“Qual é o plano que Guedes tem para o pós-pandemia? Exatamente o mesmo que ele tinha antes da pandemia, ou seja, a agenda privatização-ajuste fiscal-abertura comercial. O problema é que essa agenda não estava dando certo antes da pandemia, por que razão daria certo no mundo pós Covid-19?”
O economista José Luis Oreiro, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, afirmou, neste domingo (12), em entrevista ao HP, que “no pós-pandemia o Estado será o único agente capaz de puxar o crescimento”.
“A economia brasileira sairá da pandemia com uma enorme capacidade ociosa, com uma taxa de desemprego muito elevada e com empresas altamente endividadas. Nessas condições não devemos esperar que o crescimento seja liderado pelo consumo e pelo investimento do setor privado nacional”, alerta o professor.
HORA DO POVO – As medidas tomadas pelo governo até agora para enfrentar a crise são suficientes para superar a queda da atividade econômica, que já vinha antes, mas foi agravada pela pandemia?
JOSÉ LUIS OREIRO – Antes de mais nada temos que deixar claro que é impossível evitar a queda de atividade econômica decorrente das medidas de distanciamento social para evitar/retardar o contágio pelo coronavírus, tudo o que o governo pode fazer é (i) reduzir a queda de demanda agregada por intermédio de políticas de transferência de renda para os trabalhadores informais e de manutenção dos empregos e da renda dos trabalhadores formais e (b) socorrer as empresas do setor privado, principalmente as pequenas e médias empresas com crédito a juros baixos e elevado prazo de carência para evitar uma onda de falência de empresas. O programa de renda emergencial, iniciativa do Congresso Nacional, foi bem sucedido em preservar a renda dos trabalhadores informais e das parcelas mais vulneráveis da população brasileira, e precisa ser mantido ao menos até o início de outubro de 2020 para evitar um colapso da demanda agregada no último trimestre do ano. A grande lacuna tem sido o crédito para as empresas PME’s. Os programas lançados pelo governo até agora não têm sido efetivos no sentido de proporcionar crédito às pequenas e médias empresas. Teremos um tsunami de falência de empresas no segundo semestre, o que terá um impacto muito negativo sobre o emprego e a renda em 2021.
HP – O Estado, em sua opinião, tem condições de puxar o crescimento econômico no pós-pandemia? De que forma?
JOSÉ LUIS OREIRO – No pós-pandemia o Estado será o único agente capaz de puxar o crescimento. A economia brasileira sairá da pandemia com uma enorme capacidade ociosa, com uma taxa de desemprego muito elevada e com empresas altamente endividadas. Nessas condições não devemos esperar que o crescimento seja liderado pelo consumo e pelo investimento do setor privado nacional. O setor privado estrangeiro não terá interesse em investir num país cuja imagem no mundo é a pior possível devido à política ambiental do governo e ao tratamento dado a questão dos direitos humanos. O comportamento negacionista do Presidente da República durante a Pandemia contribuiu muito para piorar a imagem do país no exterior. Nessas condições os investidores estrangeiros, notadamente os investidores institucionais que estão sujeitos a regras estritas de compliance em seus países, não vão colocar um centavo num país que é visto como sendo governado por bárbaros. Sendo assim, ou o Estado brasileiro puxa o crescimento por intermédio de um programa vigoroso de investimentos em infraestrutura ou ficaremos numa situação de estagnação econômica por anos a fio.
Ou o Estado brasileiro puxa o crescimento por intermédio de um programa vigoroso de investimentos em infraestrutura ou ficaremos numa situação de estagnação econômica por anos a fio
HP – Como aumentar os investimentos públicos? O governo diz que não pode gastar mais, vai estourar a dívida pública. Alguns economistas defendem o endividamento junto ao mercado financeiro, outros através da emissão de moedas. Qual sua opinião?
JOSÉ LUIS OREIRO – Para aumentar os investimentos públicos é preciso abrir espaço no orçamento. Hoje o maior entrave ao aumento do investimento público é a restrição auto-imposta do teto de gastos. Quando a EC 95 foi aprovada em 2016 qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento de contas públicas sabia que o mesmo era inviável. Isso porque não faz sentido congelar a despesa primária total em termos reais até 2026 se a despesa previdenciária, mesmo depois da reforma da previdência, cresce 3% a.a. Além disso como a população brasileira cresce 0,8% a.a, congelar a despesa primária em termos reais significa reduzir a despesa primária per-capita. Isso só faria sentido num país em que houvesse um suprimento adequado de serviços públicos (saúde, educação, segurança) e de infraestrutura. Claramente não é o caso do Brasil . Desde 2017 que o crescimento da despesa previdenciária e com os salários dos servidores públicos tem reduzido o espaço para o investimento no orçamento do governo. Os economistas liberais afirmam que a solução é rever as despesas obrigatórias, ou seja, reduzir os serviços públicos ofertados a população por intermédio da redução da jornada de trabalho dos servidores públicos. Cria-se assim um conflito distributivo artificial entre serviços públicos e investimento em infraestrutura que só existe num mundo estático onde os recursos estão plenamente utilizados e onde a capacidade de produção não pode se expandir. O problema é que desde 2014 que a economia brasileira opera com uma enorme capacidade ociosa, a qual será ainda maior depois da Pandemia. Nesse contexto é possível aumentar os gastos com serviços públicos e o investimento em infraestrutura, sem reduzir o espaço para o aumento do gasto do setor privado. O que está impedindo isso é apenas uma restrição legal que é a EC 95.
É possível aumentar os gastos com serviços públicos e o investimento em infraestrutura, sem reduzir o espaço para o aumento do gasto do setor privado. O que está impedindo isso é apenas uma restrição legal que é a EC 95
Alguns economistas afirmam que o aumento dos investimentos em infraestrutura irá aumentar ainda mais a dívida pública, que será bastante elevada com os gastos necessários para enfrentar a pandemia. Aqui é importante chamar atenção que o valor absoluto da dívida pública não significa muita coisa, o que importa é o tamanho dela com respeito do PIB. A política de austeridade fiscal adotada no Brasil desde 2015 durante a gestão de Joaquim Levy no Ministério da Fazenda, tem impedido um crescimento mais rápido do PIB. Com efeito entre 2017 e 2019 a economia cresceu a um ritmo de 1,2% a.a, valor bastante inferior a média do período 1980-2014 que foi de 2,88%. Esse crescimento anêmico do PIB faz com que o denominador da relação dívida pública/PIB cresça muito devagar, o que contribui para manter a relação em patamares elevados. A solução para reduzir o endividamento do setor público é acelerar o crescimento da economia brasileira, e um programa bem executado de investimentos em infraestrutura tem o potencial de fazer isso. Como a economia brasileira irá manter uma elevada capacidade ociosa e alto desemprego até 2023 ou 2024, a inflação deverá seguir bem comportada de maneira que a taxa de juros poderá seguir em patamares baixos durante muitos anos. Dessa forma, a taxa de crescimento da economia poderá ser significativamente maior do que a taxa de juros da dívida pública permitindo uma redução da relação dívida pública/PIB mesmo se o governo operar com déficit primário. Supondo uma dívida pública/PIB de 95% no início de 2021, uma taxa real de juros de 1% e um crescimento de 3% do PIB para o próximo ano, se o governo operar com um déficit primário inferior a 2% a dívida pública como proporção do PIB menor do que no início do ano.
A solução para reduzir o endividamento do setor público é acelerar o crescimento da economia brasileira, e um programa bem executado de investimentos em infraestrutura tem o potencial de fazer isso
A redução da dívida pública é um processo que levará anos, mas que eu sinceramente não vejo porque deva ser visto com preocupação. A dívida pública brasileira é quase inteiramente denominada em reais e retida basicamente por residentes no país. A aceleração do crescimento irá se encarregar de, num prazo razoável, talvez até o final da década, recolocá-la no patamar pré-pandemia. Não é necessário converter a dívida pública numa espécie de cruz para castigar toda a sociedade brasileira. Os países que venceram a segunda guerra mundial, Estados Unidos e Reino Unido também saíram do conflito com uma dívida pública muito elevada. No caso do Reino Unido a dívida pública superava a marca de 220% do PIB. Mas isso não exigiu nenhum sacrifício da sociedade britânica: o nível de vida da população aumentou de forma significativa ao longo das décadas seguintes, devido ao crescimento econômico, o que reduziu a 43% do PIB em 1973. É verdade que o Reino Unido cresceu menos que a Alemanha e o Japão no pós-guerra, mas isso não tem nada que ver com o endividamento público e sim com a perda de competitividade da indústria britânica relativamente as suas concorrentes alemã e japonesa.
Se a sociedade brasileira quiser acelerar o processo de redução da dívida então uma possibilidade é por intermédio do aumento da carga tributária sobre os mais ricos. Dados da receita federal mostram que a alíquota efetiva de imposto de renda cai abruptamente a partir do 1% mais rico dos contribuintes brasileiros por uma série de razões. Em primeiro lugar, a ausência de tributação sobre lucros e dividendos distribuídos. Como a proporção de lucros e dividendos na renda é maior para os contribuintes mais ricos, segue-se que a parcela da renda isenta de tributação é maior nos estratos superiores de renda. Em segundo lugar, os impostos sobre propriedade no Brasil, o IPTU e o ITR são ridiculamente baixos. Isso se deve a relutância dos prefeitos de aumentar a alíquota desses impostos para não desagradar seus eleitores. Eu sugiro a criação de uma alíquota federal de IPTU e ITR como forma de se contornar esse problema e aumentar a arrecadação.
Por fim, a emissão monetária, ou seja, a compra de títulos do Tesouro diretamente pelo Banco Central precisa ser autorizada na Constituição Federal, pois isso está expressamente vedado pelo artigo 164 da Constituição Federal. O Congresso Nacional deveria ter aprovado isso por ocasião da PEC do orçamento de guerra, mas não o fez. De qualquer forma eu não vejo muita diferença entre o financiar o déficit público por intermédio de emissão de moeda ou de emissão de dívida pública, até porque enquanto a taxa de juros selic for maior do que zero, o Banco Central será obrigado a retirar a liquidez em excesso no mercado por intermédio da venda de títulos públicos que estão na sua carteira, aumentando assim a dívida pública tal como ela é medida pelo BCB.
Em suma, eu não vejo com preocupação o tamanho da dívida pública no pós-pandemia. O que sim me preocupa é a capacidade de crescimento da economia brasileira. O Brasil precisa voltar a crescer de forma sustentada a taxas superiores a 3% a.a. Apenas assim será possível compatibilizar uma série de objetivos: reduzir a dívida pública como proporção do PIB, gerar emprego e renda decentes para os mais de 100 milhões de brasileiros que fazem parte da força de trabalho, criar os recursos necessários para investir em políticas públicas notadamente saúde, educação e segurança. Sem crescimento o Brasil entrará num caos semipermanente.
Qual é o plano que Guedes tem para o pós-pandemia? Exatamente o mesmo que ele tinha antes da pandemia, ou seja, a agenda privatização-ajuste fiscal-abertura comercial.
HP – Guedes insiste na decisão de vender ativos para tentar atrair investidores estrangeiros, como o senhor vê isso?
JOSÉ LUIS OREIRO – Como eu disse anteriormente a imagem internacional do Brasil está muito deteriorada. Enquanto Bolsonaro ocupar a cadeira de Presidente da República não tem clima para atrair investimento externo em grandes quantidades. Guedes pode falar e gritar o quanto quiser sobre a necessidade de vender ativos brasileiros que não vai adiantar nada. Aliás a própria imagem do Ministro da Economia é muito ruim. A aura de competência que ele tinha antes de assumir a pasta foi sendo desgastada continuamente pelas falas e atitudes do ministro. Qual é o plano que Guedes tem para o pós-pandemia? Exatamente o mesmo que ele tinha antes da pandemia, ou seja, a agenda privatização-ajuste fiscal-abertura comercial. O problema é que essa agenda não estava dando certo antes da pandemia, por que razão daria certo no mundo pós covid-19? Guedes não consegue formular um argumento minimamente consistente para defender essa agenda, ele apenas a repete como uma espécie de mantra, na esperança vã de que a custa de repetir as mesmas ideias de sempre elas, como por um passe de mágica, funcionem! Irá fracassar junto com Bolsonaro.
José Luis da Costa Oreiro é professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, Pesquisador Nível IB do CNPq e Lider do Grupo de Pesquisa “Macroeconomia Estruturalista do Desenvolvimento”, cadastrado no CNPq. É autor do livro “Macroeconomia do Desenvolvimento: uma perspectiva Keynesiana”, LTC: Rio de Janeiro (2016)
ANTONIO ROSA