(HP 12/03/2012)
Mikis Theodorakis é, provavelmente, a maior personalidade grega dos tempos atuais. Falando aos seus compatriotas da ilha de Quios – onde nasceu – em 2005, ele assim se definiu: “minha vida tem sido compartilhada entre a música e as ideias. Entre a Cultura e a luta por um melhor amanhã. Meu arsenal ideológico pode ser resumido em três palavras: liberdade, paz e cultura, que representam o objetivo das lutas do povo, em todo o mundo, dos tempos antigos até estes dias”.
É espantoso – obra de titã, como diziam os gregos antigos – como Theodorakis conseguiu realizar uma copiosa e altamente admirada obra musical e ao mesmo tempo participar de todas as lutas de seu povo e da Humanidade desde a II Guerra Mundial.
Membro da Resistência Grega contra a ocupação nazista, preso pela Gestapo e torturado barbaramente, outra vez durante a Guerra Civil de 1946-1949 – quando foi deportado e outra vez torturado, duas vezes enterrado vivo – e também durante a ditadura fascista que a CIA instalou na Grécia em 1967, quando combateu na clandestinidade até sua prisão e envio a um campo de concentração, duas vezes eleito deputado, ministro de Estado, mesmo assim Theodorakis empreendeu uma obra musical tão original e de evidente talento que Darius Milhaud propôs seu nome como o melhor compositor da Europa.
É quase um mistério como um homem que participou de todas as lutas – e como dirigente delas – dos últimos 70 anos, conseguiu compor sete sinfonias, três rapsódias, dois concertos para piano e orquestra, três suítes orquestrais, 18 obras de música de câmara, sete cantatas e oratórios, oito hinos, oito balés, cinco óperas, doze trilhas sonoras para tragédias gregas, onze peças teatrais musicais, sete trilhas para peças clássicas, dezoito trilhas musicais para filmes – inclusive “Zorba, o grego”, “Atas de Marúsia”, “Serpico” e “Z” – e paramos por aqui, ainda que a lista esteja muito incompleta.
Pois este homem notável, recentemente, após lançar seu manifesto (ver HP 17/02/2012) sobre a situação atual do seu país, assinado junto com Manolis Glezos – outro herói grego, este o que arrancou a bandeira nazista da Acrópole, em 1941 -, escreveu outro texto, também sob a Grécia atual. É este outro texto que hoje oferecemos aos nossos leitores.
C.L.
MIKIS THEODORAKIS
Há uma conspiração internacional cujo objetivo é dar no meu país o golpe de misericórdia. O assalto começou em 1975, contra a cultura grega moderna, e depois continuou com a desagregação da nossa história recente e da nossa identidade nacional e, agora, trata-se de exterminá-lo fisicamente com o desemprego, a fome e a miséria. Se os gregos não se levantarem para detê-los, o risco de extinção da Grécia é real. Isso pode acontecer nos próximos dez anos. A única coisa que sobraria ao nosso país seria a lembrança da nossa civilização e nossas lutas pela liberdade.
Até 2009, a situação econômica na Grécia não era muito grave. Feridas grandes de nossa economia eram os gastos militares excessivos e a corrupção de uma parte do mundo político, financeiro e da mídia. Mas também são responsáveis alguns países estrangeiros, incluindo Alemanha, França, Inglaterra e EUA, que ganharam bilhões de euros à custa da nossa riqueza nacional com a venda, a cada ano, de equipamento militar. Esta constante hemorragia nos impediu de avançar enquanto enriquecia os outros países. O mesmo pode ser dito no que se refere ao problema da corrupção. Por exemplo, a empresa alemã Siemens tinha uma agência especial dedicada a corromper os gregos a fim de que eles dessem preferência aos seus produtos em nosso mercado. Assim, temos sido vítimas desse duo de predadores, alemães e gregos, que ficaram ricos às custas do país.
É óbvio que estas duas grandes feridas poderiam ter sido evitadas se os líderes de ambos os partidos políticos pró-ianques não se tivessem deixado corromper. Essa riqueza, produto do trabalho do povo grego, foi drenada para o exterior e os políticos tentaram compensar as perdas através de empréstimos excessivos que levaram a uma dívida de 300 bilhões de euros, 130% do PIB.
Com um esquema assim, os estrangeiros ganharam duas vezes: primeiro com a venda de armas e de seus produtos e, segundo, com juros sobre o capital emprestado ao governo, e não ao povo grego que, como vimos, foi a principal vítima em ambos os casos. Um único exemplo será suficiente para provar isso: em 1986, o governo de Andreas Papandreou pediu emprestado um bilhão de dólares a um banco de um grande país europeu. Os juros sobre esse empréstimo terminaram de ser pagos em 2010 e ascenderam a 54 bilhões de euros!
No ano passado, o presidente do Eurogrupo Jean-Claude Juncker disse estar consciente da fuga maciça de capitais que ocorreu na Grécia, devido ao alto custo de equipamentos militares, comprado principalmente da Alemanha e da França. Ele acrescentou que havia concluído que os fabricantes de armas estavam nos levando ao desastre certo. No entanto, ele confessou que não fez nada para se contrapor a isso… para não prejudicar os interesses de países amigos!
Em 2008, a grande crise econômica chegou à Europa. A economia grega não escapou dela. No entanto, o padrão de vida, que até então tinha sido bastante elevado (a Grécia foi classificado entre os 30 países mais ricos do mundo), ficou praticamente inalterado, apesar do aumento da dívida pública. A dívida pública não se traduz necessariamente em uma crise econômica. Estima-se que a dívida de países importantes como EUA e Alemanha é de centenas de bilhões de euros. Os fatores determinantes são o crescimento econômico e a produção. Se ambos são positivos, é possível obter empréstimos bancários a uma taxa inferior a 5% até que a crise passe.
Em novembro de 2009, quando George Papandreou assumiu o poder, estávamos exatamente nessa posição. Para entender o efeito da sua política desastrosa, mencionarei apenas duas taxas: em 2009, o PASOK de Papandreou obteve 44% dos votos. Agora, as pesquisas não dão mais do que 6%.
Papandreou poderia ter enfrentado a crise econômica (que era um reflexo da Europa) com empréstimos bancários de juros normais, ou seja, abaixo de 5%. Se o tivesse feito, o nosso país não teria tido problemas. Como estávamos em uma fase de crescimento econômico, nosso padrão de vida teria melhorado.
Mas no verão de 2009, quando Papandreou reuniu-se secretamente com Strauss-Kahn para colocar a Grécia sob a tutela do FMI, já tinha iniciado a sua conspiração contra o povo grego. Foi o próprio ex-diretor do FMI quem fez esta revelação.
Para alcançar este objetivo, foi necessário para forjar a situação econômica do nosso país para que os bancos estrangeiros se assustassem e aumentassem para níveis proibitivos das taxas de juro sobre os empréstimos. Aquela custosa operação teve início com o aumento artificial no déficit público de 12% para 15% para o ano de 2009 [Andrew Georgiu, Presidente do Conselho de Administração do Instituto Nacional de Estatística, ELSTAT, decidiu subitamente em 2009, sem o consentimento do seu Conselho de Administração, incluir no cálculo do déficit algumas organizações e empresas que nunca foram tidos em conta em qualquer outro país europeu com exceção da Noruega, com o objetivo de que o déficit da Grécia ultrapassasse o da Irlanda (14%), para tornar o nosso país no elo mais fraco da Europa, nota do tradutor Manuel Talens] Devido a esse aumento artificial do déficit, o procurador da República, Grigoris Peponis, indiciou, há três semanas, Papandreou e Papakonstantinu (seu ex-ministro da Fazenda).
Em seguida, Papandreou e seu ministro da Fazenda lançaram uma campanha difamatória que durou cinco meses, durante os quais ele tentou convencer os estrangeiros de que a Grécia, como o Titanic, estava afundando e que os gregos são corruptos, preguiçosos e incapaz de atender às necessidades do país. As taxas de juros subiam depois de cada uma de suas declarações e tudo isso contribuiu para que a Grécia deixasse de poder tomar empréstimos, e para a nossa adesão aos ditames do FMI e do Banco Central Europeu converter-se em uma operação de resgate que realmente é o início do nosso fim.
Em maio de 2010, o ministro da Fazenda assinou o Memorando, ou seja, a submissão da Grécia aos nossos credores. De acordo com a legislação grega, a adoção de tal acordo deve ser apresentada ao Parlamento e precisa da aprovação de três quintos dos deputados. Isso significa que tanto o memorando como a troica que nos governa são ilegais, não só do ponto de vista da legislação grega, mas também da europeia.
Desde então, se acreditarmos que a nossa jornada para a morte é uma escada de vinte degraus, já percorremos mais da metade do caminho. O memorando dá aos estrangeiros a nossa independência nacional e a propriedade da nação, ou seja, nossos portos, aeroportos, estradas, eletricidade, água, todos os recursos naturais (subterrâneos e submarinos), etc. A estes devemos acrescentar os nossos monumentos históricos, como a Acrópole, Delfos, Olímpia, Epidauro e outros, já que decidimos não fazer valer nossos direitos.
Produção diminuiu, a taxa de desemprego aumentou para 18%, 800.000 negócios, milhares de fábricas e centenas de artesãos fecharam. Um total de 432.000 empresas foram à falência. Dezenas de milhares de jovens cientistas estão deixando o nosso país, que se afunda cada vez mais nas trevas da Idade Média. Milhares de pessoas que tinham uma boa posição até recentemente agora procuram comida nas latas de lixo e dormem nas calçadas.
Enquanto isso, supõe-se que devemos viver graças à generosidade de nossos credores, os bancos europeus e o FMI. Na verdade, todo o pacote de dezenas de bilhões de euros que chega à Grécia regressa em seguida para os nossos credores, enquanto que nos endividamos cada vez mais por causa de taxas de juros insuportáveis. E como é necessário manter a função do Estado, hospitais e escolas, a tróica impõe impostos exorbitantes para a classe média baixa da nossa sociedade que levam diretamente à fome. A última vez que tivemos uma situação de fome generalizada no nosso país foi no início da ocupação alemã em 1941, com quase 300.000 mortes em apenas seis meses. Hoje, o espectro da fome retorna ao nosso infortunado e caluniado país.
Se a ocupação alemã custou aos gregos um milhão de mortes e a destruição total de nosso país, como podemos aceitar as ameaças de Merkel e a intenção alemã de impor uma nova Gauletier *, que desta vez irá amarrar?
A ocupação alemã de 1941 até outubro de 1944, mostrou o quanto a Grécia é um país rico e como os gregos são trabalhadores e estão conscientes de seu compromisso com a liberdade e o amor por seu país.
Quando a SS e a fome mataram um milhão de pessoas e a Wehrmacht destruiu nosso país, confiscou toda a produção agrícola e o ouro dos bancos, os gregos foram capazes de sobreviver através do Movimento Nacional de Solidariedade e de um exército de 100 000 guerrilheiros que imobilizou 20 divisões alemãs em nosso país.
Ao mesmo tempo, os gregos não só sobreviveram graças a sua diligência no trabalho, mas sob as duras condições de ocupação, graças ao grande desenvolvimento da arte grega moderna, especialmente nos campos da literatura e da música.
A Grécia escolheu o caminho do sacrifício pela liberdade e a sobrevivência, ao mesmo tempo.
Fomos atacados, respondemos com a solidariedade e a resistência e sobrevivemos. Agora fazemos exatamente o mesmo, sabendo que o povo grego, com o tempo, vencerá. Esta mensagem é endereçada a Merkel e ao ministro da Fazenda alemão, Wolfgang Schäuble, e enfatiza que ainda sou um amigo do povo alemão e um grande admirador de sua contribuição à ciência, filosofia, arte e, em particular, à música. A melhor prova disso é que eu confiei toda minha obra musical em duas editoras alemãs, Breitkopf e Schott, que estão entre as maiores editoras do mundo e as minhas relações com eles são cordiais.
Hoje ameaçam nos excluir da Europa. Se eles não nos querem uma vez, nós não queremos dez vezes fazer parte da Europa de Merkel e Sarkozy.
Hoje, domingo 12 de fevereiro, Manolis Glezos – o herói que arrancou a suástica da Acrópole e com isso deu o sinal que marcou o início não só da resistência grega, mas também resistência europeia contra Hitler – e eu vamos participar de uma manifestação em Atenas. Nossas ruas e praças encher-se-ão com centenas de milhares de gregos que expressam a sua ira contra o governo e a troica.
Ontem ouvi o nosso primeiro-ministro banqueiro, quando, dirigindo-se ao povo disse que nós quase chegamos ao fundo do poço. Mas quem nos levou para esse fundo em dois anos? São os mesmos, em vez de estar na cadeia, ameaçam os deputados com a votação de um novo Memorando pior que o anterior. Por quê? Porque é isso que o FMI e o Eurogrupo nos obrigam a fazer com ameaças: se não obedecermos será a falência… A situação é totalmente absurda. Grupos gregos e estrangeiros que nos odeiam e são o os únicos responsáveis pela situação em que está nosso país nos ameaçam e chantageiam para continuarem nos destruindo até a nossa extinção definitiva.
Durante séculos temos sobrevivido em condições muito difíceis. E agora não só sobreviveremos, mas ressuscitaremos se nos levassem pela força até o penúltimo degrau da escada que conduz à morte.
Neste momento dedico todas as minhas forças para unir os gregos. Tento convencê-los de que a tróica e o FMI não são uma rua de mão única. Há outra solução: alterar a orientação da nossa nação. Pactuemos uma cooperação econômica com a Rússia para nos ajudar a valorizar a riqueza do nosso país em termos favoráveis a nossos interesses nacionais.
Proponho que deixemos de comprar equipamento militar alemão e francês. Vamos fazer tudo que pudermos para que a Alemanha pague as reparações de guerra que nos deve, a qual, com juros, totaliza 500 bilhões de euros.
A única força capaz de fazer essas mudanças revolucionárias é o povo grego em uma frente unida de resistência e de solidariedade para expulsar do país a tróica (FMI e os bancos europeus). Ao mesmo tempo, declaremos nulos e sem efeito todos os atos ilegais, empréstimos, dívidas, juros, impostos e compras de bens públicos. Claro, seus parceiros gregos, que nosso povo já condenou como traidores, receberão a punição que merecem.
Vivo totalmente centrado nesse objetivo (a união das pessoas em uma Frente) e tenho certeza de que vamos conseguir. Eu lutei com as armas na mão contra a ocupação nazista. Conheci os calabouços da Gestapo. Fui condenado à morte pelos alemães e sobrevivi milagrosamente. Em 1967, fundei a Frente Patriótica (Patriotikò Mètopo, PAM), a primeira organização de resistência contra a junta militar. Lutei na clandestinidade. Fui preso e encarcerado no “matadouro” da Polícia da Junta. Mas eu continuo aqui.
Tenho 87 anos e é muito provável que no dia da salvação da minha pátria querida eu não esteja entre vós. Mas eu vou morrer com a consciência tranquila, porque cumprirei até o fim o meu dever para com os ideais de liberdade e de direito.
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