(HP, 04/05/2012)
CARLOS LOPES
No número 8 da revista eletrônica “Machado de Assis em linha” há um texto de Agripino Grieco sobre “Dom Casmurro” – o capítulo XX de “Machado de Assis”, livro que foi publicado em 1959 – que reproduziremos na próxima edição.
A vantagem de ter quase 60 anos, como é o nosso (quer dizer, meu) caso é ter sido contemporâneo de gente que os mais jovens julgam remotíssima ou nem desconfiam que existiu – certamente que não nos referimos a Machado de Assis, mas a Agripino Grieco.
Ele era – usando um lugar-comum que o crítico detestaria – uma lenda já em vida na década de 60. Afinal, começara sua trajetória literária no longínquo ano de 1907, fora um dos amigos mais chegados de Lima Barreto, convivera com gerações de escritores brasileiros e escrevera tantos livros que ninguém conseguia listá-los completamente.
Nos tempos atuais, uma de suas definições poderia, deveria e mereceria ser erguida em monumento, em letras de ouro – outra imagem que ele odiaria – sobre o mármore: “O que é o batedor de carteira senão um banqueiro apressado?“.
Durante quatro anos, todos os dias em que houve aula (e eu não faltei), passava em frente à casa de Agripino Grieco, na rua Aristides Caire, no bairro carioca do Méier, caminho inevitável para quem morava num subúrbio da Leopoldina e estudava na gloriosa seção norte do Colégio Pedro II, que ficava (e ainda fica) na rua Barão do Bom Retiro, no Engenho Novo – por coincidência, o bairro em que, quando já velho, passou a morar Bentinho, o próprio “Dom Casmurro”, narrador e personagem do romance de Machado.
O sobrado em que morava Grieco, exteriormente, era o mesmo descrito por Homero Senna em 1944, quando realizara uma – aliás, excelente – entrevista com ele. Mas a rua nada tinha daquela que fora retratada “com sua calma, seus vagos transeuntes e seus chalés de grade de ferro, [que] lembra uma rua de província“. Vinte anos depois, em 1964-68, a mesma rua era uma balbúrdia, com um tráfego via de regra (!?) engarrafado, com os carros e os ônibus buzinando e soltando fumaça em meio a um calor senegalesco.
Não sei se o grande crítico incomodara-se com essa mudança. Provavelmente, nunca pensou em sair dali, onde, num anexo à casa, mantinha a sua biblioteca, tão lendária quanto ele, que já atingia 50 mil livros – e na qual ele gastava anualmente 40 quilos de naftalina, no eterno combate às traças.
Antes de tudo, Agripino Grieco, autor de “Carcaças Gloriosas” e “Zeros à Esquerda“, era conhecido por sua implacabilidade, ironia e sarcasmo. Como ele disse em 1957 a um jornal paulista, “nenhum muar ficou impune nos meus cinquenta anos de crítica literária“.
Algum deve ter passado desapercebido, mas Grieco, durante muitas décadas, era o único que dizia desabridamente certas verdades sobre festejadas mediocridades – geralmente literárias.
As mulheres de hoje não têm que aguentar a promoção da literatura de Rosalina Coelho Lisboa ao status de essência do feminino. Talvez seja uma dádiva de Deus – mas, em parte, é devida a Grieco (e, em parte, façamos justiça, à Cecília Meireles, quando declarou que era “poeta” e não “poetisa”: todo mundo sabia, pela imprensa, quem ostentava pelos salões o título de “poetisa”).
Rosalina, que na juventude fora uma devoção especial do tenente Siqueira Campos, casara com um milionário, o dono da companhia de seguros SulAmérica. Comentário de Grieco: “A Rosalina pode não ser a maior escritora da América do Sul, mas é, seguramente, a maior escritora da SulAmérica“.
Sobre um sujeito, hoje esquecido, que na época era considerado um luminar da pedagogia: “O Carneiro Leão entrou na Academia. Estranhei: até agora, os animais tinham entrado de um a um. Dois de uma vez é demais“.
Uma reminiscência sobre um celebrado jurista, tão celebrado que virou nome de avenida no Leblon: “O Ataulfo de Paiva era tão medíocre, cabeça tão vazia, que quem comesse os miolos dele podia comungar“.
Quanto a um terrível poeta eclesiástico: “Dom Aquino Correia, arcebispo de Mato Grosso, foi eleito. A Academia pensou que a coroa dele era claraboia da inteligência“.
Já sob a ditadura, Grieco provocou gargalhadas gerais com um artigo em que fazia algumas referências à obra supostamente historiográfica de um sujeito pomposo, vazio e bajulador que foi reitor da Universidade do Brasil (depois UFRJ) durante nove governos consecutivos. Esse magnífico eterno proporcionava, frequentemente, muita diversão aos leitores de Grieco: “Em lançamento de um livro, apresentado a uma mulher, disse-lhe: ‘Já dormimos juntos’. Ela ficou indignada: ‘Como ousa dizer isso?’. ‘Então não se lembra? Foi numa conferência do Pedro Calmon’ “.
Com mais de 80 anos, quando a Academia Brasileira de Letras, sob a presidência de Austregésilo de Athayde, elegeu um membro da junta que após a doença de Costa e Silva tomara o poder – um certo Lyra Tavares, cuja obra consistia em alguns poemas publicados sob o pseudônimo de “Adelita” -, Agripino Grieco fulminou: “Dizem que passei a vida combatendo a Academia. Mas vejam. O Machado de Assis tangia a lira. O Austregésilo tangeu o Lyra. Há quem aguente?“.
Era uma referência à verdadeira obra com que Lyra Tavares entrara na Academia: um empréstimo da Caixa Econômica, que o governo liberou depois de sua eleição, para construir um prédio de 28 andares, um anexo da ABL denominado “Palácio Austregésilo de Athayde”.
Talvez pela idade, mais provavelmente pela fama, Grieco não foi preso – numa época em que até o colunista social do Jornal do Brasil, Zózimo Barroso do Amaral, passou cinco dias na cadeia por registrar numa pequena nota que Lyra Tavares fora empurrado por um guarda-costas do ditador do Paraguai, Alfredo Stroessner, durante uma solenidade.
Poucas vezes, também, o líder “histórico” da UDN – até 1964 sempre alardeado como um novo Rui Barbosa, talvez um novo Sócrates – foi tratado com tanta propriedade: “Afonso Arinos foi fazer uma conferência, em Paris, sobre Direito Público Internacional. Como não havia nenhuma assistência, a conferência passou a versar sobre Direito Privado“.
Parece um mero chiste. Mas é um chiste que expõe a silhueta desoladora do cidadão – seu flexível conteúdo cerebrino e sua paulificante forma retórica.
A ABL, reduto da mediocridade literária, foi alvo de Grieco durante mais de meio século. Embora, é forçoso reconhecer, na sua época ainda não havia lá nenhum Merval Pereira ou Paulo Coelho. Todos, pelos menos, sabiam escrever.
CRÍTICA
O pequeno retrospecto que fizemos pode passar a falsa ideia de que Agripino Grieco era apenas um frasista – no que, realmente, ele era muito bom, melhor que Nelson Rodrigues, hoje tratado em certas páginas como o ponto culminante na matéria.
Entretanto, a tarefa que Grieco, assim como outros escritores – entre os ficcionistas, o principal foi Monteiro Lobato – se propuseram no início do século XX, antes do modernismo, foi a de formar uma literatura nacional contemporânea dentro da tradição inaugurada por José de Alencar e Gonçalves Dias. O que fazia, ainda que sua consciência tenha sido confusa a esse respeito, com que se chocassem com o establishment antinacional da República Velha – e, após sua derrubada, em 1930, com suas remanescentes ruínas culturais e ideológicas.
Na crítica literária, o primeiro a levar à frente esse movimento antes de 1930 foi Alceu Amoroso Lima, hoje mais conhecido como pensador católico – e, no final de sua vida, por sua oposição à ditadura de 1964. Mas, antes da sua conversão ao catolicismo (1928), Alceu tornara-se, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde, o principal crítico literário brasileiro. Nas palavras de Agripino Grieco, “[Tristão de Athayde] praticava um trabalho brilhante, inaugurara uma crítica que desgarrava das características miúdas que até então a presidiam, deixando de se reportar a versos quebrados e a solecismos para fazer uma análise em profundidade das obras que lhe eram submetidas“.
O sucessor de Tristão de Athayde, na crítica e no jornal onde publicava seus rodapés literários, foi, exatamente, Agripino Grieco. E começou logo com uma polêmica sobre Gregório de Matos – o mais turbulento dos poetas nascidos no Brasil. Para sorte de Grieco (ou de Gregório), o poeta morrera no século XVII…
No entanto, ele não se limitou a atacar poetas mortos. A literatura na época da República Velha necessitava que se lhe revolvesse o entulho aluvial que se acumulara ao longo do tempo. Mas, é necessário reconhecer, com Grieco, que “é preciso acabar com esta lenda de que, na literatura brasileira, só tenho feito destruir. Se ataquei os manipansos, os falsos ídolos, não regateei elogios a quem de fato os merecia. E aí estão meus estudos sobre Raul de Leoni, Alphonsus de Guimaraens, Gilberto Freire, o próprio Lima Barreto, para provar o que digo. Fui dos primeiros a chamar a atenção do público para essa gente, hoje tão cortejada pela crítica“.
Em 1944, ao relacionar seus romancistas modernos “prediletos”, Grieco mencionou: Jorge Amado, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Otávio de Faria, Cornélio Pena, Lúcio Cardoso, Plínio Salgado, Ciro dos Anjos, Érico Veríssimo, Galeão Coutinho e Gastão Cruls.
Há uma evidente superestimação de Plínio Salgado – mas isso, que hoje é fácil constatar, era geral naquela época, em função da fantasia supostamente nacional que o capo integralista envergava, inclusive na literatura.
Quanto aos outros, Grieco lista tanto as principais figuras do romance social nordestino (Amado, Graciliano, José Lins do Rego), quanto seus adversários (os dois principais escritores do “grupo católico”: Otávio de Faria e Lúcio Cardoso), um regionalista de São Paulo (Cornélio Pena), outro do Rio Grande do Sul (Érico Veríssimo), o meio proustiano e meio machadiano mineiro Ciro dos Anjos, e um romancista que, apesar de carioca, se notabilizou por um forte romance amazônico (Gastão Cruls). Quanto a Galeão Coutinho, como desconhecemos a sua obra, não faremos comentários. Talvez seja a hora de reavaliá-la e tirá-la do esquecimento.
O importante é que a predileção de Agripino Grieco coincide com um corpo literário nacional do século XX – um leque nacional tanto do ponto de vista geográfico, quanto cultural e ideológico.
OUTRO LADO
Como crítico, Grieco também revelou incompreensões, é verdade que, até nisso, sempre com um humor admirável. Por exemplo: “Em poesia, não faz Drummond outra coisa senão atrapalhar as autoridades, como quando nos aconselha a sermos pornográficos, ele que trabalha numa repartição frequentadíssima por mestres e estudantes, ou quando se insurge contra a pedra no caminho, sugerindo que as estradas de Itabira ou do Rio são mal calçadas, para desgosto de duas prefeituras“.
Ou sobre outro dos maiores escritores brasileiros (ainda que essa incompreensão, nesse caso, seja algo compreensível…): “Não consigo entender Guimarães Rosa: escreve em húngaro“.
A mesma coisa pode-se dizer de seu juízo inicial sobre a obra de Machado de Assis – em parte retificado depois. Nisso, parece ter partilhado a opinião de seu amigo Lima Barreto, embora nunca totalmente, pois o escritor de “Clara dos Anjos” defendia Aluísio Azevedo como maior que Machado – o que parece uma de suas idiossincrasias; como relata Agripino Grieco, ao explicar sua própria predileção residencial: “Sei que não falta quem estranhe o fato de eu morar em subúrbio. (…) Não alimento, porém, qualquer rancor aos habitantes dos bairros chiques da Zona Sul. E isto por uma razão muito simples: é que não vejo neles nada de superior. Meu amigo Lima Barreto, sim, é que, morando também em subúrbio, olhava de soslaio para Botafogo e outros bairros supostamente aristocratas e tinha ódio aos seus moradores. Tudo, porém, no fundo, fruto de recalques (…). Para mim, não, tudo é a mesma coisa, tudo é o Rio…“.
Para que tenhamos uma ideia das limitações pessoais de Lima Barreto, a resenha que publicou na revista “Caretas” (ed. 02/09/1922) de “Fetiches e Fantoches”, livro de Grieco aparecido no ano anterior, é dedicada a defender, contra o amigo, um poetastro, o senador Felix Pacheco, um dos czares da imprensa na época, simplesmente porque este o tratara bem (escreveu Lima Barreto: “Não é do Sr. Félix Pacheco, senador e redator-chefe do Jornal do Comércio, de quem falo. É do Félix, protetor dos escritores desprezíveis ou desprezados a quem me refiro e de quem só tenho recebido homenagens (…). Se o Sr. Agripino tivesse meditado mais, havia de ver que um homem como o Félix é uma necessidade na nossa literatura“).
Grieco não alterou seu julgamento sobre a poesia de Félix Pacheco, nem deu importância a essa resenha – no que fez bem. Tinha as suas razões: ele conhecia muito Lima Barreto.
JUÍZOS
Hoje existe uma unanimidade sobre Machado. Nem sempre foi assim. Houve, durante décadas, até mesmo uma polêmica sobre qual seria o mais importante romancista brasileiro – se Alencar ou Machado. Sem dúvida, Grieco ficou com o primeiro. No entanto, soube, com o tempo, valorizar como poucos a obra de Machado. Mas é peculiar que considere “Dom Casmurro” como obra maior que “Memórias Póstumas de Brás Cubas” – um livro com que a sua própria obra (ou, melhor, o seu próprio estilo) tem mais evidente proximidade.
Apesar disso, a maioria dos julgamentos de Grieco permanece válida. E mesmo quando discordamos, há nele algo de estimulante, por jamais pretender impor sua opinião como a única possível. Por exemplo, ainda que nem todo mundo concorde, provavelmente a maioria das pessoas que tiveram contato com a obra de um supervalorizado autor integralista assentirá, diante do seguinte juízo: “Veja-se o caso do Gustavo Barroso. Advogo para suas obras uma criação intensiva de traças. Seria o único meio de extingui-las. Ele produz a metros e a quilos. Que persistência!“. Mesmo os admiradores de Barroso, possivelmente, não evitarão um sorriso. Embora, não se poderia dizer que o próprio tivesse essa reação.
Agripino Grieco não tinha pretensões científicas em sua crítica literária. Literalmente: “Sempre fiz puro impressionismo e acho que assim é que deve ser. A obra dos julgadores de livros vale pela forma em que está vazada, pela ironia, pela irreverência, pelo que possa representar de negação dos valores oficiais. Nem a Medicina é ciência, quanto mais a Crítica…“.
Ou, em termos mais formais, no seu livro “Caçadores de Símbolos” (1923), uma coleção de sérios estudos literários:
“… a crítica não pode ter o rigor de uma ciência, como pretendem os críticos que são apenas críticos, os que jamais criaram coisa alguma, os que nunca sentiram a dor do parto mental e a consequente alegria da maternidade artística, doutrinadores ressequidos que tratam os criadores autênticos com o possível desdém das simples lagartas pelos bichos-da-seda“.
A data de publicação do livro é importante para analisar a que Agripino Grieco está se referindo: essas palavras são escritas contra o positivismo, ainda uma forte influência no país daquela época, até mesmo em Tristão de Athayde antes da conversão. Nesse sentido, Grieco está certo, ainda que permaneça a confusão entre o que o positivismo chama de ciência e uma possível abordagem realmente científica da obra literária.
Estranhamente para a nossa época, esse homem tão culto, que lia vorazmente em cinco idiomas – mas nunca falou outro que não o português – era um filho de camponeses que emigraram da Itália para o interior fluminense, e, na escola, jamais ultrapassou o curso primário – que, aliás, detestou: “… professores só os tive primários, lá mesmo em Paraíba do Sul, e péssimos. Ásperos, turbulentos, vingativos, estavam sempre prontos a distribuir “bolos” e safanões aos alunos“.