a Alcoa é uma das principais integrantes do cartel armamentista daquele país.
Apesar disso, antes da II Guerra Mundial, o governo Roosevelt conseguiu estabelecer várias barreiras à espoliação dos cartéis; a principal, que permaneceu até o governo Clinton, 60 anos depois, foi uma barreira ao principal dos cartéis do país, o cartel dos bancos, o que não foi pouca coisa (como declarou, já em 1911, o então governador de Nova Jersey, Woodrow Wilson, depois presidente dos EUA, “o grande monopólio neste país é o monopólio do dinheiro” – cf. The New York Times, Friday, June 16, 1911, page 3).
Aliás, até 1979 as ações do governo dos EUA contra cartéis e monopólios eram mais de 400 ao ano, sem contar ações de governos estaduais. É pouco, considerando a camisa de força monopolista que constrange a economia norte-americana desde o fim do século XIX. Mas, esses processos decresceram a partir de 1980, quando Reagan entrou na Casa Branca, e, principalmente, depois que Clinton, logo no início de seu primeiro mandato, substituiu a legislação anti-cartel dos EUA por uma lei de leniência para empresas integrantes de cartéis – nos últimos 10 anos, a média de processos baixou para 150 ao ano (cf. U.S. Department of Justice, Antitrust Division, Workload Statistics, 1970-2014).
Com uma importante diferença: a partir do governo Clinton, os órgãos de fiscalização norte-americanos retiraram o foco dos cartéis e monopólios internos e se tornaram barreiras de proteção dos monopólios norte-americanos contra empresas – e, inclusive, monopólios – de fora dos EUA. As principais multas por formação de cartel, desde 1993, foram aplicadas à Hoffmann-La Roche, da Suíça, à BASF, da Alemanha – ambas envolvidas no “cartel das vitaminas” (formado por elas e mais a Rhône-Poulenc, da França, hoje Aventis/Rhodia) -, à SGL Carbon AG, da Alemanha e à Mitsubishi, japonesa, envolvidas no cartel dos eletrodos de grafite.
Somente em quinto lugar nas multas, e, mesmo assim, porque era a terceira empresa do cartel dos eletrodos de grafite – um componente essencial para a indústria do aço – aparece uma empresa norte-americana, a UCAR International, hoje, GrafTech International (cf. Eduardo Athayde de Souza Moreira e Rodrigo Peñaloza, “Programas de Leniência, Corrupção e o Papel da Corregedoria da Autoridade Antitruste”, UnB, 2004).
A sexta maior multa, também foi para um monopólio norte-americano. Mas esse foi um dos maiores escândalos empresariais – ou, a bem dizer, monopolistas – da história: a formação, pela Archer Daniels Midland (ADM), pela japonesa Ajinomoto e mais oito empresas menores, do “cartel da lisina e do ácido cítrico”, história relatada no filme “The Informant!”, de Steven Soderbergh, com Matt Damon.
Foi um escândalo tão escandaloso (desculpem, leitores, mas foi inevitável), que a multa de US$ 100 milhões, a que a ADM foi condenada, quase parece irrisória. Até porque essa multa corresponde a 1/6 do faturamento anual do cartel somente com a lisina – um aminoácido indispensável nas rações para galináceos e suínos. Mas é verdade que a soma de todas as multas desse caso (foram multadas 10 empresas, com sede em sete países diferentes, e 11 executivos) atingiu, nos EUA, US$ 225 milhões.
Desde 1993, das 26 empresas condenadas a multas acima de US$ 10 milhões por formação de cartel nos EUA, somente cinco eram norte-americanas (cf. Karla Margarida Martins Santos, “Os cartéis transnacionais e a transnacionalização das decisões do direito concorrencial”, Revista de Direito Internacional, Brasília, v. 9, n. 4, 2012, p. 72 e 73).
Somente para completar as informações: a ADM, que monopoliza o etanol nos EUA, em 2014 foi a quinta multinacional norte-americana com maior faturamento dentro do Brasil – e, também, de janeiro a agosto do ano atual, a quinta maior exportadora, após a Vale, Petrobás, Bunge e Cargill (cf. Exame, “As Melhores Empresas do Brasil em 2014” e Valor Econômico, “Cresce participação das agroindústrias entre as líderes das exportações”, 24/09/2015).
Aqui, a atuação da ADM está na produção de soja, biodiesel, cacau e etanol, mas, sobretudo, na monopolização do comércio de produtos agrícolas – aproveitando-se da escassez de crédito, monopólios multinacionais, que também são tradings, como Bunge, Cargill e ADM comportam-se como bancos, emprestando dinheiro a agricultores para comprar sua produção antes que ela seja plantada, e, depois, exportá-la (daí o reacionarismo dos agronegocistas da ministra Kátia Abreu, fiéis crentes dos benefícios trazidos pela invasão do campo brasileiro pelas multinacionais – até o dia em que elas tomem as suas terras).
Não é preciso muito esforço para imaginar a que preços relativos essas multinacionais obtêm a produção de agricultores brasileiros – basta ouvir ou ler as gravações de chamadas telefônicas que estão no processo do cartel da lisina, no site do Departamento de Justiça dos EUA (antes que se diga, como afirmaram alguns executivos da ADM nos EUA, que isso é coisa antiga, exercemos aqui o direito de duvidar que tenha acontecido alguma revolução ética dentro da empresa, nos últimos tempos; o que, realmente, parece coisa antiga, é o governo dos EUA preocupar-se com esse problema).
A rigor, monopólios privados não concorrem – ou seja, não disputam mercado com seus produtos; monopólios privados quebram os que poderiam ser concorrentes, ou seja, eliminam o mercado, e não porque seus produtos ou serviços sejam melhores, mas porque têm maior poder financeiro, o que inclui a propina, a corrupção, de funcionários públicos, de agentes que têm por função zelar pela propriedade pública, coletiva, social.
PENETRAÇÃO
Essa eliminação do mercado – isto é, da concorrência – é o significado da frase do presidente da ADM que aparece numa das gravações do processo do cartel da lisina: “Nossos concorrentes são nossos amigos. Nossos clientes são o inimigo” (“Our competitors are our friends. Our customers are the enemy”).
Na gravação, o presidente da ADM diz a um dos principais executivos da companhia que esse “slogan da ADM penetrou a empresa inteira” (cf. a conferência de Scott D. Hammond, subprocurador-geral dos EUA e chefe da Divisão Antitruste do Departamento de Justiça de 2005 a 2013, “Caught in the Act: Inside an International Cartel”, OECD Competition Committee, Paris, 18/10/2005).
A frase do presidente da ADM parece uma atualização daquela outra, de J.P. Morgan, o monopolista-mor dos EUA, depondo, em 1912, no Congresso dos EUA: “eu gosto de um pouco de competição”. Aliás, essa parte do depoimento de Morgan é muito instrutiva: o advogado e empresário Samuel Untermyer, conselheiro do comitê presidido pelo deputado Arsène Pujo, depois de destacar que alguns dos membros da firma de Morgan eram, não somente membros do conselho de outros bancos, mas também membros da diretoria executiva desses bancos, perguntou a Morgan:
UNTERMYER: Você acha que isso promove a competição?
MORGAN: Isso não a impede.
UNTERMYER: Você é contra a competição, não?
MORGAN: Não. A competição não me importa.
UNTERMYER: Você preferiria, ao invés dela, as combinações, não é?
MORGAN: Preferiria.
UNTERMYER: Você preferiria ter combinações do que concorrência?
MORGAN: Sim.
UNTERMYER: Você é um defensor das combinações e da cooperação contra a concorrência, não é?
MORGAN: Sim, eu favoreceria a cooperação.
UNTERMYER: As combinações contra a competição?
MORGAN: Também não faço objeção à competição. Eu gosto de um pouco de competição.
(cf. Testimony of J. P. Morgan before the Bank and Currency Committee of the House of Representatives, December 18 and 19, 1912, p. 25.)
É mais ou menos evidente como Morgan obtinha “cooperação”.
Voltemos ao presidente da ADM: evidentemente, os “concorrentes” somente podem ser “amigos” porque deixaram de ser concorrentes: passaram a ser cúmplices na esforçada missão de arrancar o couro dos clientes, isto é, dos consumidores, da população – que é o inimigo para os cartéis e monopólios privados.
FIM
A transformação de empresas que se regem pela concorrência em monopólios é um fenômeno econômico.
O problema é quando se considera que os monopólios privados, ao invés de levarem à estagnação, ao atraso e à pilhagem do país e do povo – como levam – são o suprassumo do que é moderno no capitalismo.
Mas somente é possível considerar essa praga como o ápice da modernidade por submissão a esses monopólios. Essa ideologia, totalmente falsa, é a racionalização de uma submissão real, verdadeira – ou, o que é a mesma coisa, a suposta justificativa da covardia diante desses monopólios.
Porém, não é apenas porque a cúpula petista acha a cartelização da economia algo muito moderno, racionalizando assim o seu esmagamento, que se chegou aos crimes contra a Petrobrás, apurados pela Operação Lava Jato. Eles deram – e dão – essa cobertura ao cartel do bilhão porque foram, e estão sendo, beneficiados pelo que levaram em troca.
O resultado é a restrição cada vez maior da democracia. Porque nada pode haver de mais antagônico à democracia dos que os cartéis e monopólios privados. No limite, sua consequência última é o fascismo. Pode-se dizer que os cartéis, os monopólios, excretam fascismo, assim como foi possível dizer, no passado, diante do feudalismo, que o capitalismo concorrencial criava democracia.
Daí o pobre estado a que chegaram as instituições no Brasil – a começar pela Presidência, onde a opção pelos cartéis e monopólios é abertamente um grito de guerra contra o povo, vale dizer, contra a democracia.
O fato é que, na atualidade, não existe democracia sem combate aos monopólios. Veja o leitor, por exemplo, que a negação da democracia pelo poder monetário dos monopólios financeiros chegou a tal ponto nos EUA – inclusive oficialmente, pois, desde 2010, a Corte Suprema decidiu que não há limites para os gastos eleitorais – que até a “The Economist”, revista que não tem nada contra o dinheiro, acha um escândalo as eleições norte-americanas (v., p. ex., “Of mud and money”, The Economist, 08/09/2012).
Mas, nos EUA, nenhum partido, ao beneficiar-se com as sobras que lhe destinam os monopólios, oficialmente ou sob a forma de propina para os seus integrantes, pretendeu estar realizando um projeto “de esquerda”.
Pelo menos isso – embora essa seja a forma mais rasteira de moralidade.
Mas, quando até essa desaparece…