Algo estranho, se bem que não inédito, aconteceu com a CPI da Previdência no Senado, que teve como presidente o senador Paulo Paim, e, como relator, o senador Hélio José.
Apesar do intenso trabalho realizado durante nada menos de seis meses, de 31 audiências públicas, de ouvir 140 depoimentos – autoridades, dirigentes de entidades, empresários, membros do Ministério Público e da Justiça do Trabalho, deputados, auditores, especialistas e professores – e de produzir um extenso relatório, aprovado por unanimidade, apesar de tudo isso, seu andamento, seus debates, e, principalmente, seu resultado, sofreram uma brutal tentativa de abafamento.
O motivo foram as conclusões a que essa CPI chegou. Apenas um trecho:
“Ao longo deste relatório é possível verificar a inconsistência de dados e de informações anunciadas pelo Poder Executivo, que desenham um futuro aterrorizante e totalmente inverossímil. As projeções do Governo levam em conta um envelhecimento da população exagerado, ao passo que consideram um crescimento do PIB muito abaixo da média histórica nacional. Tais falhas exacerbam a previsão futura de necessidade de financiamento do RGPS [Regime Geral da Previdência Social], o que não condiz com a realidade dos fatos”.
Suas conclusões podem ser resumidas em alguns pontos, além deste:
1) O suposto “déficit da Previdência” é uma falsificação – e, em 2016, uma fabricação – do governo.
2) As estimativas que serviram de base para a proposta de reforma da Previdência do governo têm erros e imprecisões. Tomou como base um ano de forte recessão e parâmetros irrealistas, delineando um futuro caótico.
3) O governo é cúmplice das empresas devedoras da Previdência, as quais, por sua vez, beneficiam-se de uma legislação permissiva.
4) Os recursos previdenciários sofreram significativas apropriações por parte da União, resultando na destinação de dinheiro para outros gastos de interesse do governo. Com a criação da DRU (Desvinculação de Receitas da União), uma parcela significativa dos recursos originalmente destinados ao financiamento da Previdência foi redirecionada.
5) Há de parte do governo uma recorrente prática de criação de mecanismos de isenção fiscal e parafiscal para empresas e entidades diversas, algo que também tem contribuído negativamente para as contas do setor. O Refis, isto é, o parcelamento e o perdão de multas, de juros, de correção monetária e de encargos legais, tornou-se recorrente, com prejuízo da Previdência e da seguridade social.
6) Além do setor privado, as empresas públicas também têm acúmulo de débitos previdenciários que impacta o sistema.
7) A legislação, que é generosa em conceder o perdão de dívidas e oferecer parcelamentos benevolentes aos sonegadores da seguridade, não pode ser rigorosa com o corte da despesa de benefícios dos miseráveis e dos trabalhadores, aposentados e pensionistas.
8) A gestão para concessão e manutenção de benefícios está sujeita a fraudes e erros que impactam negativamente as contas. Na maioria dos casos, os crimes não são praticados por segurados comuns, mas por quadrilhas especializadas.
Este é o motivo do abafamento. A CPI também elaborou uma série de propostas para tornar a Previdência mais eficiente e mais justa.
Abaixo, nós condensamos um trecho do relatório da CPI da Previdência, sem pretender que seja um resumo geral – o relatório completo tem 253 páginas.
C.L.
Ao longo desta CPI, compareceram diversas entidades e especialistas que contestaram as contas apresentadas pelo Governo, que apontam para a existência de déficit tanto nas contas da Seguridade Social quanto nas da Previdência.
Não obstante o cenário adverso, a seguridade social apresentou resultado positivo em 2015, apesar da profunda crise econômica e sob o efeito das desonerações concedidas no passado. Segundo as contas apresentadas, e apesar das quedas reais na arrecadação, o Orçamento da Seguridade Social em 2015, apresentou um resultado de R$ 11,2 bilhões, inferior aos R$ 55,7 bilhões de 2014.
O governo faz duas operações de subtração de valores. O primeiro refere-se à Desvinculação de Receitas da União – DRU. Esse dispositivo transitório permite ao governo federal desvincular 30% das receitas da seguridade social, ressalvadas as contribuições previdenciárias. A DRU desvinculou R$ 63,8 bilhões em 2015, conforme dados apresentados pela Entidade, a seguir reproduzidos.
Vale frisar que, no aludido exercício, a DRU vigente era de 20%.
A outra operação de subtração de valores refere-se à desconsideração de recursos resultantes de aplicação financeira dos diversos órgãos da Seguridade Social. As autarquias, fundações e os Fundos da Seguridade Social possuem autorização legal para aplicar seus saldos financeiros e receber rendimentos dessas aplicações.
Podem utilizar esses recursos para cobrir parte de seus encargos. Na Seguridade Social, o caso mais significativo é o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), que recebe recursos de suas aplicações no BNDES e em outras instituições financeiras. Somente em 2015, essa subtração envolveu R$ 14 bilhões do FAT.
Nas contas que o Governo apresenta, o Tesouro Nacional se apropria desses recursos, prejudicando patrimonialmente autarquias, fundações e fundos públicos da seguridade.
DESONERAÇÃO
Em relação à desoneração, embora o Governo reconheça a obrigação legal do repasse, essa transferência é tratada como intra-orçamentária, efetivada com recursos da própria seguridade.
A parcela não repassada é calculada a partir de estudos da ANFIP e da Fundação ANFIP e representam a diferença entre o custo total da desoneração da folha e a compensação realizada pelo governo.
Nas contas da seguridade social, o governo acrescenta receitas e despesas dos regimes previdenciários de servidores civis e de pensionistas militares.
O Governo soma as receitas dos regimes próprios para também, de outro lado, adicionar as respectivas despesas, que são muito superiores. O Governo justifica a inclusão ao alegar que o regime dos servidores tem natureza contributiva e a ele são devidas contribuições de servidores ativos, aposentados e pensionistas. Porém a ANFIP discorda desse posicionamento, ao defender que para a seguridade social, o regime previdenciário é exclusivamente o Regime Geral de Previdência Social (RGPS), conforme disposto no art. 195 da Constituição Federal.
Tal regime [dos servidores] tem fontes de custeio distintas e específicas, que não podem ser empregadas, se superavitárias, para custeio de benefícios do RGPS ou dos demais benefícios da seguridade social.
Além das despesas dos regimes de previdência de servidores e de pensionistas militares, a ANFIP adverte sobre a existência de outras inclusões, todas também questionáveis, tendo em vista serem incompatíveis com o ordenamento constitucional. São exemplo as despesas com inativos e pensionistas de servidores e policiais militares pagos à conta do Fundo Constitucional do DF e também de servidores dos ex-Territórios.
Em relação às despesas dos Encargos Previdenciários da União – EPU – Transferências aponta para a existência de outra distorção, que é o fato de as contribuições dos servidores, e policiais civis e militares do DF integrarem o Orçamento do DF, e as despesas entrarem na conta dos regimes previdenciários dos servidores da União.
A ANFIP também defende que a rubrica de “Assistência ao Servidor”, relativa a despesas com os pagamentos dos planos de saúde dos servidores públicos e com o auxílio alimentação, nunca poderia ser considerada como pertencente à Seguridade.
Na visão da entidade, trata-se de encargos patronais e direitos dos servidores. Na mesma situação se encontram os Pagamentos de Planos de Saúde, os quais, afirmam, não podem ser considerados despesas do SUS, assim como o pagamento de auxílio-alimentação também não pode ser considerado como despesa da assistência social. No mesmo caso encontram-se as despesas com Assistência ao Militar, que trata basicamente de ações de saúde prestadas pelos hospitais militares e convênios diversos, as quais, entende, não podem ser classificadas como Seguridade Social.
A ANFIP também encontrou outras despesas as quais denominou “Outras Programações Estranhas”, que englobam múltiplas ações que estão enquadradas no Orçamento da Seguridade Social. Ressalta que em 2015 foram incluídos nessa conta os pagamentos relativos: ao Fundo de Pensão Aeros, resultante de uma sentença judicial de natureza indenizatória; e à contribuição patronal para os fundos de pensão complementar dos servidores públicos, que consideram não ser uma despesa da Seguridade Social.
Por certo, assiste razão às entidades e especialistas ouvidos por esta CPI. Para o cálculo das necessidades de financiamento da seguridade social é necessário incluir os valores retirados pela Desvinculação das Receitas da União – DRU, que, entre 2005 e 2015 subtraiu um total de mais de R$ 519 bilhões, e somente no ano de 2016 subtraiu R$ 91,8 bilhões dessa conta.
Nesse mesmo sentido, devem também ser consideradas como receita da seguridade social todas as renúncias fiscais vinculadas a essa esfera orçamentária.
Ao se fazer essas correções, obtém-se uma contabilização das necessidades de financiamento da seguridade mais adequada ao real universo de receitas e despesas relacionadas.
FATORES RELEVANTES
Segundo a metodologia e os dados apurados pela ANFIP, a Seguridade Social apresentou, em 2016, resultado negativo de R$ 58,998 bilhões, ou seja, o superávit verificado em 2015 converteu-se em um déficit em 2016, resultante de vários fatores relevantes.
Do ponto de vista da despesa, o pagamento com benefícios previdenciários no âmbito do RGPS apresentou acréscimo de R$ 71,8 bilhões; a despesa com benefícios assistenciais aumentou R$ 6,2 bilhões, já incluídos os acréscimos com benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social.
No âmbito do programa Bolsa Família, apesar da inversão da política de busca ativa que deu lugar a uma política de cancelamento de benefícios, com a exclusão de 1,1 milhão de beneficiários, em consequência do reajuste dos benefícios a despesa total aumentou em R$ 570 milhões. As despesas com a saúde aumentaram R$ 6,3 bilhões. As despesas do FAT sofreram acréscimo de R$ 7,6 bilhões. Em seu total, as despesas da seguridade social alcançaram R$ 775,983 bilhões em 2016, com acréscimo total de R$ 92,926 bilhões.
As receitas, contudo, não acompanharam esse acréscimo. Como consequência da recessão econômica, o conjunto das receitas da seguridade social aumentou somente 3,5%, ou seja, inferior ao IPCA de 2016, que foi de 6,29%. A receita previdenciária foi duramente atingida pelo aumento do desemprego e da informalidade, com aumento de apenas 1,6%. Apenas a arrecadação da CSLL cresceu mais do que a inflação (14,2%). Em sua totalidade, a receita da seguridade alcançou crescimento de somente R$ 24,489 bilhões, levando ao saldo a descoberto apontado.
Como destaca a ANFIP, “é a crise econômica que determina as alegadas dificuldades da previdência social; não o contrário”. As perdas acumuladas no PIB, desde 2015, fazem com que o tamanho da economia brasileira, em 2017, tenha retrocedido ao que se verificava em 2011.
No biênio 2015/2016, a indústria caiu 17%, os serviços, 9% e o comércio, 20%. Em 2016, a queda do PIB foi determinada pelo simultâneo comportamento decrescente desses fatores, com uma retração econômica de -3,6% no Produto Interno Bruto, e um déficit primário do setor público de 2,47% do PIB. Esses fatores e a queda de arrecadação de mais de R$ 150 bilhões, tiveram reflexos drásticos nas contas da seguridade social e no conjunto da Administração Pública.
Segundo a ANFIP,
“Foi exatamente para cortar gastos que o governo patrocinou combinações ruinosas como o aumento de requisitos para o seguro desemprego em um momento em que quase dois milhões de postos de trabalho formal foram extintos e promoveu a exclusão de um milhão e meio de famílias do Bolsa-Família, quando a renda familiar estava em declínio. Várias ações e programas da educação e da saúde perderam recursos.”
Mesmo nesse cenário, as renúncias fiscais permanecem elevadas. Conforme a ANFIP,
“… em 2016, o conjunto das renúncias totalizou R$ 271 bilhões. Comparativamente ao verificado em 2015, esse valor representa um aumento sobre a arrecadação e sobre o conjunto da economia. Desse total, aproximadamente um terço, R$ 91,4 bilhões, resultam de medidas aprovadas posteriormente a 2010. Nos últimos anos, a renúncia cresceu em relação ao PIB, principalmente em função da recessão, mas diminuiu em proporção à receita realizada, pelas mudanças ocorridas no último biênio.”
Mas daí a concluir-se que a saída seja a redução de direitos e o desmonte da previdência social pública, vai uma distância enorme. As medidas de ajuste fiscal que vêm sendo implementadas, como a recente promulgação da Emenda Constitucional n° 95, de 2017, que instituiu o Novo Regime Fiscal a vigorar por 20 anos, longe de superar os problemas decorrentes da crise econômica, pode mesmo vir a agravá-las, pois retira do Estado a capacidade de adotar medidas anticíclicas e promove a redução da despesa pública ao status de única alternativa a ser adotada, mesmo que à custa da extinção ou redução de direitos sociais.
Os gastos mínimos com saúde e educação, que somente poderão ser atualizados pela inflação do ano anterior, não comportarão o aumento da demanda social, resultante do crescimento da população e seu envelhecimento.
Conforme destaca a ANFIP, “o acompanhamento das receitas e das despesas nos últimos 12 anos permite identificar os números [da Previdência] de 2016 como resultantes de fatores conjunturais”. Com efeito, de 2005 a 2016, os números da Seguridade Social produziram, em média, R$ 50,2 bilhões de superávit anuais, mesmo considerando o resultado negativo de 2016 – único da série.
Mantidos os patamares de receitas havidos em 2013, por exemplo, a diferença de cerca de R$ 90 bilhões a mais em relação a 2016 reverteria o resultado negativo do exercício e ainda produziria um superávit de mais de R$ 30 bilhões.
Conforme demonstram os dados, em relação ao PIB, em 2016, as receitas da Seguridade Social representaram 11,5%, um valor pouco inferior aos 11,6% de 2015. Entre 2013 a 2016, porém, houve uma queda generalizada em relação ao PIB, e desde 2015, essa queda estendeu-se também às receitas da Previdência Social, revertendo a tendência de crescimento promovida pela expansão do emprego e da renda em patamares superiores aos da economia.
Assim, conclui a entidade,
“A construção de um conceito deficitário para a Seguridade Social cumpre o papel de motivar questionamentos sobre o crescimento dos gastos sociais e sua inviabilidade frente à economia e ao conjunto das receitas públicas. Se, por outro lado, a sociedade tivesse consciência do superávit da Seguridade Social, estaria em uma luta permanente por mais recursos para a Saúde ou ampliação dos direitos sociais. Em relação à previdência, por exemplo, ao invés de cortes em benefícios, ganhariam força os embates pela universalização da cobertura ou por maiores reajustes para os aposentados e pensionistas. Vale lembrar, ainda, a observação feita anteriormente, que os superávits sucessivos poderiam ser utilizados para constituir uma grande reserva com o objetivo de dar solidez à Seguridade Social.”
DESEMPREGO E SONEGAÇÃO
No caso da Previdência, a ANFIP destaca o fato de que as suas receitas – historicamente desviadas para outros fins – estão aviltadas por inúmeras razões, como o crescimento, desde 2014, do desemprego, das renúncias, da sonegação e da inadimplência que afetam de forma simultânea e negativamente as contribuições previdenciárias.
Ademais disso, desde 2007 a Previdência Social perdeu uma significativa fonte de financiamento, com o fim da CPMF. Em 1999, a alíquota da CPMF foi ampliada para 0,38% pela EC n° 21, dos quais 0,10% seriam destinados ao custeio da Previdência Social. Com o fim da CPMF, a Previdência Social perdeu R$ 9,5 bilhões (em valores de 2007), o equivalente a 7% das receitas previdenciárias daquele ano.
Todavia, em regra as análises divulgadas pelo Governo desconhecem esses fatores, centrando-se nos impactos futuros do envelhecimento da população e do aumento da despesa com benefícios as suas propostas de reforma, e desconsideram, sobremodo, o fato de que a Previdência Social não deve ser custeada exclusivamente por receitas a ela vinculadas, mas por toda a sociedade, em caráter solidário. Conforma salienta a ANFIP,
“O RGPS demanda recursos extras, mas muito menores do que os praticados internacionalmente. Segundo o IPEA, na média dos países da União Européia, membros da OCDE, os recursos do Tesouro respondem por 36% das despesas previdenciárias – mais do dobro do verificado aqui em 2015 e mais de uma vez e meia a média verificada de 2005 e 2016.”
Assim, propõe a ANFIP:
“Para aprimorar o debate previdenciário, seria importante que o conjunto das renúncias previdenciárias fosse discutido. Em sua maioria, essas renúncias não mais correspondem a políticas de inclusão previdenciária ou representam ajustes à capacidade contributiva das empresas ou pessoas. Nesses últimos anos, renúncias previdenciárias foram estabelecidas ou ampliadas em função de outras políticas, como em resposta à desindustrialização, problemas cambiais, entre outros.
“E, nesses casos, o RGPS deveria ser integralmente ressarcido. Não se pode exigir equilíbrio financeiro e atuarial, como previsto legalmente, sem a integral e pronta compensação desses valores.”