Merkel sai abalada e seu partido CDU perde 2,8 milhões de votos. Resultado do SPD é o pior desde 1949. Ascensão da AfD é cria da desestabilização da Síria por Washington com o suporte de Berlim
No que a revista Der Spiegel chamou de “começo do fim para a era Merkel”, as eleições de domingo (24) na Alemanha registraram o pior resultado desde 1949 para o partido da primeira-ministra Ângela Merkel (democracia cristã, CDU/CSU), que perdeu mais de 2,8 milhões de votos, caindo de 41,5% para 32,5%, enquanto seu parceiro da ‘grande coalizão’ desde 2009, os social-democratas (SPD), encolhia de 25,7% para 20,5%, e o partido Alternativa pela Alemanha (AfD), com discurso xenófobo e anti-islâmico, não só ingressava pela primeira vez no parlamento, como se tornava a terceira maior força política, com 13,2%.
Vão compor também o Bundestag o partido Die Linke (A Esquerda), com 9,2%, e os Verdes, com 8,9%. O Partido Liberal (FDP), que está de volta após ficar de fora no mandato anterior, obteve 10,7%. A participação na eleição cresceu de 71,5% para 76,2%.Conforme o semanário Die Zeit, o que marcou a eleição foi o voto anti-Merkel, impulsionado pela contrariedade contra a avalanche de imigrantes.
No sistema alemão, cada eleitor tem dois votos, um distrital, e outro proporcional (lista de partido). A bancada de Merkel encolheu para 246 deputados, seguida pelo SPD com 153, AfD com 94, FDP com 80, A esquerda com 69 e Verdes com 67. O número de deputados subiu de 631 para 709. O ex-presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, cuja indicação chegou a elevar nas pesquisas a votação dos social-democratas para 30%, posição que não conseguiu sustentar, reconheceu que se tratava de “um dia amargo” e “uma esmagadora derrota eleitoral” e anunciou o fim da coalizão com Merkel.
Assim, o SPD volta a ser alcançado pela ‘maldição de Schroeder’: a indignação do povo alemão com a traição do então primeiro-ministro, que se elegeu com um programa de governo progressista em 2004, e acabou impondo o arrocho salarial das “leis Volkswagen”, o aumento da idade mínima de aposentadoria para 67 anos e o corte de impostos para os magnatas. Desde então, o SPD não consegue vencer uma eleição geral. Em entrevista, Schulz classificou as táticas de campanha de Merkel de “escandalosas” e as responsabilizou por “criar o vácuo político que foi preenchido pela AfD”.
Sem contar – pelo menos por agora – com os social-democratas, para poder governar Merkel irá tentar concretizar a chamada ‘coalizão Jamaica’, que recebe esse nome porque os partidos integrantes têm as cores da bandeira da ilha caribenha: preto (democratas cristãos), verdes e amarelo (FDP). Os cortejados já demonstraram que a parceria não sairá barata.
A ida do SPD para a oposição também evita que a AfD venha a encabeçar a comissão de orçamento do parlamento. Manifestantes foram às ruas de Berlim e de outras cidades para repudiar o ingresso no parlamento da AfD, com faixas como “o ódio não é nenhuma alternativa”, “fora nazis” e “bem vindos imigrantes”.
Mas não foi propriamente um “relâmpago em céu azul”: a AfD já tem deputados em 13 dos 16 estados alemães. O ingresso da AfD no parlamento federal significa que está superado o mote de que não haveria bancada alguma ‘mais à direita’ do que a do CDU – em cuja fundação muitos nazistas devidamente reciclados pelos americanos puderam participar.
A AfD nasceu em 2013 juntando professores universitários neoliberais e outros elementos que consideravam que Merkel estava demasiado bondosa na “ajuda” à Grécia e outros países europeus em crise. Nas eleições daquele ano, ficou muito perto de superar a cláusula de barreira de 5%. Também tinha reservas quanto ao euro.
Com a decisão de Merkel de liberar a entrada de civis fugindo das guerras da CIA no Oriente Médio, a AfD passou a centrar sua atuação em perseguir e barrar os refugiados. Para um articulista da Der Spiegel, Merkel é “a mãe do monstro, a mãe da AfD”. Foi sendo engrossado pela chegada de mais extremistas e seu líder Alexander Gauland, aliás, ex-CDU de Merkel, agora vem defendendo que os alemães devem ter “orgulho” do que seus soldados fizeram na I e II Guerra Mundial. Andam ressuscitando aquele lema “Deutschland über alles”.
Na falta de semitas melhores, baixaram o sarrafo nos “islâmicos”, que eram acusados de violarem a “cultura alemã” e de serem criminosos e estupradores. Conseguiam até ironizar, como no cartaz “burcas? Preferimos biquínis”. E a AfD encarnou a ira contra Merkel, com seus integrantes perturbando os comícios dela aos gritos de “traidora” e jogando tomates. Também costumavam chamá-la de “IM Erika”, suposto codinome quando, diziam, era “agente da Stasi”, a polícia secreta alemã oriental. Até onde sabemos, ainda não propuseram um muro no Mediterrâneo a ser pago pelos líbios e sírios. Mas a AfD sofreu as primeiras baixas: a líder Frauke Petry declinou da cadeira no bundestag e se tornará independente no parlamento estadual da Saxônia.
A divulgação de dados inteiramente absurdos sobre o “aumento dos estupros” por um governo estadual aliado de Merkel – 3 casos viraram “98%” a mais – serviu para inflar nas urnas a histeria anti-refugiados. Também estiveram ausentes da campanha os principais temas que assombram a Alemanha: o arrocho salarial, base dos gigantescos superávits comerciais que depois são usados para especular em Wall Street, a fragilidade do Deutsch Bank, a perpetuação do desmanche da Alemanha oriental, a prisão de povos em que a União Europeia se tornou e o impasse na eurozona, a ocupação da Alemanha pelas tropas americanas, a sujeição do país às sanções anti-russas e a cumplicidade de Berlim no golpe da CIA na Ucrânia.
AGRESSÃO À SÍRIA
Apesar de toda a dimensão que a questão da imigração assumiu no embate eleitoral, a verdade é que as próprias razões para a “willkommenspolitik” – a aceitação por Merkel da vaga humana de refugiados empurrados para a Europa – são mantidas no esquecimento. A intensificação do assalto à Síria para derrubar Assad – que obrigou milhões a fugir dos ataques – ocorreu quando também era máxima a pressão do governo Obama para assinar o tratado pró-monopólios ianques, o TTIP – que a primeira-ministra apoiava e ao qual os social-democratas se opunham assim como a manifestação com 250 mil em 2015. Na época, os EUA chegaram ultrapassar a França como principal parceiro comercial alemão.
Para a Die Zeit, que era tida como arauto de Merkel, “às vezes os vencedores aparentes também podem virar perdedores dramáticos”. A revista se preocupa com que Merkel haja perdido “o instinto sobre o que preocupa as pessoas, se é que ela já teve isso. A crescente diferença de renda, os salários insuficientes, muitos refugiados e imigrantes, um grande sentimento de insegurança em um mundo que parece ter sido virado de cabeça para baixo”.
ANTONIO PIMENTA