CARLOS LOPES
O que tornava Aluísio Azevedo um escritor tão instável?
Autor da obra-prima do naturalismo brasileiro, O Cortiço, ele jamais se firmou solidamente nem ao menos no naturalismo – de onde oscilou para um medíocre e ultrapassado romantismo.
Escreveu muito – ou razoavelmente – mas, com exceção dos três livros mais famosos (O Cortiço, O Mulato e Casa de Pensão), há pouco que se aproveite, ou que tenha, do ponto de vista dos leitores, sobrevivido.
Quem, hoje em dia, lê Uma Lágrima de Mulher ou A Condessa Vésper ou Filomena Borges ou Mistério da Tijuca, e, mesmo, O Homem ou O Livro de uma Sogra?
Ninguém, ou, talvez, quase ninguém.
Alguns críticos atribuíram essa instabilidade na produção literária de Aluísio Azevedo à necessidade de ganhar a vida – e reforçaram essa opinião com o fato, verdadeiro, de que Aluísio abandonou a literatura quando conseguiu uma fonte de renda estável como funcionário público da diplomacia brasileira.
Entretanto, é difícil sustentar que ele somente escrevesse para ganhar o sustento. Tinha talento demais para isso. E ainda que comparações com outros escritores sejam pouco esclarecedoras, quantos não desenvolveram o seu talento exatamente porque conseguiram uma fonte de renda estável em outra função?
Estaria – em nossa opinião – muito mais próximo da verdade considerar que Aluísio Azevedo não foi além de O Mulato, Casa de Pensão e O Cortiço porque esgotou, nesses livros, o que tinha para dizer. E não foi pouca coisa. Quantos escritores, no Brasil ou em qualquer parte do mundo, escreveram três obras neste nível?
Mas tal consideração remete diretamente à pergunta: o que ele tinha para dizer? Ou: o que ele, então, disse?
Dos seus três principais romances, somente O Cortiço foi publicado após a Abolição da escravatura – e após a Proclamação da República -, em 1890.
Entretanto, nos três, inclusive neste último, sobreleva o abolicionismo do autor. Não se trata, aqui, de confundir a vida do escritor com sua obra, mas do conteúdo de seus livros – e do que ele pode nos revelar.
No primeiro deles, O Mulato (1881), Raimundo é filho de um português com uma escrava – isto é, uma negra. O racismo permeia o livro, inclusive tornando impossível o relacionamento de Raimundo com Ana Rosa, que, apesar de branca, é sua prima (e Raimundo, apesar de mulato, tem olhos azuis e é doutor formado em Coimbra).
A escravidão determina a estreiteza mental da sociedade maranhense que aparece no livro. Era algo que Aluísio, branco, mas filho de pais que não eram casados, conhecia muito bem. Reparemos que alguns dos personagens do romance são especialmente cruéis – por exemplo, Quitéria, a mulher de José, pai de Raimundo, manda torturar a mãe deste, a escrava Domingas. Ou a repugnante Dª Maria Bárbara, uma sádica (e, ao mesmo tempo, não por coincidência, carola).
Aliás, essa combinação de sadismo, racismo e carolice aparece explícita nesse retrato do Maranhão daquele tempo. Por exemplo:
“Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um filho de José da Silva. Chamou-se o vigário da freguesia e, no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.
“Essa criança era Raimundo.
“Na capital, entretanto, acalmavam-se os ânimos. José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados; relacionou-se com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. Dª Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira, rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era um homem, e o fato de não ser branco, constituía só por si um crime.
“Foi uma fera! às suas mãos, ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima, mãe dos infelizes.
“Ao lado da capela o cemitério das suas vítimas.
“Casara com José da Silva por dois motivos simplesmente: porque precisava de um homem, e ali não havia muito onde escolher, e porque lhe diziam que os portugueses são brancos de primeira água.
“Nunca tivera filhos. Um dia reparou que o marido, a título de padrinho, distinguia com certa ternura o crioulo da Domingas e declarou logo que não admitia, nem mais um instante, aquele moleque na fazenda.
“— Seu negreiro! gritava ela ao marido, fula de raiva. Você pensa que lhe deixarei criar, em minha companhia, os filhos que você tem das negras?… Era só também o que faltava! Não trate de despachar-me, quanto antes, o moleque, que serei eu quem o despacha, mas há de ser para ali, para junto da capela!
“José, que sabia perfeitamente de quanto ela era capaz, correu logo à vila para dar as providências necessárias à segurança do filho. Mas, ao voltar à fazenda, gritos horrorosos atraíram-no ao rancho dos pretos, entrou descoroçoado e viu o seguinte:
“Estendida por terra, com os pés no tronco, cabeça raspada e mãos amarradas para trás, permanecia Domingas, completamente nua e com as partes genitais queimadas a ferro em brasa. Ao lado, o filhinho de três anos, gritava como um possesso, tentando abraçá-la, e, de cada vez que ele se aproximava da mãe, dois negros, à ordem de Quitéria, desviavam o relho das costas da escrava para dardejá-lo contra a criança. A megera, de pé, horrível, bêbada de cólera, ria-se, praguejava obscenidades, uivando nos espasmos flagrantes da cólera. Domingas, quase morta, gemia, estorcendo-se no chão. O desarranjo de suas palavras e dos seus gestos denunciava já sintomas de loucura”.
Existem poucas cenas tão terríveis na literatura brasileira. Mas não é um exagero (veja-se, a propósito, um processo real, acontecido, por sinal, também no Maranhão, em nosso texto A Baronesa de Grajaú e outros casos da piedosa caridade dos escravagistas, HP 12/05/2017).
Quanto à Dª Maria Bárbara, a avó de Ana Rosa, eis um breve retrato:
“Era uma fúria! Uma víbora! Dava nos escravos por hábito e por gosto; só falava a gritar e, quando se punha a ralhar — Deus nos acuda! —, incomodava toda a vizinhança! Insuportável!
“Maria Bárbara tinha o verdadeiro tipo das velhas maranhenses criadas na fazenda. Tratava muito dos avós, quase todos portugueses; muito orgulhosa; muito cheia de escrúpulos de sangue. Quando falava nos pretos, dizia ‘Os sujos’ e, quando se referia a um mulato dizia ‘O cabra’. Sempre fora assim e, como devota, não havia outra: Em Alcântara, tivera uma capela de Santa Bárbara e obrigava a sua escravatura a rezar aí todas as noites, em coro, de braços abertos, às vezes algemados. Lembrava-se com grandes suspiros do marido ‘do seu João Hipólito’ um português fino, de olhos azuis e cabelos louros”.
A tragédia de Raimundo é que ele não consegue superar o racismo de que é vítima. Ele sofre o racismo, percebe a ligação deste com a escravidão, mas não consegue compreender como, ele, mulato de olhos azuis, formado em Coimbra, não ultrapassa aquele obstáculo, aquele preconceito. Por exemplo:
“— Mulato!
“Esta só palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos, que a sociedade do Maranhão usara para com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhe falavam sobre os seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e de sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: ‘Ora mire-se!’ a razão pela qual, diante dele, chamavam de meninos aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: ‘Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da tua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escrava! E tu também o foste!‘
“— Mas, replicava-lhe uma voz interior, que ele mal ouvia na tempestade do seu desespero; a natureza não criou cativos! Tu não tens a menor culpa do que fizeram os outros, e no entanto és castigado e amaldiçoado pelos irmãos daqueles justamente que inventaram a escravidão no Brasil!”
Entretanto, apesar de sentir o peso da escravidão – mesmo não sendo escravo, mas através do racismo – ele não o entende como um problema que vertebra a própria sociedade. Pelo contrário, quer fazer parte – e parte destacada – dessa sociedade que o rejeita:
“E Raimundo revoltava-se. ‘Pois, melhores que fossem as suas intenções todos ali o evitavam, porque a sua pobre mãe era preta e fora escrava? Mas que culpa tinha ele em não ser branco e não ter nascido livre?.. Não lhe permitiam casar com uma branca? De acordo! Vá que tivessem razão! mas por que insultá-lo e persegui-lo? Ah! amaldiçoada fosse aquela maldita raça de contrabandistas que introduziu o africano no Brasil! Maldita! mil vezes maldita! Com ele quantos desgraçados não sofriam o mesmo desespero e a mesma humilhação sem remédio? E quantos outros não gemiam no tronco, debaixo do relho? E lembrar-se que ainda havia surras e assassínios irresponsáveis tanto nas fazendas como nas capitais!… Lembrar-se de que ainda nasciam cativos, porque muitos fazendeiros, apalavrados com o vigário da freguesia, batizavam ingênuos como nascidos antes da lei do ventre livre!… Lembrar-se que a consequência de tanta perversidade seria uma geração de infelizes, que teriam de passar por aquele inferno em que ele agora se debatia vencido! E ainda o governo tinha escrúpulo de acabar por uma vez com a escravatura; ainda dizia descaradamente que o negro era uma propriedade, como se o roubo, por ser comprado e revendido, em primeira mão ou em segunda, ou em milésima, deixasse por isso de ser um roubo para ser uma propriedade!”
O entrecho de O Mulato decorre dessa inconsciência de Raimundo. Ele não é um conformista, mas é um ingênuo – por isso, foge com Ana Rosa. Exatamente o que o leva à morte por assassinato, sob os auspícios do cônego Diogo, que fornece a arma do crime, enquanto Ana Rosa é confinada (e imbecilizada) a um casamento detestável, com o próprio assassino de Raimundo – que, aos olhos daquela sociedade, tem uma vantagem: o marido é branco.
Em seu resumo sobre a literatura brasileira, Antonio Candido escreve, apenas: “Dos inúmeros narradores de tendência naturalista, o mais importante foi Aluísio Azevedo (1857-1913), que era também caricaturista e jornalista. Esta circunstância influiu na sua escrita e, quando avultou de maneira excessiva, comprometeu-a sob a forma de esquematização e sensacionalismo. Alguns dos seus muitos romances são apreciáveis, inclusive um dos primeiros, apesar dos traços melodramáticos, O Mulato (1881), estudo do preconceito de cor, tão odioso quanto irracional num país mestiço como o Brasil. Mais seco e melhor construído é Casa de Pensão (1884), violenta descrição dos descaminhos e da morte de um estudante. Mas ele só alcançou a maestria n’O Cortiço (1890), que denota influência direta de Émile Zola, sendo o único dos seus livros que se sustenta plenamente” (cf. Antonio Candido, Iniciação à Literatura Brasileira, Humanitas/FFLCH/USP, 3ª ed., 1999, pp. 57-58).
Dificilmente se pode dizer que O Mulato e Casa de Pensão “não se sustentem plenamente”. Quanto a O Cortiço, nós voltaremos a ele – e ao ponto de vista de Antonio Candido sobre ele.
Casa de Pensão (1884) pode ter sido, como escreveram alguns historiadores literários, calcado no assassinato de João Capistrano da Cunha, ocorrido em 1876. Entretanto, se esse caso real serviu de matriz para o autor, o que torna a história do livro um romance – e não uma reportagem ou relato – deve-se inteiramente a Aluísio.
O livro não é mais localizado no Maranhão, mas no Rio de Janeiro. Maranhense é o personagem principal, Amâncio, que chega à capital do país para obter um título de “doutor”.
Todos, na pensão, querem o dinheiro de Amâncio. Mas a origem do dinheiro, naquela sociedade, é a escravatura. Assim, por exemplo, o dono da pensão e assassino de Amâncio:
“João Coqueiro era fluminense e fluminense da gema. Nascera na Rua do Parto em uma das casas de seus pais, quando estes eram ricos.
“Que o foram. Viera-lhes a fortuna do avô materno, um português ambicioso e econômico, que a conquistara no tráfico dos negros africanos”
Ou, o próprio Amâncio, ainda que em um comentário de Mme. Brizard, a dona da pensão e mulher de João Coqueiro:
“Amâncio desejava unicamente que o amigo procurasse por onde andava o Sabino, que agora lhe fazia falta; e, caso o encontrasse, tivesse a bondade de remeter-lho; pois seria um grande favor.
“Veio à questão o quanto madraceavam os escravos ultimamente. Mme. Brizard jurou que não havia melhor vida do que a deles; disse que Amâncio fizera mal; em consentir que um negro de sua propriedade andasse por aí tanto tempo, sem lhe prestar contas; quando, alugado, lhe podia dar de rendimento pelo menos quarenta mil-réis mensais. E, de sua parte recomendou de Campos que fizesse diligências para descobrir o tratante e o deixasse ali, que ela mostraria se punha ou não a bom caminho”.
É interessante que o próprio Aluísio Azevedo tenha se preocupado em desmentir o que nós afirmamos acima, quanto ao caráter do livro:
“Não o qualifico de romance, porque tal não é o caráter que lhe tenciono imprimir. Não tenho igualmente a pretensão de fazer dele um livro científico, nem tão pouco realizar uma obra de arte. Apenas me proponho estudar uma das faces mais antipáticas de nossa sociedade – a vida em casa de pensão.
“Meu único fim é rasgar aos olhos do leitor a parede de uma dessas velhas casas de pensionistas, e expor na sua nudez fria e profundamente comovedora os dramas secretos que aí dentro se consumam, terríveis e obscuros, como a luta dos monstros no fundo do oceano.
“Desejo exibir toda a hediondez dessa existência que corrompe nossa sociedade, como uma moléstia secreta e inconfessável corrompe o organismo humano” (cit. em Ana Gomes Porto, “Pedaços de carne crua e ensanguentada”: uma análise de Casa de Pensão e Mistério da Tijuca de Aluísio Azevedo, Remate de Males – 29(2) – jul./dez. 2009, p. 220).
Essa introdução, no entanto, desapareceu quando o romance foi publicado em livro. E tanto se tratava de um romance que Aluísio desobriga sua obra de qualquer preocupação com a melhora ou a reforma dos costumes: “Os males reais só podem ser combatidos pela própria realidade” (idem).
O Cortiço (1890) é, unanimemente, considerado o melhor romance de Aluísio Azevedo. E, apesar da data de publicação (depois da Abolição e da República), seu tema principal é a escravidão.
Sem dúvida, João Romão, o dono do cortiço, é um canalha. Mas o que faz dele um canalha, senão, principalmente, a exploração do trabalho – e, inclusive, sexual – de Bertoleza?
Certamente, existem os outros personagens, habitantes do cortiço – Rita Baiana, Jerônimo, Pombinha, etc. – que também são explorados por Romão e sua ganância. Mas a história de Bertoleza, que acredita que comprou – com o próprio dinheiro – a sua alforria, somente para descobrir, ao fim do livro, que Romão roubou o seu dinheiro, e que ela continua escrava, apesar de ter dedicado o seu trabalho e o seu corpo àquele indivíduo, é o ponto mais comovente do romance.
Tudo acaba quando Romão, rico devido ao trabalho de Bertoleza, quer agora casar com Zulmira, filha de Miranda, outro português rico, elevado a barão pelo Império. Porém, há um obstáculo:
“Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo à vista de Bertoleza que, estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a camisa soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas e lustrosas.
“E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e bodum de peixe! Pois, tão cheiroso e radiante como se sentia, havia de pôr a cabeça naquele mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda carapinha da crioula?…
“- Ai! ai! gemeu o vendeiro, resignando-se.
“E despiu-se.
“Uma vez deitado, sem ânimo de afastar-se da beira da cama, para não se encostar com a amiga, surgiu-lhe nítida ao espírito a compreensão do estorvo que o diabo daquela negra seria para o seu casamento.
“E ele que até aí não pensara nisso!… Ora o demo!
“Não pôde dormir; pôs-se a malucar:
“Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera à Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que modo se veria livre daquele trambolho? E não se ter lembrado disso há mais tempo!… parecia incrível!
“João Romão, com efeito, tão ligado vivera com a crioula e tanto se habituara a vê-la ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição pensou em tudo, menos nela.
“E agora?
“E malucou no caso até às duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia seguinte, a contemplá-la de cócoras à porta da venda, abrindo e destripando peixe, foi que, por associação de ideias, lhe acudiu esta hipótese:
“- E se ela morresse?…”
A ideia de matar Bertoleza, a quem deve a sua ascensão financeira – inclusive a expansão do cortiço – é uma função da ganância que leva Romão, sem nenhum remorso, à solução final:
“E a crioula? Como havia de ser?
“Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por que lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os ricos móveis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de vir, não seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia como criada? Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até aí fizeram vida comum!
“Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico a esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si misteriosamente, palpitando ambos por ver a saída que o vendeiro acharia para semelhante situação.
“Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem tão importante e tão digno!”
E, mais adiante, João Romão torna mais explícito o seu caráter e desejo, que nada têm a ver com qualquer sentimento em relação à Zulmira, exceto o de ter por esposa a filha de um português rico e barão:
“E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.
“- É exato! E a Bertoleza?… repetia o infeliz, sem interromper o seu vaivém ao comprido da alcova.
“Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apagá-lo rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de reunir aos voos mais fulgurosos da sua ambição a ideia mesquinha e ridícula daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar no demônio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondá-lo ameaçadora e sombria; ali estava como o documento vivo das suas misérias, já passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser suprimida, porque era tudo que havia de mau na vida dele! Seria um crime conservá-la a seu lado! Ela era o torpe balcão da primitiva bodega; era o aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à porta da taberna; era o frege imundo e a lista cantada das comezainas à portuguesa; era o sono roncado num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a sua cúmplice e era todo seu mal – devia, pois, extinguir-se! Devia ceder o lugar à pálida mocinha de mãos delicadas e cabelos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flores nas jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas caras; era enfim a doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem trabalho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular dinheiro, rompendo e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu, algumas horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos prazeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.
“Mas, e a Bertoleza?…
“Sim! era preciso acabar com ela! despachá-la! sumi-la por uma vez!
“Deu meia-noite no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé ante pé, como um criminoso que leva uma ideia homicida.
“A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada de lado, com a cara escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo da cabeça. Aparecia-lhe uma parte do corpo nua.
“João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco.
“E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o grande estorvo da sua ventura!… Parecia impossível!
“- E se ela morresse?…
“Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém já amadurecida e transformada nesta outra:
“- E se eu a matasse?”
Porém, Romão não tem coragem (o termo, nesse caso, é esse, pois o seu ato final é mais covarde do que se tivesse pessoalmente assassinado Bertoleza) de matar a escrava. Esta, aliás, ao ouvir uma conversa, afronta o patrão e amásio:
“- Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira à toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!
“- Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te à toa?… perguntou o capitalista.
“- Eu escutei o que você conversava, seu João! A mim não me cegam assim só! Você é fino, mas eu também sou! Você está armando casamento com a menina de seu Miranda!
“- Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!… Não hei de ficar solteiro toda a vida, que não nasci para podengo. Mas também não te sacudo na rua, como disseste; ao contrário agora mesmo tratava aqui com o seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e…
“- Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer! Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus Nosso Senhor me deu força e saúde!
“- Mas afinal que diabo queres tu?!
“- Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois ganhamos juntos! quero a minha parte no que fizemos com o nosso trabalho! quero o meu regalo, como você quer o seu!
“- Mas não vês que isso é um disparate?… Tu não te conheces?… Eu te estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras! Descansa que nada te há de faltar!… Tinha graça, com efeito, que ficássemos vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento!
“- Ah! agora não me enxergo! agora eu não presto para nada! Porém, quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e aguentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo; agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não! assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, por que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?… Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!”
A solução de João Romão é denunciar Bertoleza, como escrava fugitiva, aos antigos donos. Bem entendido, Bertoleza não sabe que sua alforria, para a qual economizou o seu dinheiro, não foi paga, porque Romão roubou o dinheiro para instalar o cortiço. Ao perceber que terá de voltar à vida (?) de escrava, ela prefere se suicidar. A rigor, Romão mata Bertoleza, ainda que de maneira covarde e indireta:
“Bertoleza, que havia já feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras no chão, escamando peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele grupo sinistro.
“Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um calafrio percorreu-lhe o corpo.
“Num relance de grande perigo compreendeu a situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre: adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a ao cativeiro.
“Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe o ombro.
“- É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgraçada a segui-los. – Prendam-na! É escrava minha!
“A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou aterrada para eles, sem pestanejar.
“Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
“E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda numa lameira de sangue.
“João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o rosto com as mãos.
“Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma comissão de abolicionistas que vinha, de casaca, trazer-lhe respeitosamente o diploma de sócio benemérito.”
Nos concentramos na tragédia de Bertoleza e sua relação com João Romão, porque nos parece o núcleo de O Cortiço. Naturalmente, o livro não se resume a isso.
Como diz o crítico que citamos acima:
“É a história de uma habitação coletiva do Rio de Janeiro, segundo uma visão naturalista que se desdobra em simbolismos curiosos, inclusive porque percebemos que o cortiço é no fundo o próprio Brasil, regido pela exploração econômica do estrangeiro e a sujeição do povo humilde, que então era composto em grande parte de negros, mestiços e imigrantes pobres. O Cortiço ilustra uma contribuição importante do romance naturalista: a ampliação do panorama ficcional, pela franqueza realista com que descreveu e deu destaque a esta parte da população e seus ambientes, como se estivesse rejeitando a velha tendência transfiguradora da nossa literatura” (Antonio Candido, op. cit., p. 58).
Ou, em um ensaio dedicado especificamente a O Cortiço:
“O cortiço de Botafogo, estendendo-se rumo à pedreira (que ainda lá está, no fundo da rua Marechal Niemeyer, explorada a dinamite como no tempo de Jerônimo), é uma habitação coletiva que penetrou em todas as imaginações e sempre tirou o seu prestígio do fato de parecer uma imagem poderosa e direta da realidade. Mas em outro nível, não será também antinaturalisticamente uma alegoria do Brasil, com a sua mistura de raças, o choque entre elas, a natureza fascinadora e difícil, o capitalista estrangeiro postado na entrada, vigiando, extorquindo, mandando, desprezando e participando?” (Antonio Candido, De cortiço a cortiço, 1973, republicado em Novos Estudos nº 30 – julho de 1991, p. 119).
Alguns (inclusive Antonio Candido) apontaram L’Assommoir, de Émile Zola, como matriz de O Cortiço. Mas a comparação é superficial, tanto em relação ao cortiço, quanto a seus personagens – inclusive aqueles, como Miranda, Zulmira e a adulterina Estela, que não fazem parte do cortiço, exceto pela vizinhança -, quanto, antes de tudo, pela temática da escravidão e do racismo, que, mais uma vez, foi o tema de fundo de Aluísio Azevedo, tornando-o uma obra intensamente brasileira.
Nesse sentido – que é aquele que importa – Aluísio foi muito mais além do que Zola, não tanto em função das qualidades de um ou outro escritor, mas pela própria situação, que permitiu ao brasileiro fazer um romance nacional, um romance que expressa a sua nação, mas não permitiu o mesmo ao francês.
É interessante que, apesar disso, os críticos da época não tenham demonstrado, com uma exceção, interesse pela obra de Aluísio Azevedo.
José Veríssimo nota que o ano de O Mulato foi o mesmo das Memórias Póstumas de Brás Cubas, o primeiro livro da segunda fase de Machado de Assis.
Mas ele parece ignorar os livros mais importantes de Aluísio Azevedo. Ao invés disso, concentra-se em atacar O Livro de uma Sogra (1895), o último romance de Aluísio. Trata-se de um livro ruim, porém, mesmo assim, há conclusões de Veríssimo que são dificilmente sustentáveis:
“O Sr. Aluísio Azevedo é, sobretudo, o que se chama um intelectual, um cerebral; toda a sua psicologia é falseada pela sua exclusiva e, deixe-me dizer-lhe, perigosa preocupação intelectual e, o que é pior, literária, e como todos os seus congêneres, esquece dois elementos primordiais na questão: — o moral e o social” (cf. José Veríssimo, Estudos de Literatura Brasileira, primeira série, Garnier, 1901, Rio, pp. 49-50, ortografia atualizada por nós).
Sílvio Romero fez apenas alguns breves apontamentos (um deles em um livro sobre o naturalismo!), embora elogiosos:
“Aluísio, com a Casa de Pensão e O Cortiço, para não falar n’ O Mulato, O Coruja e O Homem, fez os dois livros mais verdadeiramente realistas de toda a literatura pátria” (cf. Sílvio Romero, O Naturalismo em Literatura, Tipografia da Província de São Paulo, 1882, p. 74, ortografia atualizada por nós).
E, num livro posterior, aliás, mais famoso:
“Quem já se lembrou de afirmar, exempli gratia, a superioridade do Homem de Aluísio Azevedo sobre a Relíquia de Eça de Queiroz? Pois já o deviam ter feito há muito, e assegurar o mesmo do Mulato e da Casa de Pensão, que são reveladores de mais talento e aptidões do que O Primo Basílio e O Crime do Padre Amaro. Estes tiveram apenas mais reclame” (cf. Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, Tomo Segundo, Garnier, 1888, p. 1041, ortografia atualizada por nós).
O grande crítico contemporâneo de Aluísio que deu atenção à sua obra – e que citamos acima como exceção – foi o cearense Araripe Júnior. Vejamos, resumidamente, o que ele escreveu, em um texto intitulado “Aluísio Azevedo, o romance no Brasil”, publicado em 19 de março de 1888:
“… creio poder considerar o dia da publicação do Mulato, no Maranhão, em 1881, como um dia propício às letras nacionais, não tanto pelo valor do livro, que saiu da forja cheio de grandes defeitos, mas pela espontaneidade do talento que o produziu.
“Obras como o Mulato têm, para mim, uma significação extraordinária. Estudadas à luz da impressão causada por uma primeira leitura, desfibradas até mostrarem a vibração do espírito, a hiperestesia da imaginação no ato de concebê-las e os recursos potenciais inexplorados do autor, essas obras oferecem quase a fórmula inteira de um temperamento literário, embora, depois, em outros livros mais pensados, mais característicos, se encontre a verdadeira garra do artista.
“… N’O Mulato existe, em germe, o Aluísio Azevedo que depois se manifestou na Casa de Pensão, na Filomena Borges, n’O Coruja, n’O Homem; e as qualidades que ali esplendem são as mesmas que lhe têm criado tropeços na execução de alguns livros, não contidas na fórmula de sua índole; são as mesmas que já anunciaram, em dois de seus romances, um observador de raça, e que farão d’O Cortiço, segundo todas as probabilidades, um romance nacional, na verdadeira acepção da palavra.
“Ou eu me engano, ou este maranhense, que eu desejaria ter observado de mais perto, em ato de concepção, para poder melhor defini-lo, é uma natureza feliz, planturosa, máscula, fadada, na literatura, a representar um papel correspondente ao de Balzac, se quiser entregar-se à mesma ginástica a que este se entregou, — se estudar, se estudar muito, se se dispuser a conquistar a ilustração do século. Não me refiro aqui à ilustração relativa desse homem de letras, que, afinal, para os nossos costumes, tem-na quanto bastaria para satisfazer às necessidades médias dos nossos círculos de leitores; falo nessa educação, nesse preparo gigantesco, nesses aparelhos modernos de erudição, nessas armaduras terríveis, fundidas nas forjas dos novos ciclopes, sem as quais todo o passo na literatura será acompanhado de uma concomitante dispersão de forças e de um naufrágio no ideal.
(…)
“O autor d’O Homem não deu ainda as suas provas decisivas: mas, pelo que conhece o público dos seus livros, e pelo que já se antevê, e está perfeitamente de acordo com a observação colhida do seu temperamento, do seu modus vivendi, ele pertence à raça dos compositores fortes, desanuviados e isentos de preocupações que não sejam avançar, — que não seja a gana do andamento, como mui bem define Bain” (cf. T.A. Araripe Júnior, Obra Crítica, Volume II, MEC/Casa de Rui Barbosa, 1960, pp. 63-64-65).
Em cinco de abril de 1888, Araripe Júnior volta a abordar a obra de Aluísio Azevedo:
“Disse anteriormente que a aparição d’O Mulato marcava uma época na história do romance nacional, porque este livro, apesar dos hiatos que podem ser apontados, revelou logo uma vocação instintivamente orientada para o naturalismo.
“Verdade é que a leitura d’O Mulato deixa uma impressão ambígua de escolas diferentes; mas este fato explica-se perfeitamente pelas condições de atualidade do espírito de quem o compôs, pela virgindade das faculdades que entraram na fatura da obra. Aluísio Azevedo não via em roda de si senão românticos; e todas as manifestações da arte brasileira impregnavam-se ainda, profundamente, ou do indianismo notável, que distinguiu Gonçalves Dias, ou da morbideza de Casimiro de Abreu, ou das audácias hugoicas de Castro Alves. Para que ele pudesse romper essa crosta e saísse do in pace literário, da indolência artística em que vivíamos, seria necessário que o seu intelecto tivesse sido muito cedo iniciado nos mistérios eleusinos da autocrítica. Um fato bastou, porém, para arrancá-lo a esse estado e atirá-lo repentinamente em um novo mundo de sensações. Esse fato foi a divulgação dos Rougon-Macquart, pela publicação do Primo Basílio, de Eça de Queirós.
(…)
“Há instantes em que se duvida que O Mulato seja uma obra naturalista, tantas são as ressonâncias das leituras e impressões primitivas; como que o romance se formara por estratificações muito visíveis; logo adiante, porém, a originalidade do autor ergue-se vitoriosa para impor-nos a sua visão de naturalista brasileiro, com uma verve, uma intensidade de colorido, que não deixa dúvida sobre a direção de suas faculdades. E foi precisamente essa novidade de vistas que me obrigou, em 1882, na Gazeta da Tarde, a dizer que sentia no estreante ‘um arrastamento indicativo de força, de fôlego, de pulso’, ‘um joyeux garçon’, ‘um temperamento jucundo, cheio de bonomias, idêntico a si mesmo’, e, mais que tudo, uma tendência para libertar-se logo dos grilhões da escola, eliminando cedo as superfetações de estilo que lhe impusera o modelo procurado.
“Aludo a Eça de Queirós, e, com efeito, a influência que este gentilíssimo escritor exerceu no autor d’O Mulato foi considerável, se atendermos que ela não chegou-lhe até a alma, mas somente até as raízes da expressão literária. E não podia ser por menos, porquanto dois autores só se penetram completamente quando há entre os mesmos identidade ou proximidade de temperamento. Ora, Eça de Queirós, pelo sentimento, está tão longe de Aluísio como o Rio de Janeiro de Lisboa. As respectivas zonas mentais têm fauna e flora de todo diferentes” (cf. T.A. Araripe Júnior, op. cit., pp. 78-79).
Há implicitamente, neste artigo, um tentativa de explicar o que chamamos “instabilidade” de Aluísio Azevedo, o que aparecerá mais ainda em um artigo publicado dois dias depois:
“Depois da brilhante estreia d’O Mulato (1881-1882), o autor andou a satisfazer a avidez dos leitores de rodapé, escrevendo as Memórias de um Condenado e Os Mistérios da Tijuca, vazando-os, embora com muitas restrições, nos moldes de X. de Montépin e de Ponson du Terrail. Durante este período, perguntei-lhe, por mais de uma vez, se lhe aprazia assanhar essa fera chamada — público, — atirando-lhe pedaços de carne crua e ensanguentada, como costumam fazer os domadores, para mostrar mais realçadas as suas qualidades dominadoras. A resposta a estas e outras injunções foi o aparecimento de Casa de Pensão” (cf. T.A. Araripe Júnior, op. cit., p. 83).
Essa oscilação entre a subliteratura (Montépin, Terrail) e o campo da literatura (Zola, Eça) parece ter relação com o tema de Aluísio, a escravidão. Nos livros em que não conseguiu enfrentar o problema, central para a sociedade da época, ele parece resvalar para o que Araripe considerava literatura “de rodapé”.
No século XX, a abordagem do problema por Alfredo Bosi foi convencional:
“Essa luta com a pena pelo pão certamente explica o desnível entre seus romances sérios (O Mulato, Casa de Pensão, O Cortiço) e os pastelões melodramáticos de ‘pura inspiração industrial’, no dizer de José Veríssimo (Condessa Vésper, Girândola de Amores, A Mortalha de Alzira…). E talvez à mesma causa se possa atribuir o estranho abandono das letras que se lhe nota a partir dos quarenta anos, quando entra para a carreira diplomática e se elege membro da academia recém-fundada” (cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, Cultrix, 1994, p. 188).
Porém, Nelson Werneck Sodré observa a própria falta de raízes do naturalismo no Brasil e sua superficialidade geral. Daí, seu julgamento sobre a obra de Aluísio Azevedo:
“Aluísio Azevedo é um exemplo no naturalismo brasileiro, do escritor que trabalha constrangido pela fórmula e que vacila entre o desregramento romântico, a que se submete demasiado facilmente, embora lamentando o fato, e o espartilho naturalista, que o deixa peado, a que obedece a contragosto. Não poderia haver contensão absoluta na obediência, daí a mistura de elementos românticos, quando a vigilância afrouxa, e de elementos simpáticos ao autor, quando os costumes aparecem e ele os faz desfilar. Sente-se bem assim, os seus dotes de observação encontram um campo bastante amplo, vê os detalhes e vê o conjunto. Duas ou três vezes, anda à beira da concretização de circunstâncias favoráveis e da realização feliz, com Casa de Pensão, com O Coruja; um dia corresponde à plena coincidência de tudo, e surge O Cortiço, um grande livro brasileiro, pintura expressiva do quadro social, flagrante singular da vida. No mais, é o desmando da receita, a fisiologia vulgar e até com pretensões didáticas de O Homem e do Livro de Uma Sogra, em que a falsidade não pode ser compensada pelo pretenso realismo, e é até mais falsa por isso mesmo. O Mulato é uma prova de admissão, em que confluem todos os defeitos e todos os contrastes do autor e da escola, mais os de sua adaptação a um meio, como o da província, em que os problemas tinham características e dimensões totalmente diversas daquelas do meio originário da fórmula. Aluísio Azevedo, entretanto, sendo um iniciador, foi também o maior dos naturalistas brasileiros, e O Cortiço é o grande livro que a escola nos deixou” (cf. Nelson Werneck Sodré, História da Literatura Brasileira, Difel, 7ª ed., 1982, pp. 391-392).
Aluísio Azevedo escreveu um romance nacional. Aliás, não somente O Cortiço, mas também Casa de Pensão e O Mulato são representações do Brasil. Mas nenhuma tão elevada quanto O Cortiço. Alguns anos depois de sua morte, em janeiro de 1913, Lima Barreto pretenderia que Aluísio fora um escritor superior a Machado de Assis – o que é um evidente exagero, bem característico de Lima Barreto, mas não deixa de ter uma base nos três principais livros de Aluísio, os únicos romances, em sua época, a não desaparecer diante da segunda fase machadiana.
Que haja desistido de escrever – com exceção de seus apontamentos sobre o Japão – após a Abolição e a República significa que esgotara seu assunto.
Ou que seu assunto se esgotara. A época já era outra.