Olavo de Carvalho não está pagando esse mico de ficar com a Inquisição e a Escolástica, contra Galileu, por amor à ciência
No dia 27 de dezembro de 2011, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro concedeu sua mais alta condecoração, a Medalha Tiradentes, ao autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho.
O projeto de lei foi de autoria do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho mais velho do atual presidente da República, que introduziu no seu lema de campanha e de governo a expressão “Deus Acima de Todos”.
Interessado em ampliar a base política da família, Flávio costumava patrocinar esse tipo de homenagem, buscando estreitar relações com adeptos do ideário do “Tiro, Porrada e Bomba” – inclusive milicianos, apesar da gravidade de seus delitos.
No mesmo ano, Olavo havia publicado em seu site um artigo com jeitão de Escola Sem Partido, em que procura contestar Galileu e desagravar a Santa Inquisição que ameaçara o fundador da ciência moderna com a fogueira e o condenara à prisão perpétua, em 1633.
Olavo coloca a questão nos seguintes termos:
“Se você pretende que seus filhos venham a ter uma educação de verdade, comece por não permitir que eles sejam alimentados, por um sistema educacional criminoso, com balelas idiotas que deformarão para sempre sua visão do passado histórico… Entre muitas outras, a lenda mais deformante é talvez a de Galileu Galilei como ‘mártir da ciência’… O confronto com a Inquisição não foi uma disputa entre ‘ciência e fé’, nem muito menos entre ‘ciência e superstição’, mas entre a pseudo-ciência presunçosa de Galileu e a ciência superior de São Roberto Belarmino”.
Roberto Francisco Rômulo Belarmino morreu em 1621. Na condição de cardeal-inquisidor foi o principal responsável pela condenação do frade dominicano Giordano Bruno, queimado vivo como herético, no ano de 1600, por ter defendido em seus livros, entre outras questões, a existência real (e não meramente hipotética) do sistema solar resultante da teoria heliocêntrica do astrônomo e matemático polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) – inúmeros sistemas solares, acrescentava ele.
Uma pequena mostra da “superior” ciência praticada pelo cardeal Belarmino pode ser apreciada nos conceitos emitidos em sua carta ao padre carmelita Paolo Antônio Foscarini, em abril de 1615. Foscarini escrevera um livro em defesa do sistema de Copérnico, cuja existência Galileu se empenhava em provar, desde a publicação em 1610 de seu livro O Mensageiro das Estrelas, no qual apresenta suas descobertas astronômicas de 1609, que o telescópio criado especialmente por ele, com o triplo da potência dos originais holandeses, havia tornado possíveis.
Na carta, o inquisidor fazia pressão sobre o padre para alterar seu ponto de vista:
“O Concílio proíbe interpretar as Escrituras contra o consenso dos Santos Padres; e se Vossa Paternidade se incomodar em ler não apenas os Santos Padres, mas também comentários modernos sobre o Gênesis, os Salmos, Eclesiastes e Josué verá que todos concordam com a interpretação literal de que o sol está no céu e gira à volta da Terra em grande velocidade e que a Terra está muito distante do céu e está imóvel no centro do mundo.
“Acrescento que aquele que escreveu ‘Levanta-se o Sol e se põe, e retorna ao seu lugar, etc.’ foi Salomão, o qual não só falou inspirado por Deus, como também foi um homem muitíssimo mais sábio e douto que todos os demais nas ciências humanas e no conhecimento das coisas criadas, e toda esta sabedoria recebeu-a de Deus. Donde não ser verossímil que afirmasse uma coisa que fosse contrária à verdade demonstrada ou que se pudesse demonstrar.
“E, se me for dito que Salomão fala de acordo com a aparência – parece-nos que o Sol gira enquanto a Terra gira, como a quem se afasta da praia parece que a praia se afaste do navio – responderei que quem se afasta da praia, embora lhe pareça que a praia se afaste dele, sabe, no entanto, que isto é um erro e o corrige, vendo claramente que o navio se move e não a praia. Mas, no que se refere ao Sol e à Terra, não há nenhum perito na matéria que tenha necessidade de corrigir o erro porque experimenta claramente que a Terra está parada e que o olho não se engana quando julga que o Sol se move, como também não se engana quando julga que a Lua e as estrelas se movem. E baste isto por agora”.
Segundo a Bíblia, e tão somente ela, Salomão foi o terceiro rei de Israel e governou no século IX a.C. Mas não há registro histórico ou arqueológico da passagem desse monarca pela Terra, como há sobre Hamurabi e Nabucodonosor, que governaram respectivamente nos séculos XVIII a.C. e V a.C.
Se considerarmos que ele existiu, a “ciência superior” de Belarmino, com a qual Olavo pretende refutar Galileu, consiste, na melhor das hipóteses, na revelação do que Salomão e demais autoridades tocadas por Deus dizem, literalmente, na Bíblia. Se não existiu, a posição do Inquisidor e seu Apologista torna-se ainda mais frágil. Em ambos os casos é fácil perceber que isso nada tem a ver com ciência e sim com dogmas, obscurantismo, superstição e tirania.
Portador de uma alma de déspota, Olavo não se basta em tomar partido do Tribunal do Santo Ofício no tocante à “imobilidade da Terra no centro do mundo”.
Em pleno século 21, e depois que a própria Igreja Católica arrependida pediu perdão pela condenação de Galileu, ele decide ir além da Inquisição e fulminar o cientista por outras supostas heresias. Em sua campanha para fazer a humanidade retroceder mentalmente à Idade Média, o Princípio da Inércia acabou pagando o pato.
Este princípio, formulado por Galileu, não por acaso se converteu na primeira das três Leis de Newton: “Todo o corpo permanecerá em repouso ou em movimento retilíneo uniforme, a menos que tenha seu estado alterado pela ação de uma força externa” (Isaac Newton, 1643-1727).
As Leis de Newton são a base da mecânica dos corpos materiais em escala terrestre e celeste. É matéria que se começa a aprender no Ensino Médio, assim como cálculo infinitesimal. Sem conhecer essas ferramentas é muito fácil dizer bobagens sobre Física e História da Ciência. E o fato é que o “intelectual orgânico” do bolsonarismo quer ser considerado filósofo sem se dar ao trabalho de entendê-las.
Vejamos como ele ataca o Princípio da Inércia:
“Um fundo de charlatanismo parece já ter sido introduzido na física por Galileu, quando proclamou ter superado a noção da ciência antiga, segundo a qual um objeto não impelido por uma força externa permanece parado – uma ilusão dos sentidos, segundo ele. Na realidade, pontificava, um objeto em tais condições, permanece parado ou em movimento retilíneo uniforme. E, após ter assim derrubado a física antiga, esclarecia discretamente que o movimento retilíneo uniforme não existe realmente, mas é uma ficção concebida pela mente para facilitar as medições. Ora, se o objeto não movido de fora permanece parado ou tem um movimento fictício, isto significa, rigorosamente, que ele permanece parado. Ou seja, Galileu não contestou a física antiga, apenas inventou um modo de provar que ela tinha razão” (Olavo de Carvalho, ‘O Jardim das Aflições’, página 151).
É oportuno transcrever aqui um trecho do livro “Diálogos Sobre os Dois Principais Sistemas de Mundo”, escrito por Galileu em 1632. É impossível a um ser humano normal deixar de se emocionar com a clareza e a engenhosidade da argumentação, que busca tornar evidente ao senso comum aquilo que inicialmente pareceria dar razão ao pensamento antigo do qual Olavo não se desprendeu, por interesse em se manter atado a ele, desde a época em que procurava ganhar dinheiro como astrólogo.
Nos “Diálogos…”, Salviatti é uma espécie de alter ego de Galileu. Simplício um representante não sectário das ideias antigas. Há ainda um terceiro personagem, Sagredo, apresentado como “um observador inteligente” – no trecho transcrito ele é apenas citado.
“SALVIATTI: Suponhamos que se tenha uma superfície plana lisa como um espelho e feita de um material duro como o aço. Ela não está horizontal, mas inclinada, e sobre ela foi colocada uma bola perfeitamente esférica, de algum material duro e pesado como o bronze. A seu ver o que acontecerá quando a soltarmos?
“SIMPLÍCIO: Não acredito que permaneceria em repouso; pelo contrário estou certo de que rolaria espontaneamente para baixo.
“SALVIATTI: E por quanto tempo a bola continuaria a rolar, e quão rapidamente? Lembre-se de que eu falei de uma bola perfeitamente redonda e de uma superfície altamente polida, a fim de remover todos os impedimentos externos e acidentais. Analogamente, não leve em consideração qualquer impedimento do ar causado por sua resistência à penetração, nem qualquer outro obstáculo acidental, se houver.
“SIMPLÍCIO: Compreendo perfeitamente, e em resposta a sua pergunta digo que a bola continuaria a mover-se indefinidamente, enquanto permanecesse sobre a superfície inclinada, e com um movimento continuamente acelerado…
“SALVIATTI: Mas se quiséssemos que a bola se movesse para cima sobre a mesma superfície, acha que ela subiria?
“SIMPLÍCIO: Não espontaneamente; mas ela o faria se fosse puxada ou lançada para cima.
“SALVIATTI: E se fosse lançada com um certo impulso, qual seria seu movimento, e de que amplitude?
“SIMPLÍCIO: O movimento seria constantemente freado e retardado, sendo contrário à tendência natural, e duraria mais ou menos tempo conforme o impulso e a inclinação do plano fossem maiores ou menores.
“SALVIATTI: Muito bem, até aqui você me explicou o movimento sobre dois planos diferentes. Num plano inclinado para baixo, o corpo móvel desce espontaneamente e continua acelerando, e é preciso empregar uma força para mantê-lo em repouso. Num plano inclinado para cima, é preciso uma força para lançar o corpo ou mesmo mantê-lo parado, e o movimento impresso no corpo diminui continuamente, até cessar de todo. Você diria ainda que nos dois casos surgem diferenças conforme a inclinação do plano seja maior ou menor, de forma que um declive mais acentuado implica maior velocidade, ao passo que num aclive um corpo lançado com uma dada força se move tanto mais longe quanto menor o aclive. Diga-me agora o que aconteceria ao mesmo corpo móvel, colocado sobre uma superfície sem nenhum aclive nem declive.
“SIMPLÍCIO: Aqui preciso pensar um instante sobre a resposta. Não havendo declive, não pode haver tendência natural ao movimento; e, não havendo aclive, não pode haver resistência ao movimento. Parece-me portanto que o corpo deveria naturalmente permanecer em repouso. Mas eu me esqueci; faz pouco tempo que Sagredo me deu a entender que isto é o que aconteceria.
“SALVIATTI: Acredito que aconteceria se colocássemos a bola firmemente num lugar. Mas que sucederia se lhe déssemos um impulso em alguma direção?
“SIMPLÍCIO: Ela teria que se mover nessa direção.
“SALVIATTI: Mas com que tipo de movimento? Seria continuamente acelerado, como no declive, ou continuamente retardado, como no aclive?
“SIMPLÍCIO: Não posso ver nenhuma causa de aceleração, uma vez que não há aclive nem declive.
“SALVIATTI: Exatamente. Mas se não há razão para que o movimento da bola se retarde, ainda menos há razão para que ele pare. Por conseguinte, por quanto tempo você acha que a bola continuaria se movendo?
“SIMPLÍCIO: Tão longe quanto a superfície se estendesse sem subir nem descer.
“SALVIATTI: Então, se esse espaço fosse ilimitado, o movimento sobre ele seria também ilimitado? Ou seja, perpétuo?
“SIMPLÍCIO: Parece-me que sim, desde que o corpo móvel fosse feito de material durável.”
Desnecessário dizer que Galileu e depois Newton jamais consideraram que o movimento retilíneo uniforme “é uma ficção concebida pela mente para facilitar as medições”. Aliás, para comprová-lo, basta observar o movimento de um foguete no espaço, em ambiente de microgravidade, com os motores desligados.
Olavo não está pagando esse mico de ficar com a Inquisição e a Escolástica, contra Galileu, por amor à ciência.
O problema é que ele está possuído pela ideia de que sem restabelecer a autoridade que a religião desfrutava no paraíso medieval não dá mais para o populacho se deixar explorar pelas elites sem se revoltar.
Autoridade absoluta em todos os assuntos existentes ou, como diria São Roberto Belarmino, que possam vir a existir. Poder de vida e de morte, de prender e arrebentar. Essa é a parte que interessou à família Bolsonaro e motivou a sua conversão ao Credo.
(SÉRGIO RUBENS)
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