
“A Alemanha está de volta”, afirmou o banqueiro (ex-BlackRock) Friedrich Merz, vencedor das eleições do mês passado, ao anunciar acordo com o interino Olaf Scholz e com os verdes para destinação de até 1 trilhão de euros para o rearmamento ao longo de uma década, a ser votado ainda pelo parlamento cessante.
“De volta”: uma declaração curiosa, partindo de um país tristemente conhecido na história por ter arrastado o mundo para duas guerras mundiais, e por ser feita no dia seguinte aos esforços Rússia-EUA para encontrar uma solução para a guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia.
O “pacote de defesa”, segundo a ministra interina das Relações Exteriores, Annalena Baerbock, envia “um sinal claro para a Ucrânia, a Europa e o mundo”. Trata-se de que a Alemanha estava assumindo a responsabilidade em tempos turbulentos, acrescentou. Segundo a mídia alemã, aprovado o acordo, já na próxima semana Scholz poderá enviar € 3 bilhões para o regime de Kiev.
O acordo de rearmamento foi alcançado em paralelo às negociações para a formação de uma coalizão de governo negro-vermelha (democrata-cristãos e social-democratas). Como implica em mexer em uma cláusula da Constituição referente a endividamento, o acordo terá de passar no Bundestag e ser aprovado por dois terços da Câmara alta. A posse do novo parlamento será no dia 25.
Merz fizera campanha contra a alteração do limite constitucional de endividamento, dizendo ser contra aumentar o fardo sobre “as futuras gerações”. Agora, em prol do rearmamento, isso já não é mais problema.
Com Trump admitindo que a guerra estava perdida e se mostrando disposto a não herdar a derrota da guerra de Biden e a negociar com Moscou, Merz passou a dizer que sua prioridade absoluta era fortalecer a Europa porque Trump parecia “indiferente” ao seu destino.
Antes disso, Merz se pronunciara pela continuação da guerra na Ucrânia e inclusive se dissera favorável ao envio de mísseis avançados Taurus, capazes de atingir Moscou, cuja entrega a Kiev foi recusada por Scholz.
PACOTAÇO POR MAIS GUERRA
No pacote Merz/Scholz/ Baerbock, gastos com defesa acima de 1% do PIB passarão a estar isentos das restrições de dívida. Metade dos gastos com “defesa” virá metamorfoseado de fundo especial de infraestrutura, já que pontes e rodovias alemães estão em estado precário e sequer aguentam a passagem de tanques.
Os 16 estados da Alemanha poderão tomar emprestado até 0,35% do PIB acima do limite da dívida. Os planos de defesa também permitem que gastos com ajuda para Estados “atacados em violação ao direito internacional” – leia-se “Ucrânia” – sejam isentos do chamado freio de dívida. Supostamente, 100 bilhões de euros ao longo de dez anos serão destinados à crise ambiental, restando ver como o rearmamento pretendido será travestido de descarbonizaç
Em suma, com a Alemanha estagnada pelas opções que fez contra seus próprios interesses, como abrir mão do gás russo barato e beirando a desindustrialização, o regime recém saído das urnas está apelando para o chamado ‘keynesianismo militar’.
DETER O REARMAMENTO, CONVOCAM PROGRESSISTAS
Esse frenesi pelo rearmamento já começa a preocupar setores que, até recentemente, andavam mais preocupados em ser solidários ao regime de Kiev e em culpar a Rússia por deter os nazistas no Donbass.
Em chamamento publicado pelo jornal Junge Welt, o Partido da Esquerda, que surpreendeu nas eleições de fevereiro por se apresentar como alternativa aos fascistas, chama a deter o rearmamento alemão, advertindo que “narrativas construídas e verdades parciais são usadas para minar atitudes e lições anteriores de duas guerras mundiais na consciência coletiva”.
“Como o mantra do ‘Exército Alemão subfinanciado’” e as histórias de horror “de um exército russo marchando em breve sobre Berlim.
“Merz e companhia estão explorando habilmente essa incerteza para iniciar um acúmulo de armas que acontece uma vez a cada século”, denuncia o documento.
Para os dirigentes de esquerda, “a estratégia da OTAN de prolongar esta guerra com investimentos maciços para aumentar o preço de sua rival imperial, a Rússia, está chegando ao fim para os Estados Unidos”.
“O governo Trump não vê mais nenhum benefício eficiente em investir nessa guerra, pois está cada vez mais claro que a Ucrânia não pode vencê-la militarmente. Devido à falta de reservistas ucranianos, a Otan agora teria que decidir: ou intervir mais abertamente nesta guerra, o que significaria oficialmente a Terceira Guerra Mundial, ou trabalhar para um fim político à guerra. A administração dos EUA parece ter optado pela última opção – não por amor à paz, mas para garantir a maior vantagem possível nesta situação”.
“Em troca das entregas anteriores de armas, os EUA querem garantir acesso às valiosas matérias-primas na Ucrânia com um acordo de matérias-primas. No entanto, o principal motivo para a reviravolta dos EUA é a reviravolta contra a China, o principal rival dos EUA no século XXI.”
Os dirigentes do A Esquerda destacaram que “a ideia de que os “europeus honestos” – ao contrário de Trump – querem ajudar apenas por razões humanitárias é falsa”. A ajuda financeira da UE à Ucrânia – ao contrário da dos EUA – é em grande parte “na forma de empréstimos”. “Macron está negociando ativamente o acesso às matérias-primas ucranianas, enquanto a CDU declara sem rodeios que a Europa ‘precisa’ dos depósitos de lítio na região de Donetsk.”
Para o documento, “o que está cobrando agora seu preço é que o governo alemão e os países europeus não tomaram nenhuma iniciativa diplomática séria para alcançar um cessar-fogo nos últimos três anos. “Eles alegaram estar organizando uma vitória militar – o que era irrealista desde o início. Agora Trump está tomando a iniciativa à sua maneira e negociando diretamente com a Rússia, inicialmente sem a Ucrânia na mesa.”
UE SE APEGA À ESTRATÉGIA FRACASSADA
“Mas em vez de aprender com esse desastre, partes do establishment alemão e europeu estão se apegando à estratégia fracassada”, sublinha o documento. Estratégia que é acompanhada pela afirmação de que a Rússia poderá “em breve atacar o território da OTAN”.
“O argumento segue uma estranha contradição: por um lado, alega-se que a Rússia é militarmente incapaz de derrotar a Ucrânia (se “ajudarmos”), mas, por outro lado, a Rússia pode estar no Reno depois de amanhã se não nos rearmarmos adequadamente agora usando fundos especiais.”
“Ambas não podem ser verdadeiras ao mesmo tempo. Incitar o medo de um ataque russo ao território da Otan serve principalmente para justificar a mobilização de recursos gigantescos para reforço militar”.
Quanto à “política externa baseada em valores” de Baerbock, não passa de “uma ilusão”. “De fato, foram os Estados europeus, especialmente a Alemanha, que apoiaram diplomaticamente as ações de Israel em violação ao direito internacional na Faixa de Gaza, no Líbano e na Síria, ao mesmo tempo em que continuaram a fornecer armas ao governo autoritário de Netanyahu.”
“O que estamos vivenciando não é uma luta por valores, mas uma disputa de poder entre Estados capitalistas pela redivisão do mundo”. Para os signatários, “as principais potências da UE não estão preocupadas apenas em proteger suas esferas de influência na Europa Oriental contra a Rússia. Eles também querem acompanhar os EUA, a China e outras potências emergentes na competição global – na luta por rotas comerciais, matérias-primas e mercados”.
REARMAR-SE CUSTE O QUE CUSTAR
O Partido da Esquerda aponta que “o mínimo denominador comum na UE é, antes de tudo, mais armamento em nível europeu. O pacote de armamento de 1 trilhão de euros agora anunciado tem como objetivo posicionar a União Europeia em termos de política de poder”.
“De qualquer forma, a competição intensificada – também por parte da UE – pela redivisão do mundo não é um bom presságio para os interesses dos pobres e da classe trabalhadora. Novas guerras por procuração no Sul global alimentadas pela UE e operações fora da área – inclusive sob a bandeira da UE – são inevitáveis”.
“Friedrich Merz quer rearmar-se, ‘custe o que custar’. Os planos incluem alterar a Lei Básica para iniciar o acúmulo ilimitado de armas com base em crédito. É mais um passo para tornar a República Federal “pronta para a guerra”. A alegação de que a Bundeswehr está subfinanciada é simplesmente falsa: a Alemanha já está em quarto lugar nos gastos globais com defesa.
“Os novos bilhões em gastos com armas não tornarão a Alemanha ou o mundo mais seguros, mas aumentarão o risco de guerra. Uma corrida armamentista global sempre segue a mesma lógica: se um Estado se arma, outro fará o mesmo”. Qualquer um que pense consistentemente na lógica da dissuasão inevitavelmente acaba no armamento nuclear da Alemanha e da Europa. No pior dos casos, essa espiral termina em uma grande guerra com muitos perdedores e apenas alguns vencedores.
“Em vez de continuar no caminho errado, devemos aprender as lições de duas guerras mundiais e nos opor a elas com todas as nossas forças – precisamos de um forte movimento internacional anti-guerra e de pressão social.”
NA PÁSCOA, MARCHAR PELA PAZ
“A diferença entre ricos e pobres está aumentando, e a infraestrutura social está sendo destruída. Com a crescente concentração de riqueza nas mãos de poucos, cresce a “fome” por novas oportunidades de investimento e mercados de vendas no mundo, o que aumenta ainda mais o perigo de guerra”, adverte o documento.
Para compensar o fardo financeiro do rearmamento, estão previstos novos cortes na renda e nas pensões dos cidadãos — e isso em um momento em que a previdência social já está sob pressão -, denunciam os líderes progressistas alemães. “A crise social e a crescente militarização são dois lados da mesma moeda”.
“A história mostra que guerras e rearmamento não são impedidos por cima, mas por aqueles que pagam o preço do rearmamento e seriam os primeiros a sofrer em uma guerra. Guerra e armamento não são do interesse dos pobres e da classe trabalhadora.”
Concluindo, eles convocam a fazer das próximas marchas de Páscoa – que se tornaram um símbolo da luta contra a guerra nuclear nos anos 1980 – em uma oportunidade importante para “tornar a resistência visível – e levá-la às ruas”.