VALÉRIO BEMFICA (*)
A quarentena a que estamos submetidos para o devido enfrentamento do coronavírus não tem sido uma experiência fácil para ninguém. O ser humano é, por natureza, gregário, social. Ficar atocaiado, enfurnado, preso não é o sonho de ninguém que possa ser considerado normal. A misantropia, a aversão ao contato social são defeitos em quase todas as sociedades. Não por acaso quem comete um crime é condenado à reclusão.
Some-se a isso as aflições naturais quanto ao futuro: quanto tempo irá durar? O que ocorrerá com o emprego? E a escola? Como ficará a saúde de nossos maiores, de nossos filhos, a nossa própria? Preocupações suficientes que aguentamos graças à consciência de que não há alternativa. O isolamento é necessário para reduzir o contágio, para que o sistema de saúde se prepare, para que medicamentos e vacinas sejam desenvolvidos.
Em tempos de informação instantânea, mais um elemento para aumentar a nossa angústia: somos bombardeados por notícias, pela TV, jornais, redes sociais. Especialistas, políticos, jornalistas e desocupados emitem opiniões díspares, contraditórias e, não raro, boçais, capazes de enlouquecer até o mais calmo sujeito.
Já seria suficiente. Mas, infelizmente, há um espetáculo que vem se tornando frequente e que consegue piorar ainda mais a situação: as cenas tragicômicas, encenadas por canastrões e dirigidas pelo cavalão em chefe, pelo capitão-fujão, por aquele que não deveria ter seu nome pronunciado. Fazem-me lembrar a afirmação de Galileu a Sarsi: “infinita é a turba dos imbecis”.
Refiro-me, por exemplo, às carreatas, onde bonitões, protegidos por máscaras, em seus carrões importados (com as janelas fechadas, claro) buzinam exigindo que o povão volte a apinhar ônibus e metrô. A Casa Grande inconformada com a Senzala, que não se dispõe a adoecer para servi-la.
Dondocas indignadas por, na falta de diaristas (a quem não pagam na quarentena), verem-se obrigadas a limpar o banheiro (se é que o fizeram), bradando preocupação pela penúria financeira das moças. Empreendedores meritocráticos jurando estar mais preocupados com os empregos dos pobres do que com seus lucros. Boys bombados, inconformados por não poderem frequentar a academia e consumir seu shake de whey-protein, alegando medo de que os porteiros e faxineiros fiquem desamparados. Papis e mamis endinheirados desesperados por não saber o que fazer com o Júnior sem nenhuma das três babás, mas afirmando que sua preocupação é com a saúde financeira de suas colaboradoras…
Ou então a empresária, travestida de professora, jurando não ter como dar de comer a seus filhos. E o vendedor de churrasquinho – este sim sem ter muito como levar o sustento para casa – olhando seu algoz, que fez o possível e o impossível para inviabilizar seu auxílio emergencial, tendo que dedicar-lhe um constrangido sorriso amarelo de concordância. Ou a velhinha surpreendida pelo cumprimento da mão ranhenta do supremo mandatário a quem ninguém obedece.
Tem ainda o Carluxo, soltando torpedos hepáticos pelas redes, talvez em estágio depressivo por ter de passar a quarentena longe do priminho. Sem falar no outro zero à esquerda jurando que a culpa é toda da China, enquanto tenta enterrar a CPI que lhe alcança os calcanhares. E no Rachadinha, buscando como nunca se esconder da justiça e fingindo que o Queiroz nunca existiu.
Para finalizar a grande farsa dos tempos bozolóides, aparece o próprio em cena. Trajando um figurino rosa, pouco hétero para seus padrões, que destaca a nada atlética pança, zurra para os gatos pingados que parecem ainda dispostos a ouvi-lo. Ditadura, intervenção militar, Capitão mandando em General, AI5, tortura, morte. É a apoteose do Anjo da Morte.
Chego a imaginar que é ficção. Talvez um delírio provocado por um mês de isolamento. Mas não. Do romancista ucraniano-americano Joseph Conrad diziam que ele ambientava suas obras no fantástico. Quando teve oportunidade, o autor refutou a afirmação. Já havia no mundo, segundo ele, “suficiente mistério e terror”.
E há. O que leva homens e mulheres a achar que o que têm a perder – a troca de carro no final do ano, o intercâmbio do filho mimado nos States, as férias na Disney – vale mais do que a vida dos outros? Será que acreditam que “todo mundo vai morrer um dia, não tem o que fazer”, como afirma o muar-chefe? Acham que o plano de saúde “golden plus” pode dar-lhes a imortalidade? Se todos os argumentos racionais não lhes foram suficientes, tampouco bastam para o seu despertar as covas rasas, as pilhas de caixões, as UTI’s lotadas? Será que, para que acordem, terão que contemplar uma Certidão de Óbito com o mesmo sobrenome que o seu? Esperamos que não.
Até quando teremos que amargar essa tragicomédia? Os atores são péssimos (há poucos dias estreou um Sinistro da Saúde, aparentemente saído da Família Adams, que em sua primeira entrevista revelou a sua preocupação com a estabilidade do sistema PRIVADO de saúde!). O coro desafina cada dia mais. Ao diretor, não se lhe poupam adjetivos: covarde, apedeuta, burro, incompetente, boçal, alienado. Mas o que melhor lhe cabe é assassino. Já ninguém escuta suas ordens. A frágil conjunção de astros que o levou à direção esboroou-se. Muitos lamentam da bobagem que fizeram um ano e meio atrás.
Cresce a cobrança para que o abominável espetáculo seja desentortado – ou, no limite, abreviado.
O fato é que a continuidade disso que está aí só serve para causar mais dor, miséria e morte.
(*) Presidente do CPC-UMES