
“Cineasta dos sonhos interrompidos’, Silvio Tendler deixou um legado de mais de 80 filmes que contaram a história política do Brasil
O Brasil perdeu nesta sexta-feira (5), Silvio Tendler, um dos mais renomados documentaristas do mundo. Aos 75 anos, e em atividade há mais de quatro décadas, ele foi vítima de uma infecção generalizada. O cineasta estava internado no Hospital Copa D’Or, em Copacabana, Zona Sul do Rio. O enterro acontecerá no domingo (7), no Cemitério Comunal Israelita do Caju, na Zona Portuária carioca.
Autor de mais de 80 filmes, entre curtas, médias e longas-metragens, Tendler ajudou a contar a história política do Brasil através de documentários como “Os anos JK – Uma trajetória política” (1981), “Jango” (1984), “Marighella, retrato falado do guerrilheiro” (2001), “Tancredo: A travessia” (2010), dentre tantas outras obras primas brasileiras.
Tendler era considerado um dos maiores documentaristas do Brasil e, por isso, era chamado de “cineasta dos sonhos interrompidos”.
A obra sobre o ex-presidente João Goulart é, até hoje, uma das maiores bilheterias de documentário no cinema nacional, com 1 milhão de espectadores. Outros longas do gênero considerados de maior sucesso no Brasil também foram produzidos por Tendler. São eles: “O Mundo Mágico dos Trapalhões” (1981), com 1,8 milhão de espectadores, e “Os Anos JK” (1981), com 800 mil espectadores.
Considerado um dos filmes mais importantes da sua trajetória, “Utopia e Barbárie”, retrata a segunda metade do século 20 com imagens de arquivos e perspectivas de nomes relevantes do período, como Augusto Boal, Eduardo Galeano e Susan Sontag. O longa levou cerca de 20 anos para ser concluído.
Tendler era natural do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1950. No fim dos anos de 1960, ele passou a se dedicar ao cinema e, para escapar da ditadura militar, procurou exílio no Chile, de onde se mudou para a França em meados de 1970. Na capital Paris, Silvio estudou história e cinema.
Quando retornou ao Brasil, se tornou professor na PUC-Rio e fundou a produtora Caliban, em 1976. O selo se tornou um dos principais nomes do cinema documental brasileiro, com mais de 80 títulos.
Também foi professor da PUC-Rio e um dos fundadores, em 1985, da Fundação do Novo Cinema Latino-Americano, que reuniu grandes nomes como Gabriel García Márquez e Fernando Birri.
O do meio de três irmãos (o engenheiro Sérgio Tendler, o mais velho, e o artista plástico Sidnei Tendler, o caçula), o cineasta também se interessou em registrar as histórias de vida de importantes nomes da arte brasileira. Realizou os documentários “Castro Alves – Retrato falado do poeta” (1999), “Glauber, labirinto do Brasil” (2003) e “Ferreira Gullar – Arqueologia do poeta” (2019).

Silvio costumava dizer: “O meu cinema é uma tentativa de participar das lutas políticas por transformação. Faça do cinema uma arma de luta, uma arma de reflexão, uma arma de pensamento.” Essa foi a marca de sua obra: um cinema comprometido com a memória e com o futuro, que jamais se rendeu ao esquecimento.
Na década de 1990, atuou também na esfera pública, como Secretário de Cultura e Esporte do Distrito Federal, e trabalhou com a Unesco na articulação da indústria audiovisual no Mercosul. Em reconhecimento à sua trajetória, recebeu a Ordem de Rio Branco, em 2006, e, mais recentemente, em maio de 2025, foi condecorado pelo governo federal com a Ordem do Mérito Cultural. Ao longo da carreira, acumulou mais de 60 prêmios em festivais nacionais e internacionais.
“Silvio será sempre lembrado pelo espírito combativo, pelo cinema aguerrido, e pela defesa de uma sociedade mais justa e igualitária. Foi um dos pioneiros de um cinema de arquivo entre nós, com dois clássicos absolutos: “Os anos JK” e “Jango”, sua obra-prima”, comenta Hernani Heffner, gerente da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio.

Em 2023, Tendler lançou o documentário “O futuro é nosso!”, feito a partir de entrevistas por videoconferência realizadas durante a pandemia, com a participação de nomes como o cultuado cineasta britânico Ken Loach. Conhecido como o “o cineasta dos vencidos”, o diretor assinou o longa como “um filme utópico de Silvio Tendler”.
“O (diplomata) Arnaldo Carrilho, meu amigo, amenizou essa questão dos “vencidos” ao me chamar de “cineasta dos sonhos interrompidos”. Ou seja, tudo recomeça. O título do filme vem da ideia de que, apesar da precarização do trabalho, o movimento sindical não vai desaparecer, e sim se transformar”, disse Tendler em entrevista ao portal o Globo em junho de 2023.
“Silvio Tendler acreditava, com toda a sua vida e obra, no poder transformador da cultura. Seu cinema foi espaço de memória, gesto de esperança, ato de coragem. Ele nos ensinou que cada história contada, cada imagem registrada, sustenta a esperança, mesmo nos tempos mais difíceis. Seu legado é imenso, gerações de cineastas e cidadãos conscientes, e uma obra que permanece como luz, abraço, lição. Silvio nos mostrou que a história não se domina, se atravessa, e que, mesmo quando o mundo pesa, é possível caminhar com coragem, ternura e esperança. Tendler está presente na cultura, na memória, na luta e no coração do Brasil”, ressaltou o presidente da Fundação Casa de Rui Barbosa, Alexandre Santini.

Em 2024, lançou “Ousar Viver! Histórias da Maria” que, a partir do depoimento da militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8), Lúcia Maria Pimentel, que desde jovem atuou no combate à ditadura militar no Brasil, foi presa, esteve na clandestinidade e exilada, tendo atuação marcante nos movimentos sindical e de mulheres, abrindo espaço para a redemocratização
O filme, produzido pelo Instituto Angeli aborda a história de outras mulheres, e resgata, através de suas atuações na vanguarda pela democracia e pelo respeito à vida, a memória coletiva da história do nosso país.
“Sempre digo que não faço cinema para ensinar, faço para aprender. Não tenho nenhum interesse de fazer filmes sobre coisas que já sei. Quando a turma do Angelim propôs o filme da Maria, fiquei um pouco receoso: Será que dá? E aí, na verdade, como me ensinou muito, não dava um filme, mas um filmaço”, afirmou Silvio Tendler.
O filme está disponível no Youtube através do link:
ADMIRAÇÃO
Artistas, intelectuais e lideranças políticas prestaram homenagens a Silvio Tendler. Na rede social X, a ex-deputada federal Manuela d’Ávila lamentou a perda de Silvio e disse que ele foi “um documentarista extraordinário”.
A deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ) enalteceu a contribuição do cineasta para a memória brasileira. “Suas mais de 80 obras são um dos mais refinados exercícios de Memória que o Brasil possui – e lembrar, aprender e refletir sobre o passado é peça-chave para a construção do futuro que Tendler sonhava para o nosso país e nosso povo.”
A atriz Julia Lemmertz publicou, no Instagram, uma mensagem emocionada e destacou a contribuição de Tendler para a memória nacional. “Silvio Tendler se foi, deixando pra nós um legado imenso de documentários sobre a nossa história, um incansável olhar sobre o Brasil e suas batalhas, um homem de um valor imenso não só pro audiovisual, mas pro que nos resta de lucidez pra falar desse país.”
A jornalista Tereza Cruvinel recordou a parceria com o cineasta na TV Brasil, da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). “Afora a admiração por sua obra, guardo a lembrança de boas parcerias que tivemos quando eu presidia a EBC/TV Brasil, que resultaram em obras como as séries Era das Utopias e Advogados contra a ditadura. Silvio era um incansável buscador da verdade.”