(HP 05/05/2015)
O que hoje se publica nesta página é uma pequena condensação – melhor seria dizer: uma coletânea de trechos – da aula inaugural com que o filósofo Álvaro Vieira Pinto, no dia 14 de maio de 1956, iniciou os cursos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), órgão do então Ministério da Educação e Cultura que tornou-se um dos objetos persecutórios da reação entreguista (entre as instituições legais, somente o CGT e a UNE despertavam tanto ódio, nos lacerdistas e assemelhados, quanto o ISEB).
Os intelectuais do ISEB – Álvaro Vieira Pinto, Nélson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos, Roland Corbisier e outros mais – foram responsáveis por fundamentar o conceito de nacional-desenvolvimentismo. Daí, o rancor que granjearam entre os que se alinhavam debaixo do imperialismo norte-americano, bem expresso no furor com que destruíram a sede do ISEB, inclusive a sua biblioteca, durante o golpe de 1964.
O conteúdo desta aula inaugural foi bem resumido no título sob o qual ela foi posteriormente publicada: “Ideologia e Desenvolvimento Nacional”. Assim, pretendemos dar aos leitores uma amostra do pensamento nacionalista de Álvaro Vieira Pinto e um resumo das principais teses apresentadas no texto.
No momento em que o Brasil, novamente, enfrenta a opção de ou ser independente para crescer ou fenecer sob a dependência – sobretudo quando esta última é a opção escolhida pelo governo – as ideias do filósofo são mais que atuais, são imprescindíveis.
C.L.
ÁLVARO VIEIRA PINTO
O homem que possui uma ideia é ao mesmo tempo um homem possuído por essa ideia. No momento em que se delineia claramente em seu espírito a representação de certo fato ou situação, com a consciência dos determinantes dela e a perspectiva das consequências, passa ele necessariamente a agir em função de tal representação. Desse modo, a ideia deixa de ser tida como dado abstrato, para ser considerado como realidade eminentemente social.
O primeiro ponto que devemos desde logo estabelecer, premissa de tudo quanto se segue, é este: desenvolvimento nacional é um processo. Esta afirmação é de importância capital. Que quer dizer? Significa que não podemos compreender o desenvolvimento nacional como movimento histórico casual, indeterminado, imprevisto, ocorrendo desordenadamente, sem legalidade interna, mas, ao contrário. Assim, a consideração do desenvolvimento nacional, como submetido à categoria de processo, obriga a que se tenha dele uma compreensão dinâmica, orgânica. Em consequência deste ponto de vista, temos de aplicar à noção de desenvolvimento nacional os demais aspectos da categoria de processo, especialmente os de finalidade, unidade, especificidade e o de ideia diretriz, que os resume a todos.
A noção de desenvolvimento nacional, como processo social orgânico, postula uma ideia diretora, aquela à luz da qual é o processo compreendido e interpretado. Sem ideia, não vemos mais que a sucessão empírica, privada de sentido e de inteligibilidade. Só quando subordinamos os fatos e o seu desenrolar a uma interpretação que, em última análise, decorre de um projeto, é que lhes damos consistência histórica. Só então é possível falar em desenvolvimento nacional.
Por falta de consciência própria utilizávamos o que era próprio de consciências alheias e pelo modo como essas nos pensavam é que igualmente nos compreendíamos. Estávamos assim entregues ao ponto de vista alheio, regulávamos o juízo sobre nós mesmos pelo modo de pensar alheio, isto é, estávamos, no sentido rigorosamente etimológico da palavra, alienados. A alienação foi o traço peculiar à nossa sociedade até o presente. A consciência com que nos concebíamos sempre foi uma consciência alienada. Ora, este é um fenômeno típico, específico do status colonial. O próprio da colônia é não possuir consciência autêntica, é ser objeto do pensamento de outrem, é comportar-se como objeto. O representar-se a si próprio como objeto, sabendo que tem em outro o seu sujeito, é a essência do ser colonial.
Mas, quando numa comunidade·nacional, chega o momento histórico em que começa a ver-se como possível sujeito, e logo depois, como sujeito de fato, produz-se a transformação qualitativa da consciência, de alienada em autêntica. É a aurora da nova fase histórica, a descoberta pelo país do seu verdadeiro ser, a qual em muitos de nós se faz de modo fulminante, como revelação iluminadora, determinando em todos radical alteração nos comportamentos sociais e na apreciação dos valores. Começando a sentir-se como sujeito, o país percebe que aquilo que até então compreendia de si não tem mais significação real, porque se aplicava a um ser que agora ele já não é mais.
A consciência brasileira, em virtude do ponto a que chegou o processo do desenvolvimento material da nação, alcançou aquele grau de claridade que começa a permitir-nos a percepção exata do nosso ser. Cremos estar agora em condições, à vista do exposto até aqui, de enunciar o que poderíamos chamar a tese central desta preleção, e que reduziríamos aos seguintes termos: sem ideologia do desenvolvimento não há desenvolvimento nacional.
Com efeito, desde que reconhecemos no crescimento nacional a existência de um processo histórico, sua associação a um conteúdo ideológico é imediata. Mostramos que todo processo histórico supõe a ideia segundo a qual é compreendido, e portanto exige uma consciência na qual essa ideia é ideia. Não há pois, ato progressivo algum que não postule uma ideia ou, afinal, uma teoria. Só é possível conceber o desenvolvimento nacional como processo à luz de uma teoria interpretativa da realidade brasileira, assim como só é possível projetar as etapas futuras do desenvolvimento se nos valermos dos conceitos gerais dessa interpretação. Fora disso, é deixarmo-nos ir ao sabor dos movimentos eventuais, das improvisações de curto alcance, e frequentemente em retrocesso, das iniciativas isoladas e às vezes inoportunas, caminhando em marcha atáxica para fins imprevisíveis.
Podemos considerar adquirido este ponto capital: é imprescindível a ideologia do desenvolvimento nacional. Contudo, dissemos anteriormente que a ideologia é apenas o aspecto social daquilo que, no indivíduo, é a consciência de uma ideia. Daqui se deduz uma segunda tese, que, embora consequência da primeira, não é menos importante: a ideologia do desenvolvimento tem necessariamente de ser fenômeno de massa.
É de decisiva significação este enunciado, pois, se verdadeiro, deverá comandar todo o rumo da ação política, além das repercussões históricas que provoca. Essa tese oferece dois aspectos a considerar: de um lado, a afirmação positiva, por si mesma suficientemente clara, de que as ideias diretrizes do projeto de desenvolvimento têm de estar na consciência popular geral, em máxima extensão quantitativa possível.
Como corolário, depreende-se desde logo que aquele projeto será tão mais felizmente concluído quanto mais ampla for a sua propagação ideológica. A ideologia do desenvolvimento nacional só revela plena eficácia quando o seu sustentáculo social reside na consciência das camadas populares. E aqui se coloca uma terceira afirmação, logicamente deduzida da anterior: o processo de desenvolvimento é função da consciência das massas.
A constituição da ideologia é, portanto, acontecimento social que depende estritamente do número de indivíduos em cuja consciência se instale a ideia. O processo de desenvolvimento está pois em função direta do esclarecimento da consciência popular, ou seja, tem velocidade proporcional ao número de indivíduos nos quais se efetua a transmutação qualitativa que os conduz do estado de consciência privada ao de consciência pública.
É preciso que o projeto de desenvolvimento seja assimilado pelo povo e termine por identificar-se à consciência das massas. Dizemos identificar-se no sentido rigoroso da palavra, isto é, em vez de ser apenas simples revestimento daquela consciência por certa ideia, que seria nela realidade adjetiva ou atributo acidental e transeunte, trata-se, ao contrário, de identificar realmente, e portanto de definir a consciência das massas pela ideologia de que estejam possuídas.
O conjunto de manifestações sociais que se denominam, de modo geral, reivindicações populares – direitos, salários, condições de vida etc. -, apresenta-se fenomenalmente sob a forma de pressão exercida sobre as classes dirigentes, mas, em verdade, é apenas expressão da exigência de desenvolvimento. Essas reivindicações exprimem a desconformidade entre a representação consciente que as massas fazem do seu estado vital e as condições econômicas e sociais do meio onde habitam. Se encobrem alguma oculta malícia ou desígnio psicológico no seu clamor e na sua oposição, fornecem com isso indício evidente da imperiosidade de progredir.
Se a cadeia de argumentos que estamos desenvolvendo tem fundamentos de verdade, uma quarta e última tese se impõe obrigatoriamente: a ideologia do desenvolvimento tem de proceder da consciência das massas. A verdade sobre a situação nacional não deriva da inspeção externa feita por um clínico social, historiador, sociólogo ou político, mesmo supondo-se geniais esses homens. Essa verdade só será dita pela própria massa, pois não existe fora do sentir do povo, como proposição abstrata, lógica, fria. Não é uma verdade enunciada sobre o povo, mas pelo povo.
A ideologia do desenvolvimento só é legítima quando exprime a consciência coletiva, e revela os seus anseios em um projeto que não é imposto, mesmo de bom grado, às massas, mas provém delas. Noutras palavras isso quer dizer que a condição para que surja a ideologia do progresso nacional é mais do que a simples justaposição das classes dirigentes e do povo, mesmo harmoniosa, pacífica e consentida; é a existência de quadros intelectuais capazes de pensarem o projeto de desenvolvimento sem fazê-lo à distância, mas consubstancialmente com as massas. Esse fato não deve ser visto como carregado de sentido trágico, como pressagiando sangrentas revoluções sociais. Muito ao invés, nele achamos auspicioso indício de solução, no atual momento brasileiro, das divergências de classes, dos problemas nacionais em geral, visto indicar a forma de conceber o projeto autêntico de desenvolvimento, o qual, por isso que é autêntico, convém e resolve, isto é, supera a situação que gerava os descontentamentos.
Embora tenhamos delineado, nas proposições fundamentais anteriores, a exigência de ideologia e os caracteres que deve possuir para ser uma teoria capaz de acelerar o processo nacional, poderá alguém objetar-nos que tudo quanto dissemos até agora pouco significa, uma vez que não apresenta aquilo que talvez mais importa conhecer: em que consiste essa ideologia, qual o seu conteúdo positivo de afirmações práticas, que diz ela diretamente sobre os problemas atuais da existência brasileira, que soluções aconselha, que socorro imediato traz, sob forma de regras de ação, aos homens de governo, aos empresários privados, aos que de fato executam o movimento de progresso?
Além dessa interrogação, outra não menos grave se impõe: como se há de manifestar essa ideologia na consciência das massas, como poderá difundir-se na camada já consciente do povo, a ponto de identificar-se com ela e representar-lhe as reivindicações mais profundas? Examinaremos, rapidamente, uma e outra destas questões.
A primeira diz respeito ao conteúdo material, objetivo e político da ideologia do desenvolvimento. É exato que as reflexões anteriores não fizeram mais do que estabelecer a necessidade da teoria ideológica para a direção do processo nacional, e revelar alguns dos caracteres formais de que se reveste. Mas, de modo algum julgamos que nessas indicações gerais, por si já muito úteis, se esgote a análise teórica do processo histórico do crescimento nacional, e que o projeto da indispensável ideologia se limite a essas afirmações formais, como se não importasse considerar o conteúdo concreto de normas objetivas, referido à realidade brasileira da atual fase histórica.
Um dado exato, como, por exemplo, o número de habitantes de qualquer Estado brasileiro, encerra em si mesmo a sua verdade social, ao dizer-se que esse número é tal. Objetivamente nada mais diz. Inserido, porém, na perspectiva ideológica, adquire novo sentido, que supera e transforma o conceito aritmético, para oferecer-se como valor, como número excessivo ou escasso, índice de condições de vida humana, de estágio econômico, de riqueza cultural etc., quer dizer, não é mais dado bruto e neutro e sim problema.
Por conseguinte, aquele dado, inerte no campo demográfico, reclama toda uma ideologia para ser entendido em sua significação temporal e utilizado no movimento de progresso.
A categoria de unidade que, conforme vimos, é uma das condições inerentes à noção lógica de processo, projeta-se no domínio da ação, como diretriz empírica, determinando a seguinte regra na promoção dos planos de desenvolvimento: o processo nacional é um todo orgânico, o seu movimento é um só. Isto significa que, por mais especializados que sejam os setores onde se situam os problemas, estes não podem ter soluções à parte. Todos os problemas são na realidade um só, o problema do nosso desenvolvimento, e, deste ponto de vista, é preciso conceber cada solução particular em função do projeto geral. Expressa em tais termos, a regra talvez pareça um truísmo, mas a verdade que enuncia adquire colorido diferente e revela inesperada profundidade quando imaginamos qual será o seu alcance, o seu rendimento operacional, se penetrar e dominar a consciência dos responsáveis pela ação de governo e a da massa esclarecida.
Se essa tese se converter em estado de espírito generalizado, ou seja, se a ideologia do desenvolvimento se expandir e tornar-se preponderante, o sentimento popular passará a reagir de forma nova e original, porque, em vez de clamar pela solução de um problema isolado, por mais imediato, cruciante e pessoal que seja, reclamará antes a solução conjunta da contextura dramática em que o problema se apresenta.
A elite – se quisermos admitir-lhe a existência – só será autêntica se constituída por aqueles que forem os primeiros a compreender a nova consciência nacional. Não é mais no sentido da cultura refinada, do falso humanismo de tipo clássico, do beletrismo improdutivo, que teremos de falar em elites. Estas, de agora em diante, implicam a vivência profunda do ser do Brasil, a perfeita identificação com os sofrimentos do povo, a consciência clara da distinção entre o que é sem importância e o que é sério, neste momento, entre o que é questão de superfície e o que fermenta nas profundezas, e só quando se tiverem suficientemente caracterizado em sua nova função social e começarem a surgir os frutos da sua atuação histórica é que serão reconhecidas como elites.