(03/06/2016)
Esta é uma passagem especialmente elucidativa de “Consciência e Realidade Nacional”, do filósofo Álvaro Vieira Pinto.
O livro, publicado pelo Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) em 1960, é uma obra monumental, que resume o nacionalismo brasileiro do ponto de vista da teoria do conhecimento. Vieira Pinto, que, após o golpe de 64, viveria o exílio, a prisão e as perseguições, deixou, também, entre seus inúmeros outros trabalhos, outra obra monumental, “O Conceito de Tecnologia”, a que já nos referimos em edições passadas. Preferimos, aqui, não fazer outros comentários sobre o texto que hoje publicamos, deixando ao leitor a sua completa e livre fruição. Apenas advertimos que condensamos, por motivos jornalísticos, o texto original – e redividimos os parágrafos, pelas mesmas razões.
C.L.
ÁLVARO VIEIRA PINTO
O desenvolvimento do País efetua-se principalmente pela intensiva industrialização. Como tal deve entender-se não apenas o emprego da máquina na produção de artefatos, mas igualmente na produção agrícola.
A industrialização fornece o índice mais visível da mudança qualitativa da realidade nacional, pois exprime um conjunto de alterações econômicas e sociais inéditas, os que a tornaram possível e as que dela resultam.
Oposta à velha sociedade agrária, caracterizada pelas manufaturas primitivas, a exportação de produtos alimentares e de minérios brutos, o diminuto mercado interno, a ausência de rede nacional de comunicação, a sociedade desenvolvida se constitui pelo aproveitamento completo dos seus recursos, vale dizer, por levar até a fase final a fabricação dos bens de que necessita.
Isto implica em proceder ela mesma às operações transformadoras da matéria-prima que possui, até obter o objeto acabado. Significando a industrialização a mudança qualitativa da sociedade, mediante a qual se aparelha para levar a cabo as fases superiores da cadeia de atos produtivos, de modo a engendrar no seu interior a totalidade do produto, essa radical diferença de estrutura importa em completa utilização por ela mesma dos recursos de que dispõe, e evidentemente obriga a cessar a prática colonial de exportar as matérias-primas minerais para serem elaboradas alhures.
A industrialização é sinal de desenvolvimento porque indica que a comunidade nacional se aparelhou para fabricar por si e para si os bens materiais de que necessita. Quando os mandava vir de fora, muitas vezes produzidos com as substâncias que exportava, era subdesenvolvida porque dependia da indústria alheia para realizar as operações mais complexas, nobres e difíceis da fabricação dos artefatos. Instituindo em seu espaço interno fábricas que dispensam a remessa das matérias-primas e o posterior recebimento dos bens acabados, o País concluiu uma etapa do seu processo nacional, deu um salto qualitativo que o dota de novo ser histórico. Passa a ser dono da inteira linha de operações que conduz do material bruto à coisa formada.
Entretanto, é imprescindível deixar claro que a industrialização só indica real ascensão histórica da comunidade quando os atos criadores dos bens não apenas se realizam dentro dela, pelo seu trabalho autêntico, mas são feitos por ela em seu imediato proveito. A nação precisa ter o completo comando do seu aparelho econômico, para conduzir a sua industrialização em condições que excluam a espoliação por parte de outra.
Com esta observação patenteia-se um aspecto da teoria da industrialização que, não fosse aclarado, poderia induzir a enganoso julgamento e ocasionar graves confusões nas propostas da política nacionalista.
Queremos referirmos ao fato de não ser qualquer industrialização que significa o real progresso da sociedade a uma etapa superior de desenvolvimento, mas somente aquela que é feita mediante o integral processamento das operações fabricadoras pelos verdadeiros agentes do processo nacional.
Tão inexpressiva das reais possibilidades de desenvolvimento do País é a industrialização feita aqui pela implantação de indústrias estrangeiras, de capital e comando alienígena, quanto a que tem lugar no interior de outro pais com as nossas matérias-primas. Se a indústria sediada no País não nos pertence de fato, ou seja, se não estão em nosso poder todos os fatores produtivos, devemos, para efeito de apreciar o grau de avanço do nosso processo de libertação econômica, considerar tão inexistente essa industrialização quanto se estivesse localizada fora do nosso território e apenas para cá remetesse mercadorias.
A indústria estrangeira é sempre indústria no estrangeiro. Sem dúvida, o emprego da mão-de-obra local e o adestramento técnico nativo contribuem para estabelecer certa diferença entre um caso e outro, e dar um mínimo de valor útil à indústria estrangeira implantada no país. Mas na prática esse proveito torna-se imperceptível, e mesmo em alguns casos ilusório, comparado com as ruinosas consequências que tem para o curso geral do desenvolvimento nacional a entrega da nossa indústria ao capital estrangeiro, É uma política que não contribui para suprimir as servidões econômicas, antes as multiplica e reforça. Cria a falsa consciência industrial, a que julga haver o País se agigantado porque ostenta um parque fabril relativamente desenvolvido e promissor.
Na verdade, essa industrialização não constitui sinal da nossa expansão, mas da expansão estrangeira sobre nós. Não caracteriza o nosso próprio desenvolvimento mas o desenvolvimento dos outros em nossa terra. Os que se alvoroçam com essa industrialização não veem quanto ela é parasitária das energias nacionais, consistindo no empréstimo de máquinas trasladadas para aqui a fim de transportar, figuradamente, grandes massas de trabalhadores coloniais a baixo salário para o interior da economia da grande nação estrangeira.
De fato, ao se instalarem aqui as fábricas alheias, tudo se passa, se considerarmos as consequências mais gerais deste fato, como se mandássemos numerosos contingentes de nossos operários ir trabalhar lá fora, a um preço de mão-de-obra inferior ao que essa indústria teria de pagar aos seus próprios operários natos caso os quisesse empregar.
Significa isto que exportamos a mão-de-obra nacional sem fazê-la sair do nosso território, mas fazendo sair, isso sim, os lucros que advêm do trabalho dela.
Claro está que todo trabalho traz sempre vantagens e deixa no País resultados úteis; por exemplo, melhora as condições de vida da classe operária, desenvolve a sua consciência social, leva as fábricas estrangeiras a pagar impostos, dá renda às instituições de previdência, consome matérias-primas nacionais etc. Mas, na perspectiva de um pensamento sociológico e político, e não apenas econômico, estes fatos são secundários, enquanto o essencial está em saber se ao lado de certos efeitos valiosos que possam alegar não ocultam malefícios reais ao processo da nossa emancipação, impedindo o País de executar uma política econômica que, dando os mesmos favoráveis resultados, tenha como finalidade última conquistar a nossa plena autonomia.
Os economistas que apontam as relativas vantagens da industrialização pelo capital estrangeiro pensam de modo não dialético, ficam presos à imediatidade dos fatos, e perdem de vista o caráter global do processo social, esquecem os fins conscientes que cada comunidade tem o direito de conceber para si. Favorecer a entrada da indústria estrangeira é favorecer a saída do trabalho nacional. É degradar o valor humano do nosso operário, admitindo que a sua situação de habitante do país pobre jamais lhe permitirá constituir-se em força capaz de criar o País que atenda às suas exigências.
Estas reflexões indicam não ser conveniente endeusar a industrialização sem qualificá-la devidamente. O surto de transferência para o nosso interior de tantas indústrias alheias apenas prova a perspicácia comercial dos capitalistas estrangeiros, divisando a rica fonte de lucros representada pelo nosso crescente mercado interno. Temos nesse movimento o indício de que, com mais forte razão, deveríamos aproveitar para nós, ou seja, pelo estabelecimento da indústria nacional autêntica, as evidentes oportunidades de alta retribuição que o nosso mercado oferece.
Por esse motivo torna-se necessário que o programa político nacionalista discrimine as diversas espécies de indústrias que procuram instalar-se no País. Precisa discriminar as propostas de implantação de indústrias, mesmo as que se mascaram de nacionais, segundo o critério que apontamos, sabendo não ser toda e qualquer industrialização que nos convém, pois algumas há que são tão nocivas, — ou ainda mais —, quanto a pura e simples exportação de matéria-prima.
Observando a marcha avassaladora do pensamento nacionalista, e temendo um golpe revolucionário que imponha a violenta nacionalização das empresas estrangeiras, o capital colonizador adota duas linhas táticas: uma, combater o progresso do nacionalismo, lançando mão para isso de todos os meios de publicidade que lhe faculta a sua rica margem de lucros; outra, “nacionalizar-se” mediante manobras e expedientes jurídicos de fachada.
Não lhe servirão, no entanto, estes estratagemas para eximi-lo das justas reivindicações da consciência nacionalista, a qual, no devido momento, saberá como atravessar essa “cortina de requerimentos”, assim como terá sabido, antes, refutar as maliciosas insinuações e os argumentos especiosos dos serventuários do dinheiro estrangeiro.
O policiamento do processo de industrialização aparece agora como exigência vital da consciência crítica do nosso desenvolvimento. Em fase anterior, quando ainda era tolerável relativa participação do capital forâneo, representado, principalmente, pela transferência de indústrias para o nosso País, bastava um critério frouxo de discriminação; hoje, porém, radicalizaram-se as exigências, a ponto de nos parecer inconveniente qualquer novo investimento privado ou instalação de indústria de procedência externa, que, direta ou indiretamente, venham enfraquecer o processo acumulativo do nosso capital autêntico ou impliquem a ocupação pelo empresário estrangeiro do lugar reservado a uma futura fábrica nacional.
Temos de precaver-nos, fechando as portas ao que se deverá chamar “indústria de arribação”, conduzida por capitais volantes, que aqui vêm com intuito predatório.
Nessa conjuntura o grande país hegemônico passa a adotar nova política imperialista. Como perdeu a capacidade de produzir em condições que um país dominado ainda consegue aproveitar, não pode mais ter o tipo de lucro que o menor ainda obtém. Procurará então fazer com que este trabalhe para ele, transferindo-lhe, ao final, os lucros que o seu enorme desenvolvimento já não lhe permite arrecadar diretamente. Vale-se para isso do natural desejo de desenvolvimento existente no país atrasado, o qual muito se regozija em verificar que está crescendo aceleradamente, embora não perceba que é vítima de um falso crescimento, o “crescimento para outro”.
É natural que tenhamos de atravessar certas fases do desenvolvimento, mas precisamos fazê-lo de maneira qualitativamente distinta [dos países centrais], e em outra direção, aquela que nos conduza ao pleno desenvolvimento sem nos tornar imperialistas, dando-nos a completa independência para nós e não para outro. Eis porque se torna imperioso policiar o processo do nosso desenvolvimento, evitando que venhamos a cair na órbita do desenvolvimento do país superimperialista, o que faria do nosso crescimento um ridículo progresso, que haveríamos de pagar caro, ao preço de violentas lutas para algum dia nos emanciparmos economicamente. O perigo do desenvolvimento sem emancipação está justamente nisto: em nos converter em instrumentos do interesse da nação hegemônica, que muito fará para nos industrializar, pois será o meio de evitar que outros países submissos o façam.
Desejávamos expender estas considerações para corroborar a principal tese desta carta de princípios nacionalistas, a que declara não ser o desenvolvimento enquanto tal que representa agora a conduta objetiva autêntica em nosso processo histórico, mas tão somente o desenvolvimento enquanto instrumento da emancipação política e econômica nacional. A industrialização pode converter-se em sedutor equívoco, se for entregue a outros para que a realizem aqui. Se não conquistarmos o comando do nosso processo, impulsionando-o com o exclusivo apelo ao trabalho do povo, repelindo totalmente a contribuição do capital alheio, corremos o perigo de enveredar pela estrada de ilusória prosperidade, a que seria adquirida com a labuta de uma população espoliada e que nos levaria a funestas conjunturas internacionais.