
Luíz Roberto Barroso, ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), em recente entrevista para o videocast semanal da Folha, ao analisar as “mudanças” ocorridas no mundo do trabalho nos últimos anos, fez algumas afirmações sobre as quais impõem-se também algumas considerações.
Entre outros temas abordados, disse o magistrado do alto da presidência que exerce na mais alta corte judiciária do País:
“Aquela ideia do trabalhador celetista, metalúrgico, empregado, que cumpre oito horas regularmente, já não é mais, talvez, a dominante no mercado de trabalho hoje, em que você tem pequenos empreendedores individuais, entregadores do iFood, motoristas de Uber”.
“O mercado mudou e a terceirização se impôs como uma opção. De modo que, melhor do que ter uma terceirização que passasse abaixo do radar do direito e da legislação, nós estabelecemos a sua legitimidade, cumpridas determinadas regras. Eu mesmo fui o relator e acho que fizemos muito bem”.
“Também acho que fizemos bem em validar a reforma trabalhista. São diferentes visões de mundo que a gente deve respeitar, mas, depois da validação da reforma trabalhista pelo Supremo, creio que não por acaso temos hoje o menor índice de desemprego no país nos últimos 40 anos. Não é desimportante esta estatística e acho que algum grau de correlação é possível fazer”.
“Na minha visão, que é protetiva do emprego e do trabalhador, um pouco menos de proteção favoreceu a formalização do emprego e o incremento da empregabilidade. Outras pessoas, e eu respeito, têm uma visão ideológica de aumentar a proteção. Mas eu acho que, em certos casos, o excesso de proteção desprotege”.
Na visão do ministro, então, a “ideia dominante”, hoje, no mercado de trabalho já não é mais aquela ancorada na CLT, retalhada e espezinhada pelos ventos neo e ultraliberais soprados pelo Consenso de Washington que varreram o Brasil e a América Latina a partir dos anos 90, mas sim os “empreendedores individuais, entregadores do iFood e motoristas de Uber”.
Pelas suas palavras, o país tem que se conformar com essa “ideia dominante” que capturou e subjugou diferentes governos, à extrema direita, à direita, ao centro e, até, alguns que se apresentaram à esquerda.
E mais: temos que considerar os tais “empreendedores individuais, entregadores do iFood e motoristas de Uber” os protagonistas dessa “ideia dominante”, ou seja, os principais atores do mercado de trabalho, e não o velho metalúrgico, como foi o presidente Lula um dia.
A partir de sua lógica, o Brasil, cujo mercado de trabalho já é formado por 50% de informais, ou seja, desse trabalhador que, na ausência de um emprego seguro e decente, tem que buscar o sustento de suas famílias em qualquer tipo de atividade precária – e que é classificado como “empregado” pelos critérios oficiais -, deve considerar que essa é uma tendência inevitável, como inevitável é a superação da legislação que o protege, pois, afinal, na avaliação de Barroso, a proteção desprotege o trabalhador.
O ministro, estudioso como diz que é, deveria, antes dos flagrantes equívocos exibidos na entrevista, ter recorrido a alguns autores que estudaram o papel do trabalho e dos direitos dos trabalhadores ao longo dos 50 anos em que o Brasil exibiu o mais robusto crescimento e desenvolvimento econômico e social dos países ocidentais, de 1930 a 1980. E, mesmo depois, quando a economia passou a cambalear e a indústria perdeu seu crescente peso no PIB, o papel que a aludida proteção continuou desempenhando para o equilíbrio social e a mitigação das crônicas desigualdades.
Quem o magistrado considera que a legislação deveria “proteger” em um país capitalista como o nosso, e mais, em um país capitalista dependente e ainda não desenvolvido plenamente: os brasileiros que têm na força de trabalho seu único bem ou os poucos detentores do capital que tudo têm? E têm, cada vez mais, em face do hegemonismo do setor e da lógica rentista na economia…
É verdade, sr. ministro, o mercado mudou, mas não por uma opção do trabalhador, e a terceirização ou a pejotização não foram uma “imposição” dessa mudança, muito menos uma escolha de quem trabalha, mas, sim, uma opção política que está trazendo graves consequências para o mundo do trabalho.
A contrarreforma trabalhista de Temer em 2017, entre outros retrocessos de menor porte no período anterior, na esteira da desindustrialização e da reprimarização da economia nacional, foi o que “impôs” e agravou brutalmente essa “mudança” com os seus contratos temporários, intermitentes, entre outras formas de precarização do trabalho, aviltando os salários e desprotegendo quem só possui a sua força de trabalho para sobreviver.
Sob essa ótica, realmente, o ministro tem razão ao destacar o papel da contrarreforma trabalhista de 2017, validada pelo Supremo que preside, na geração do “menor índice de desemprego dos últimos 40 anos”.
Mas, que “emprego” é esse exaltado pelo ministro como algo positivo para o trabalhador e, consequentemente, para a economia brasileira?
O “emprego” do entregador do iFood, do motorista de aplicativos, do operador de call-center, entre outros semi-escravizados por patrões desconhecidos, que vivem sob uma insegurança permanente, colocando sua saúde e a vida em risco em jornadas extenuantes e intermináveis, sem uma renda estável, quando ela acontece, e, o que é mais grave, sem nenhuma perspectiva de futuro?
Ou dos milhões de “empreendedores” que estão nas ruas ou nas redes sociais todos os dias, 7 dias na semana, para vender alguma coisa e alimentar suas famílias?
Esse é o novo modelo de “mercado de trabalho” que Barroso e outros ministros deram “legalidade”, “legitimando”, na palavra dele próprio, as excrescências que saíram do Planalto, passaram por um Parlamento de maioria servil, depois de terem sido paridas pelo grande capital.
Para quem preside a suprema corte do País, também faltou um pouco de atenção a alguns dados da realidade absolutamente objetivos, produzidos pela tão acalentada “reforma” no mundo do trabalho, cujo pretexto foi a “modernização” da legislação trabalhista e a geração de empregos. Estão aí, realmente, os tais empregos prometidos pela (mal) dita “reforma”.
Seria necessário, no entanto, um outro artigo para listar os inúmeros retrocessos acumulados desde então e que já foram objeto de inúmeros estudos, comprovando, com base em dados estatísticos, o aumento brutal da precarização, a supressão dos direitos trabalhistas, a quase vedação do acesso à Justiça do Trabalho, a ampliação das desigualdades no mercado de trabalho e o desmantelamento material e político das entidades sindicais, fator indispensável a qualquer sociedade que se pretenda democrática.
A questão da “terceirização”, sob análise hoje no STF, foi provocado por organizações sindicais depois que o tribunal, por decisão própria, invadiu e se apropriou da competência do Tribunal Superior do Trabalho (TST), reforçando a licitude dessas práticas nas atividades-fim, tanto nas empresas públicas como privadas, e suspendendo todas as ações envolvendo o tema da “pejotização”.
Com isso, o Supremo manteve a inexistência de um regramento legal mínimo para essa outra excrescência, que é a possibilidade de uma empresa, pública ou privada, terceirizar sua atividade-fim, o que era permitido apenas à atividade-meio. A prática tornou-se tão nociva que hoje é muito comum a presença de trabalhadores na mesma empresa exercendo a mesma função, mas com remunerações e direitos diferenciados, classificados em categorias de 1ª e 2ª classe, graças a essa decisão do STF que “validou”, de novo, na palavra do próprio Barroso, algo comprovadamente degradante para o trabalhador terceirizado.
Já a chamada “pejotização” tem sido um recurso utilizado frequentemente por empregadores especializados em burlar as leis trabalhista, previdenciária e tributária. Com isso, impõem ao trabalhador a condição de patrão de si próprio, privando a ele direitos que ainda não lhe arrancaram, como salário digno, férias, descanso remunerado, FGTS, aposentadoria, entre outros, e sonegando os impostos devidos dessa relação que deveria ser de emprego, e não de prestação de serviços, como buscam caracterizar os espertalhões.
Em resumo, a jurisprudência do STF já se consolidou quanto à validade da terceirização em atividades-fim e à legalidade da pejotização, conferindo novos contornos às relações de trabalho no Brasil, contornos que seguem a mesma lógica imposta pelo chamado “mercado”, que parece ter abduzido Barroso e outros que se somam e se somaram a ele nessa míope visão da realidade dessas relações.
Não por outro motivo, o Supremo enfrenta crescentes e justas críticas pelo nefasto esvaziamento das prerrogativas da Justiça do Trabalho, desde o mês de abril, principalmente, quando outro ministro, Gilmar Mendes, na mesma toada de seu colega, suspendeu todos os processos relativos à pejotização, dificultando, no caso, a responsabilização do setor público em reclamações trabalhistas de terceirizados.
“Acho que, em certos casos, o excesso de proteção desprotege”, fraseou elegantemente o ministro na mesma entrevista, enquanto excedem decisões ou omissões que, ao desproteger o trabalhador, o torna prisioneiro do “mercado”, ou, em melhor e bom português, dos donos capital, a quem, na prática, o magistrado e os que o acompanham nessa visão, estão servindo, ainda que involuntariamente.
Acorda, Barroso! Ocupe apenas um dia de suas tarefas para conhecer o que acontece na vida real desse mundo do trabalho cuja idealização está afetando seriamente o trabalhador brasileiro.
Já diz o ditado, onde não há lei, impera a anarquia, no caso, aquela que sacrifica os mais desprotegidos, principalmente em se tratando de uma sociedade de classes e ainda muito desigual como a nossa.
Um juiz deveria ser o primeiro a pregar e proclamar esse que é um primado da lei e, principalmente, da justiça, razão da existência de um tribunal como a suprema corte brasileira.
MARCO CAMPANELLA