
Carta que fez a Academia sair da indiferença foi subscrita por 700 astros do cinema e profissionais de Hollywood, solidários com Hamdan Ballal, torturado em base militar israelense. A declaração conjunta denuncia como “indefensável reconhecer um filme com um prêmio na primeira semana de março e, em seguida, deixar de defender seus cineastas apenas algumas semanas depois.”
A Academia do Oscar, que organiza a principal premiação cinematográfica norte-americana, pediu desculpas por sua omissão diante do linchamento e prisão sofridos pelo cineasta palestino Hamdan Ballal, premiado há 23 dias com o Oscar de melhor documentário por “Sem Chão”, que registra a resistência palestina na Cisjordânia aos colonos e soldados da ocupação, e expressou afinal sua solidariedade. A manifestação anterior da Academia sequer mencionava o nome do cineasta e do documentário vencedor do Oscar e fazia uma “condenação” da violência absolutamente desdentada e genérica.
“Na quarta-feira, enviamos uma carta em resposta a relatos de violência contra o vencedor do Oscar Hamdan Ballal, codiretor de No Other Land, conectado à sua expressão artística”, manifestaram-se a presidente da Academia, Janet Yang, e o presidente-executivo, Bill Kramer, em mensagem aos membros. “Lamentamos não termos reconhecido diretamente o Sr. Ballal e o filme pelo nome.”
“Pedimos sinceras desculpas ao Sr. Ballal e a todos os artistas que não se sentiram apoiados por nossa declaração anterior e queremos deixar claro que a Academia condena a violência desse tipo em qualquer lugar do mundo. Abominamos a supressão da liberdade de expressão em quaisquer circunstâncias”, eles acrescentaram.
Ballal, que filmava na segunda-feira (24) uma incursão, em sua própria localidade, de colonos israelenses sob escolta de soldados da ocupação, foi linchado e em seguida sequestrado e levado para uma base militar, onde voltou a ser espancado e torturado. Sua advogada só conseguiu localizá-lo 12 horas depois, quando a denúncia feita pelo codiretor do documentário, o judeu Yuval Abraham, gerava comoção no mundo inteiro.
A mudança de comportamento da Academia do Oscar se deveu à repercussão de uma carta, assinada por 700 astros do cinema e profissionais da sétima arte, repudiando o silêncio e exigindo uma resposta à altura, bem como à crítica manifestada pelo codiretor do documentário premiado, o israelense Yuval Abraham.
Entre os signatários, estão nomes como Joaquin Phoenix, Mark Ruffalo, Olivia Colman, Javier Bardem, Penélope Cruz e Emma Thompson.
“Nós condenamos o ataque brutal e a detenção ilegal do cineasta palestino ganhador do Oscar Hamdan Ballal por colonos e forças israelenses na Cisjordânia”, diz a carta dos astros e profissionais de Hollywood.
“Como artistas, dependemos de nossa capacidade de contar histórias sem represálias. Os documentaristas frequentemente se expõem a riscos extremos para esclarecer o mundo. É indefensável para uma organização reconhecer um filme com um prêmio na primeira semana de março e, em seguida, deixar de defender seus cineastas apenas algumas semanas depois.”
Declaração que também foi assinada por brasileiros votantes no Oscar: Alice Braga, Lais Bodanzky, Pedro Kos, Rodrigo Teixeira, Maria Augusta Ramos, Anna Muylaert, Paula Barreto, Alê Abreu, Petra Costa, Daniel Rezende, Sara Silveira e Vania Catani.
A meia-volta de Yang e Kramer foi precedida por uma reunião de governadores da Academia, diante da péssima repercussão da nota anterior.
É possível que o enfoque inicial visasse apaziguar círculos do governo Trump, que vêm apostando em uma caça às bruxas a todos os que denunciam o genocídio e a limpeza étnica perpetrados por Israel, o que cinicamente chamam de “antissemitismo”, como visto nos últimos dias em algumas das maiores universidades dos EUA.
A bem dizer, o espancamento, prisão e tortura do codiretor palestino constituem, exatamente, a reiteração daquilo que o documentário tratou e denunciou, fazendo jus ao Oscar. O que agora acabou sendo endossado, pelo menos também acatado, pelos mais altos círculos da Academia.
“VINGANÇA PELO NOSSO FILME”
Ballal foi agredido por soldados e colonos judeus na porta de sua casa na manhã de segunda-feira (24) depois de ter feito duas tomadas para documentar um ataque de colonos a sua aldeia, Susya.
Em entrevista ao jornal inglês The Guardian, Ballal relatou que foi espancado por soldados da ocupação durante a detenção. “Foi uma vingança pelo nosso filme”, disse ao Guardian. “Ouvi as vozes dos soldados, eles estavam rindo de mim… ouvi [a palavra] ‘Oscar’.”
Ballal só foi liberado pelo exército israelense na terça-feira (25), diante da repercussão, no mundo inteiro, da denúncia do linchamento e sequestro de Ballal feita pelo codiretor Abraham.
Ainda ao Guardian, Ballal disse que “os soldados apontaram seus rifles para mim, enquanto o colono por trás começou a me bater. Eles me jogaram no chão, e o colono começou a me bater na cabeça. Em seguida, um soldado também começou a me bater; com a coronha de seu rifle, ele me atingiu na cabeça. Depois disso, ele disparou sua arma para o alto. Não entendo hebraico, mas percebi que ele disse que o próximo tiro de fuzil me atingiria. Naquele momento, achei que ia morrer”.
LINCHAMENTO
À Al Jazeera, após sua libertação, Ballal contou que estava registrando um ataque a uma casa vizinha, onde também se encontrava a ativista israelense pró-palestinos, Anna Lipman, quando sentiu que “os colonos chegavam em maior número e se dirigiam para sua casa”. O cineasta correu e entrou em casa, fechando portas e janelas para proteger sua família. “Quando saí para pedir aos agressores que parassem, comecei a ser agredido”, disse ele.
Hamdan chegou a ser levado para uma ambulância e estava sendo tratado, mas foi arrancado dali por soldados israelenses e sequestrado para um local desconhecido em um veículo militar para um local desconhecido.
A advogada Lea Tsemel levou 12 horas para localizá-lo e soube que Ballal foi algemado e teve os olhos vendados durante toda a noite em uma base militar, enquanto dois soldados o espancavam, depois de atirá-lo ao solo. Da base militar foi levado para a estação de polícia de Kiriat Arba (um bairro de colonos israelenses localizado dentro da cidade árabe de Hebron).
“MÁSCARAS NO ESTILO KU KLUX KLAN”
Abraham, que acompanhou as buscas por Ballal junto com a advogada, relatou pelo X que “alguns dos colonos usavam máscaras no estilo da Ku Klux Klan”.
Basel Adra, que recebeu o Oscar ao lado de Abraham, assinalou que “eram cerca de 20 os colonos que atacaram a aldeia de Hamdan Ballal”. Ele acrescentou que “os soldados que chegavam apontavam suas armas na direção dos palestinos e não dos colonos atacantes”.
O documentário “Sem Chão”, com sua premiação, trouxe a questão do genocídio palestino a uma posição de destaque na cerimônia do Oscar. O filme conta, justamente, a história das dificuldades que Adra enfrenta enquanto documenta a destruição de Masafer Yatta na Cisjordânia ocupada.
A história também mostra sua amizade crescente com o segundo diretor do filme, o jornalista israelense Yuval Abraham, que passa, neste processo, a compreender as restrições, a discriminação que Adra enfrenta e a importância da resistência palestina.
O documentário já havia conquistado outros importantes prêmios. Foi escolhido o melhor documentário no Festival Internacional de Cinema de Berlim, em fevereiro de 2024, e Melhor Filme Não-Ficcional do Círculo de Críticos de Cinema de Nova York.