EDUARDO DE AZEREDO COSTA (*)
O Ministro Interino da Saúde, pela imprensa de hoje, já nos assegurou que a vacina de Oxford é melhor, o que ainda não podemos saber. Em particular, eu não sabia até ontem nada, nem um detalhe, da vacina russa contra a COVID-19.
Mas, todos os comentários trazidos pela mídia digital duvidavam ou divergiam de procedimentos já adotados pelas autoridades russas, em particular de que haviam registrado a vacina antes da fase 3 dos estudos considerados necessários para decidir pelo registro.
De um modo muito sumário, depois de testes em laboratório, inclusive pela inoculação do antígeno em animais cobaias, a fase clínica 1 inocula num número pequeno de pessoas hospitalizadas, normalmente jovens e sadias, voluntárias, monitorando todos os sistemas do organismo dessas ‘cobaias humanas’ para saber de sua segurança.
A fase 2, já utiliza um grupo bem maior de pessoas, na qual estuda-se melhor reações adversas e a imunogenicidade, isto é, a resposta em termos da formação de anticorpos protetores. Essa fase, frequentemente, utiliza grupo controle que não é inoculado.
A fase 3 é aquela em que se quer testar se, nas condições de exposição natural, a vacina é eficaz. Nessa situação, precisa-se estudar milhares de pessoas inoculadas, organizando um grupo controle que não recebe a vacina, mas sim um placebo, e comparar a resposta em ambos os grupos. Com esses resultados, que reforçam os indicativos anteriores de que funciona, encaminha-se o registro.
Depois disso, falamos também em fase 4 ou de pós-comercialização. Essa fase precisa de um sistema de vigilância epidemiológica, pois aparecerão situações de reações que só podem aparecer depois de milhões vacinados.
Por óbvio, nem sempre foi assim. Os procedimentos laboratoriais e clínicos, hoje, seguem recomendações de boas práticas da OMS, antes inexistentes.
Muitas vacinas em uso foram desenvolvidas antes dessa regulação de boas práticas. A vacina da varíola apareceu da constatação de quem pegava a vacínia (doença que atacava os ordenhadores de vacas) não pegava varíola. E, antes, já havia a variolização, que consistia em escolher pústulas de pacientes com a doença leve e inocular, para prevenir da varíola maligna.
Vacinas como a da raiva, difteria, tétano, pólio, não passaram, também, pelos mesmos procedimentos. Os resultados eram óbvios com o tempo. No entanto, para introduzir melhorias nas mesmas, foram feitos estudos clínicos comparativos, sem grupo placebo. Isto porque não é considerado ético deixar de vacinar para estudar, se sabemos que a vacina funciona, pela observação histórica.
Há vários métodos utilizados para produzir o antígeno que será testado, a partir do gérmen causador da doença.
Um dos mais simples e seguros é pela inativação do vírus, que não produzirá a doença, mas produzirá a formação de anticorpos, que já está desenvolvido pela China (Sinovac/Butantan).
Métodos modernos usaram, inicialmente, bactérias ou fungos para expressar proteínas de vírus, identificadas como imunogênicas e específicas do vírus da doença. Nesses procedimentos, um gene do vírus é introduzido na bactéria e esta começa a produzir o antígeno desejado em grande quantidade.
Pesquisas mais recentes para o desenvolvimento de antígenos de vírus respiratórios começaram a utilizar, em vez de bactérias, adenovírus. Estes são responsáveis por resfriados mais comuns, sendo de patogenicidade baixa. Os principais adenovírus humanos, em teste para a COVID-19, são o Ad5 (CanSino – Chinesa) e o Ad26 (Johnson e Johnson – EUA).
O antígeno desenvolvido em Oxford, para a COVID-19, não é humano, mas recolhido de chimpanzé (AstraZenica – Inglaterra).
Em todos os projetos de vacina, a purificação é crítica, para não levar a introduzir elementos tóxicos e produzir aumento de reações adversas.
Há, também, proposta de vacinas mRNA (RNA mensageiro) para a COVID-19, de segurança questionada, e que não foi ainda aprovada por qualquer órgão de regulação sanitária.
Hoje pela manhã, enfim, li, na Hora do Povo, um artigo do Sputnik News, conhecendo um pouco mais de detalhes da proposta russa (v. Como a Rússia chegou à Sputnik V, 1ª vacina para COVID-19).
Em primeiro lugar, ela usará, diferentemente das outras, os dois adenovírus humanos Ad5 e Ad26. Um deles produz o antígeno para a primeira dose e o outro para a segunda dose. Com isso, atingem 100% de imunogenicidade e a designaram como Sputnik V (Gamaleya).
Outra novidade, que estão adiantando, seria a capacidade produtiva chegar a 500 milhões de doses.
Eles recorreram ao anúncio, antes da publicação dos resultados daquilo que fizeram até agora. Para quem conviveu com russos e ucranianos, não surpreende, pois a questão do segredo em desenvolvimento científico e tecnológico é severo. Vão fazê-lo nos próximos dias, dizem.
O detalhe de registrar antes da chamada fase 3 parece visar dar mais segurança para o uso em grandes números, que, afinal, também dizem que farão em cada país com que estabelecerem acordo. Por isso, o Tecpar possivelmente participará destes testes e se capacitará a produzir a vacina russa, mais uma promessa para o Brasil, sem pedir, ao que se saiba, recursos financeiros para transferir tecnologia (v. Paraná e Rússia assinam acordo para estudar vacina contra Covid-19).
Em resumo, fora a jogada de marketing, a vacina russa parece estar no mesmo nível das demais em testes. Veremos, após a publicação científica estar disponível.
Creio que esse episódio e o questionamento sobre a realização da fase 3 com grupo placebo pede uma reflexão.
Trata-se de avaliar melhor dois aspectos éticos dos estudos, na situação pandêmica.
De um lado, riscos de uso largo do produto, que já se sabe imunogênico em quem não está doente, embora esteja à risco mediano de adoecer.
De outro lado, a questão de não usar (ou protelar) um produto disponível em grupos com alto risco de adoecer.
Em função disso, tais estudos, na circunstância de hoje, exigem delineamento sequencial, para que sejam interrompidos no momento que já se detecte a proteção – ou alguma reação inesperada.
Por fim, a melhor estratégia para um país que tem ainda uma incidência alta da doença, seriam estudos comparativos entre as vacinas disponíveis concomitantes. Mas, aí, a cooperação proclamada para fazê-la um bem global seria bem mais profunda e racional.
(*) Epidemiologista, professor emérito e Assessor de Cooperação Internacional da ENSP/Fiocruz.
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