Bandos de terroristas oriundos da Al Qaeda receberam ao longo de mais de década US$ bilhões em armas pelo Pentágono e CIA para derrubar governo de Bashar Al Assad
A Al Qaeda na Síria repaginada como Hayat Tahrir al-Sham (HTS) anunciou nesta quinta-feira (12) que estão suspensas a Constituição e o parlamento, primeira medida efetiva do novo governo interino, encabeçado pelo premiê Muhammad al-Bashir, recém nomeado pelo ex-‘emir dos degoladores’ na Síria e, agora, “revolucionário de blazer”, segundo a CNN, Abu Mohammed al Jolani.
A Constituição, até aqui em vigor, é aquela que permitiu que a sociedade síria fosse uma das mais democráticas e pluralistas do Oriente Médio, com respeito às religiões e diferentes etnias, ao contrário do que se vê em outros países do Oriente Médio, o que refletia o caráter progressista, secular e pluralista da revolução que lhe deu origem, a do Baath – renascimento árabe e socialista – contemporânea de Nasser e Kadhafi.
Enquanto o HTS, no enclave que controla há anos no norte da Síria, caracterizou-se pelo quase medieval fundamentalismo takfiri e pela repressão às minorias e dissidentes, o que comete, botando a culpa na Sharia e não em si próprios.
Porta-voz asseverou que a suspensão da constituição seria “por três meses”, informando que será constituído pelo novo poder uma “comissão de revisão”, para fazer “emendas”. Ainda segundo ele, o fechamento do parlamento é por três meses, mas se isso vai ser respeitado, está para ser visto.
Al Bashir era o braço direito de Jolani, tendo desempenhado no enclave de Idlib a chefia da administração, e agora substitui o premiê do deposto Assad, Mohammad Ghazi al-Jalali, a quem coube a inglória tarefa de entrega das chaves na terça-feira.
Dirigindo-se aos patronos de Washington e TelAviv que financiaram e bancaram a blitzkrieg fundamentalista, al Bashir comprometeu-se com a “calma e tranqüilidade”. Ao jornal Times of Israel, outra ala de jihadistas disse em entrevista que “direi apenas que somos gratos a Israel por seus ataques contra o Hezbollah e a infraestrutura iraniana na Síria e esperamos que Israel plante uma rosa no jardim sírio após a queda de Assad e apoie o povo sírio em benefício da região”.
AL JOLANI SILENCIA SOBRE BOMBARDEIOS ISRAELENSES
Na véspera, já em meio à destruição, por Israel, de praticamente toda a infraestrutura de defesa da soberania da Síria – frota naval, aviação e defesa antiaérea -, em discurso pronunciado na milenar mesquita Omíada, Al Jolani disse que sua vitória significava o fim da “intromissão” e da “corrupção” iraniana na Síria e do caminho livre para as armas para o Hezbollah e fazia acenos ao Ocidente.
Na solenidade, bandeiras sírias prévias à revolução de renascimento árabe socialista dos anos 1960 e bandeiras salafistas.
O G7, em nota, saudou os desenvolvimentos na Síria. Jordânia, Arábia Saudita, Bahrein, Emirados Árabes Unidos, Itália e Egito anunciaram a retomada de suas missões diplomáticas em Damasco. Al Bashir disse esperar, para breve, a reabertura das representações da Turquia e Catar. O Conselho de Segurança da ONU, que oficialmente considera o HTS “terrorista”, se reuniu a portas fechadas mas ainda é cedo para qualquer resolução.
Por sua vez, o líder máximo iraniano, aiatolá Ali Khamenei, disse em discurso veiculado pela televisão estatal na quarta-feira (11), que “não deve haver dúvidas de que o que aconteceu na Síria é o resultado de um plano conjunto americano e sionista”. O presidente Assad encontra-se asilado na Rússia.
SEM INCLUSÃO
Forças políticas oposicionistas, segundo a Reuters, manifestaram sua preocupação quanto a serem excluídos do novo governo, apesar das conclamações e promessas a favor da “inclusão”. “Você está trazendo (ministros) de uma cor, deve haver a participação de outros”, enfatizou Zakaria Malahifji, secretário-geral do Movimento Nacional Sírio e ex-conselheiro político da oposição em Aleppo.
Ele descreveu a falta de consulta na formação do governo como um passo em falso. “A sociedade síria é diversa em termos de culturas, etnias, então, francamente, isso é preocupante”, destacou.
Também prosseguem os confrontos entre diferentes facções na Síria, com grupos armados a soldo da Turquia atacando áreas sob controle das tropas curdas bancadas pelos EUA, na fronteira com a Turquia. Os curdos foram forçados a se retirarem de Manjib. Combatentes do HTS assumiram o controle de Deir Ezzor, no leste, na região do petróleo e do trigo.
Vídeos com as atrocidades cometidas assim que os rebentos da Al Qaeda tomaram o poder começam a circular:
OPERAÇÃO DA CIA
Com o colapso do governo Assad, após 13 anos de guerra, bloqueio, sanções excruciantes, com o país à beira da fome e praticamente 70% da população na pobreza, uma “morte por 1000 cortes”, como na conhecida expressão norte-americana, a operação Timber Sycamore, da CIA, iniciada em 2011, que ao custo de US$ 1 bilhão – oficialmente, fora os por fora – equipou 10.000 terroristas, e terminada em 2017, passa a uma nova fase.
Há aquele e-mail famoso do então conselheiro da secretária de Estado Hillary Clinton, de 2012, Jake Sullivan, em que este registra que “a Al Qaeda está do nosso lado”.
Pouco depois, houve a escandalosa reunião do senador John McCain com os “rebeldes moderados” armados sob a operação Sycamore – com direito a foto, para a eternidade -, inclusive com o depois capo do Estado Islâmico, Al Bagdadi. Al Jolani já era, então, braço direito de Al Bagdadi, a ponto de ser incumbido de formar a Frente Al Nusra na Síria.
Também o premiado jornalista Seymour Hersh, que expôs ao mundo a chacina de Mi Lay no Vietnã e, décadas depois, o horror de Abu Graib, denunciou em 2012 a existência de um “caminho de ratos”, operado pela CIA, para transportar armas traficadas dos arsenais líbios saqueados pela Otan, para armar os insurgentes de aluguel. Operação que deu problema, já que alguns dos terroristas envolvidos se desentenderam e mataram o embaixador norte-americano na Líbia na época.
Foi uma guerra imposta de fora para dentro, vendida aos príncipes do Golfo como uma ação para construir um gasoduto dos campos do Qatar até os mercados europeus, mas, na verdade, também servindo para enfraquecer a resistência ao colonialismo israelense e a seu projeto de Eretz Israel, e minando a luta de libertação da Palestina.
Segundo os registros, as primeiras injunções para a derrubada do governo Assad datam de 2006, após o fracasso de Israel no Líbano. A crise de 2008, o crash nos EUA, teve como repercussão uma deterioração da economia em muitos países, como a Síria, que acabou acorrendo ao FMI, que impôs brutal austeridade e abriu o espaço para o descontentamento na sociedade síria.
A operação contra a Síria começou praticamente quando a Otan já tinha fechado a fatura na Líbia em 2011 e, em que pesem erros de Assad, Washington tinha resolvido que iria fechar também a fatura da revolução nacional síria.
Em 2015, quando a situação era desesperadora e surgia o Estado Islâmico, a Rússia decidiu ir em socorro da Síria, para, como disse Putin, não ter que enfrentar os terroristas mais tarde na própria Rússia, decisão tomada em conjunto com Assad, o Irã e a resistência libanesa.
O congelamento do conflito em Idlib foi implementado, diante da necessidade de todas as partes em luta, esgotadas pelo conflito, e no esforço para obter uma composição com a Turquia, que passara a ter uma contradição existencial com o apoio dos EUA aos rebeldes curdos.
“5 PAÍSES EM 7 ANOS”
Há quem diga que a operação na Síria é parte do famoso plano revelado pelo ex-comandante da Otan na Europa, general Wesley Clark, que, logo após o 11 de Setembro de 2001, soube no Pentágono que a invasão do Afeganistão era só o começo, que o alvo mesmo era o Iraque, e que iriam ser destruídos sete países islâmicos em cinco anos. Durou bem mais, e o Irã continua intacto. Mas tombaram, ou estão em destroços a Líbia, Iraque, Somália, Iêmen, Líbano e, agora, a Síria.
Após asseverar que o objetivo agora é a “reconstrução” e a “volta dos refugiados”, o primeiro-fantoche al-Bashid culpou o governo deposto pelas “ruínas” e “cofres vazios”.
Mesmo tendo o conflito congelado por quatro anos, a situação do povo sírio não melhorava por causa das excruciantes sanções impostas por Washington e pelos satélites europeus, agravadas pelo roubo do petróleo e do trigo na região leste (um terço do país) ocupada por tropas dos EUA e seus mercenários. Antes da guerra, o petróleo era responsável por um quarto das divisas do país. O que não foi destruído acabava sucateado diante da dificuldade para importar peças de reposição, já que a Síria estava excluída do sistema de pagamentos internacional, e quem fizesse negócios com os sírios estava sujeito às sanções secundárias. Havia apagões que duravam 24 horas. 90% da população abaixo da linha de pobreza. Uma “morte lenta por mil cortes”, até a Síria, exangue, cair.
A economia síria atualmente é 38% da que existia em 2010. No ano passado, o PIB caiu 1,2%, e este ano a previsão é de encolher mais 1,5%. A inflação é de 93% e a moeda síria sofreu uma desvalorização de 141% em relação ao dólar. Há ainda o impacto devastador do terremoto de fevereiro de 2023. Segundo o Programa Mundial de Alimentos da FAO, um dos dez países mais ameaçados pela fome, o apelo da ONU só atendeu 13% da meta. Quase 13 milhões de pessoas — mais da metade da população do país — sofrem de insegurança alimentar aguda, 650.000 crianças menores de cinco anos mostram sinais de nanismo devido à desnutrição grave, e um terço das crianças da Síria vive em pobreza alimentar.
Há ainda o problema dos refugiados nos países vizinhos e dos deslocados internamente, respectivamente 6,4 milhões e 7, 2 milhões de pessoas.
EM DEFESA DA SÍRIA PLURALISTA
Em decorrência da guerra, o país está dividido em várias regiões de influência e diferentes atores. Assim, a Síria está ameaçada de se tornar um “Estado falido”, incapaz de se manter unificado e funcionando, como na Líbia, ou de ser transformado em um batustão sem defesa e sem soberania real, cuja existência seja permitida pelo regime de apartheid ali vizinho.
Como disse o ex-embaixador britânico Craig Murray, que nunca foi a favor de Assad, mas que no momento de sua derrubada se apercebeu que inegavelmente ele manteve um estado pluralista onde as mais incríveis tradições históricas, religiosas e comunitárias – incluindo sunitas (e muitos sunitas apóiam Assad), xiitas, alauitas, descendentes dos primeiros cristãos e falantes de aramaico, a língua de Jesus – foram todos capazes de coexistir”.
O que estamos testemunhando – acrescentou – é “a destruição disso e a imposição de uma regra ao estilo saudita. Todas as pequenas coisas culturais que indicam pluralismo – de árvores de Natal a aulas de idiomas, vinificação e mulheres sem véu – acabaram de ser destruídas em Aleppo e podem ser destruídas de Damasco a Beirute”.