(HP 12/06/2013)
O artigo abaixo – inacreditavelmente, por sua atualidade – tem 53 anos de idade. Escrito pelo maior educador de sua época, talvez de nossa História, Anísio Teixeira, foi publicado, com o título “A nova Lei de Diretrizes e Bases: um anacronismo educacional?“, pela revista “Comentário” (jan./mar. 1960, p.16-20).
O texto é uma resposta ao líder da UDN e do golpismo fascista e pró-imperialista, Carlos Lacerda, que apresentara, na Câmara, um substitutivo ao projeto da Lei de Diretrizes e Bases, supostamente para proteger o “ensino particular” de um fantasioso “monopólio do Estado” e restringindo brutalmente a ação pública na Educação.
Deixaremos para a próxima edição um panorama da polêmica – e algumas observações sobre o texto de Anísio e sua inestimável contribuição ao pensamento e à Educação nacionais. Adiantamos apenas que esta polêmica não é diferente daquela que se trava atualmente no governo e no parlamento em torno de várias questões, inclusive o Plano Nacional de Educação (PNE – v. nossa edição anterior). Infelizmente, as concepções lacerdistas, exumadas durante o governo Fernando Henrique, receberam recentemente alguns inesperados adeptos.
C.L.
ANÍSIO TEIXEIRA
O aspecto mais característico do novo Substitutivo à Lei de Diretrizes e Bases da Educação, em processo de votação na Câmara Federal, é o de conceder categoria pública ao ensino privado. Realmente, parece que algo de incoercível compele o país a fazer do público o privado, ou seja, a dar ao privado as regalias e privilégios do público.
Já observei, certa vez, que as origens dessa tendência mergulham em nosso passado colonial. Os primeiros donatários deste país já eram exemplos desse público que se faz privado. Os donatários tinham o poder público, mas para gozo e uso privado. Enquanto que na colonização inglesa as sociedades colonizadoras, a princípio puramente comerciais, pouco a pouco se faziam públicas, na colonização portuguesa, as capitanias eram instituições públicas que pouco a pouco se faziam privadas. Com os ingleses, o privado tendia a se fazer público; com os portugueses, o público tendia a se fazer privado.
Guardamos o velho vinco, o velho hábito, a antiga mazela e eis que ressurge ela agora na lei básica da educação nacional. Vale a pena rápida reconstituição histórica, para marcar a forma com que a velha deformação nacional vem repontar no quadro do sistema público de educação brasileira.
Todos sabemos com que resistência o Estado, no Brasil, vem cumprindo a obrigação constitucional de ministrar educação. Em toda a monarquia, podemos dizer que não passamos da ação acidental de criar e manter alguns institutos de educação, com o caráter que se poderia chamar de “exemplar”. Ao Estado, cabia a ação de estímulo, no máximo de organizar as instituições “modelo”, “padrão”.
Com a República, tivemos modesta exaltação de consciência pública e lançamos as bases de um sistema dual de educação: a escola primária e profissional para o povo e a escola secundária e superior para a elite. O primeiro constituiria o sistema público; o segundo, o privado, dado por concessão pública, mas para ser mantido por meio de recursos privados. Os que o quisessem, que lhe pagassem o custo.
Com a integração do povo brasileiro e o desaparecimento progressivo da chamada elite, o sistema da escola secundária e superior a ela destinado vem-se fazendo, cada vez mais, um sistema de massa, um sistema popular, tão do povo quanto o especialmente organizado para ele.
Diante dessa manifesta evolução do sistema educacional brasileiro, tudo levaria a crer que a tendência do Estado seria para esquecer o velho dualismo e lançar-se à manutenção de um sistema público de educação unificado, do qual desaparece o caráter discriminatório anterior, passando o Estado a manter não só escolas primárias e profissionais, mas também escolas secundárias e superiores. E isto é o que vinha sucedendo. São Paulo já possui um considerável número de escolas públicas secundárias.
Contra isto é que agora se levanta o projeto de lei de Diretrizes e Bases, promovendo a oficialização dos colégios particulares e o reconhecimento do seu direito de participar dos órgãos de direção do ensino. À primeira vista, parece que a tendência é do particular se fazer público. Mas se aprofundarmos a análise, vemos que o particular não é convocado a agir como público, mas, muito pelo contrário, é convocado a participar dos órgãos públicos, no caráter de privado e para representar, dentro do público, o privado. Ora, isto é, exatamente, dar ao privado as regalias do público.
Não há nada mais fértil nem mais sutil que a iniquidade. O dualismo da sociedade brasileira não se conforma em desaparecer. Com o crescimento da classe média e a continuação da mobilidade social vertical, certo mimetismo dos novos elementos que estão a integrar essa nova classe média leva-os a reproduzir as atitudes de privilégio da reduzida e aristocrática classe superior, em vias de extinção. Com efeito, um sistema privado de educação oferece, indiscutivelmente, muito mais facilidade para o respeito a situações adquiridas e privilegiadas do que um sistema público, cujo áspero caráter competitivo tem seus aspectos desagradáveis.
Parece-nos ser esta a explicação para a nova lei de Diretrizes e Bases da educação nacional. O fenômeno é dos mais curiosos e esclarecedores, e marca muito bem as distorções inesperadas de nosso próprio desenvolvimento democrático.
Antes de 1930, os colégios particulares do Brasil eram realmente particulares e resistiam vivamente a qualquer intromissão do Estado. Os de nível secundário pensariam em tudo, menos em pedir recursos ao Estado. Zelavam sobremodo pela sua independência e serviam a uma pequena classe média relativamente abastada e a pobres orgulhosos, que sofriam sua pobreza mas não desejavam esmolas, que tanto seriam consideradas as bolsas ou auxílios.
Com a Revolução de 30, começa a expansão da classe média brasileira. Essa expansão se faz, sobretudo, pela educação, pela escola não popular, isto é, a escola secundária e a superior.
Não se esqueça que a nossa sociedade substituiu a aristocracia de títulos hierárquicos pela de títulos de ilustração, pela aristocracia do “doutor”. Um sistema privado considerável de educação acabou por se constituir para fornecer tais títulos de ascensão social.
Mas a dinâmica social brasileira está cheia de contradições e, pouco a pouco, essa mesma classe, que se fez privilegiada pela educação, não se vê mais em condições de poder custear e manter, para os filhos, o seu sistema escolar. Empreende-se então um movimento para dar-lhe regalias públicas, sem perda do seu caráter privado, nessas regalias incluída a de participar da direção do ensino e a de poder ser substancialmente mantido com recursos públicos.
Mantém-se deste modo o caráter aristocrático da educação nacional, passando os recursos públicos a serem utilizados para a conservação da nova classe média. A própria divisão igualitária dos recursos federais para a educação superior, média e primária, que se apresenta como progresso democrático, só engana a quem deseja enganar-se. Sendo de 12 milhões o número de crianças de escola primária, a quem se deve educação, e de 6 milhões o número de alunos matriculados; de 1 milhão o número de alunos da escola média; e de 70 mil, o de ensino superior – a divisão dos recursos em partes iguais só ilude a quem quiser iludir-se. Na realidade, está-se ajudando o ensino médio seis vezes mais do que o primário e o superior cerca de mil vezes mais.
As tendências que vão ser fortalecidas pela nova lei serão as do desinteresse do poder público pela educação, do fortalecimento da iniciativa privada, da preferência pela educação de “classe”, da expansão da educação para os já educados, ou seja, a expansão, sem plano, das formas de educação mais aptas a promover certo “aristocratismo educacional”, eufemismo com que encobrimos a educação para lazer, o parasitismo burocrático e a promoção de status social.
Não é difícil demonstrar como irão tais tendências ser exaltadas. Comecemos pela do desinteresse do poder público pela educação. Sabemos quanto é velha essa tendência. Não se registra, na história do país, um só governo, local ou nacional, que tenha dado real importância à educação, se tal considerarmos tê-la considerado meta fundamental. Sempre foi assunto para discursos, nunca porém para a ação dominante de qualquer governo. Por isso mesmo, tem-se intrigado a alusão, várias vezes repetidas de certa prensa, à “honestidade intelectual” que teria presidido à elaboração do novo Substitutivo, em seu esforço de impedir o monopólio da educação pelo Estado. Em que época, em que província, em que Brasil enxergou alguém da Subcomissão esse perigo, para fazer dele o seu cavalo de batalha! Se, realmente, fosse de honestidade intelectual o espírito orientador do Substitutivo, este deveria bater-se pela caracterização do dever do Estado, jamais cumprido, de dar educação ao povo brasileiro. Ao invés disto, o Substitutivo cria o fantasma do monopólio estatal da educação e impregna o texto do projeto de dispositivos destinados a coibir a ação do Estado.
E evidente que não se estimulará deste modo a consciência do governo se não para que não intervenha, para que deixe ficar, para o laisser-faire mais desembaraçado no campo da educação.
Dir-se-á que exatamente isto é o que se deseja. Toda intervenção do governo é perigosa. Muito bem. Não se diga, porém, que a lei se destina a dar, afinal, educação aos brasileiros. A nova lei destina-se exatamente a impedi-lo, restaurando, justificando, santificando, enfim, a tradicional resistência do Estado a cumprir o seu dever constitucional de abrir escolas.
Longe de monopólio, o Estado brasileiro vem sistematicamente deixando para os particulares o encargo da educação. Com efeito, isto tivemos antes de 1930, assim continuamos pela revolução afora e, depois de 1946, valemo-nos da ausência da lei de Diretrizes e Bases para justificar atitude ainda mais acomodada quanto à inação oficial.
Enquanto não se votasse a lei de Diretrizes e Bases, nada havia a fazer. Nunca o laisser-aller educacional foi tão completo, tão ininterrupto, tão facilitado. Nem União, nem Estados nada podiam fazer. Faltava a lei, e quanto mais fosse esta adiada, tanto melhor.
O deixa-ficar generalizado não seria, contudo, paralisação. Deixa ficar é deixar passar. Algo entrou a acontecer. E esse algo foi exatamente a expansão desordenada e incongruente do ensino particular, promovido por bispos e sacerdotes cheios das mais puras intenções e sem recursos, por “inocentes” campanhas de educacionários gratuitos e, também, por espertos homens de empresa, como se diz hoje, que lobrigam no abandono público uma oportunidade de lucros ou prestígios fáceis… A ausência de iniciativa por parte do governo abrigava-se na desculpa de faltar-lhe a lei para a ação e as reformas necessárias… E, por isto mesmo, ficou-lhe mais fácil consentir em todos os esforços da “boa vontade”.
A lei que ora se elabora na Comissão de Educação virá santificar essa atitude, ou seja, deixar de fazer. A educação é assunto privado, a ser resolvido pela Família. Ao governo compete apenas pagar. É engano, pois, pensar que tal orientação seja nova, e que venha agora redimir-nos. A nova lei vem consolidá-la, santificá-la, exaltá-la, pois já domina ela a ação, melhor diria, a inação dos poderes públicos desde sempre e, com particular intensidade, desde 1946. A princípio, como já se disse, por não se ter lei nova e não valer a pena continuar-se com a legislação do Estado Novo e agora por termos lei que iria recomendar exatamente essa atitude.
A NOVA LEI
Paralisado, assim, o Estado, teremos o revigoramento da iniciativa privada e virá, esta, afinal, dar-nos a educação desejada senão suspirada? Novamente me permito alimentar as dúvidas mais sérias. Veja-se bem que não identifico educação privada ou particular com educação livre. Livre, pela Constituição, é a iniciativa privada de oferecer educação. Mas tal educação privada está, entre nós, mais do que a pública, sujeita a imposições alheias à própria educação. De modo geral, entretanto, as suas escravizações mais visíveis são, exatamente, ao preconceito e ao dinheiro. Quanto a este, a educação privada é, por excelência, uma educação barata. Precisa e tem de ser barata. Faz-se por isso mesmo rotineira, conservadora e hostil a inovações e experiências. Quanto ao preconceito, a escola privada faz-se escrava de sua clientela. Está ali para satisfazê-la, para atendê-la, para obedecer-lhe. Diz-se que isto é, exatamente, a nova doutrina do século XX, contra as tolices liberais do século XIX. A educação é livre porque atende aos preconceitos da família. A atrasada América do Norte, presa aos falsos ideais de igualdade do século XIX, deseja estabelecer nas escolas a integração racial. Está errada. O Governador [Orval Eugene] Faubus deve pedir as luzes do sr. Carlos Lacerda para obter a alforria da educação em Arkansas, nos Estados Unidos, autorizando afinal as suas escolas segregadas e custeadas pelos recursos públicos.
Está claro que se pode defender até a escravidão, mas o que se não pode é defendê-la em nome da liberdade. Pode-se dizer que é melhor, que é mais humana, que é mais segura, que é mais doce – mas não que seja mais livre. A escola particular, entre nós, mantida com recursos públicos, representará sempre uma escola mais conservadora, mais tradicional, menos disposta a experiência do que a escola pública. E isto, por motivos muito simples. Na América Latina, continente todo ele formado dentro dos propósitos colonizadores de metrópoles estrangeiras, a independência e a república representam esforços revolucionários, renovadores, propostos a implantação de novos comportamentos sociais e, sobretudo, desejosos de integrar sua população, dividida primeiro entre escravos e senhores e depois em dominadores e dominados, em um só povo democratizado, fraterno e livre. Ora, tal não se pode conseguir com um sistema de educação particular, pois esta jamais se caracterizou como educação renovadora.
A educação que a escola particular irá expandir terá, pois, de ser a educação chamada de “classe”, isto é, destinada a preparar os filhos dos já educados para sucedê-los em seus privilégios e direitos adquiridos. E a nossa Constituição liberalmente permite a sua existência. Mas entre isto e promovê-la, e custeá-la, vai um abismo!…
Existe algo de irreal e equívoco nessa afirmação de que cabe à família o controle da escola. Costumam os defensores dessa posição afirmar que a família é o grupo social natural e concreto e que o Estado é vago e abstrato. Ai de nós, que hoje é exatamente o contrário. Por mais desagradáveis que sejam certas realidades, há que aceitá-las e dispor as coisas à vista dos fatos, dos “teimosos fatos” de que falava William James. Respeitar os fatos é o começo de toda sabedoria.
Ora, os fatos são os de que a família já não é a antiga família, segura e sólida, capaz de arcar com as suas terríveis responsabilidades. Hoje precisa ela, acima de tudo, de ser ajudada. Cabe-lhe a educação dos filhos até a idade escolar e, depois, colaborar com a escola em tudo que lhe for possível, mas não lhe podemos entregar a própria responsabilidade da escola. O seu respeito hoje ao mestre não pode ser menor do que o respeito que deve ao médico. Um e outro a ajudam, mas não são seus criados, e sim profissionais independentes e autônomos.
COMENTÁRIO
O projeto de lei desejaria fazê-los serviçais da família. Seus servidores, sim, mas nunca seus serviçais. Tudo isto, porém, são ingenuidades de legislador, que acredita ainda na onipotência da lei. A lei hoje tem de obedecer aos fatos. Não há nenhuma família que não esteja ansiosa por contar e poder ouvir os conselhos do psicólogo e do mestre, cuja autonomia plenamente reconhece.
Em sociedade democrática, fundada na igualdade e na livre informação, não é possível a subordinação hierárquica que o sistema de controle das escolas pelas famílias exigiria. Esse sistema, com efeito, imporia o controle confessional, delegando as famílias à sua Igreja o controle da educação.
Ora, não é de esperar que os legisladores julguem possível essa restauração. Mas se fosse possível, que representaria ela?
Esse domínio das famílias sempre se fez mediante uma hierarquia de famílias. Na sua pureza, o regime importa sempre numa família real, nos casos extremos divina, que corporifica a abstração família. Abaixo da família real, vêm as famílias nobres, depois as burguesas e, por último, a plebe. Com a república, essa hierarquia das famílias brasileiras se estabeleceu entre “nossas boas famílias” e as outras. Com a restauração do regime, iríamos assegurar a educação dentro dessa ordem hierárquica. Primeiro, a educação das nossas boas famílias; depois, a das demais. Como os recursos são poucos, teríamos de ficar no primeiro grupo.
E outra coisa não irá acontecer no Brasil, desde que essa velha doutrina volte a ter os foros até de pensamento avançado. Não é avançado coisa nenhuma. É velhíssima. Mas isto não impede de vingar na América do Sul. Tudo leva a crer que este Continente está fadado a vir a encarnar o mundo antigo e, em face dos saltos para o futuro de quase todo planeta, efetuar esta parte da terra certos recuos providenciais para, ajudada pelas nossas santas tradições, ainda poder manter as doçuras e espiritualidades dos bons velhos tempos da injustiça e da desigualdade humanas.
Não deixa de ser melancólico assistir ao anacronismo, a que não falta sua ponta de insolência, do Brasil de hoje, que minha geração ainda julgava novo e que a geração seguinte, essa que hoje debate e vota as nossas leis, aposta em mostrar que não é nenhum país jovem, mas antiga e sábia nação, liberta de ilusões, solidamente reacionária, disposta a restaurar o privilégio e a desigualdade como formas realistas e superiores de organização social. Embora essa orientação seja aparentemente a dominante no legislativo federal, conforta-nos a segurança de que tais resistências à mudança acabam por aguçar a consciência social, preparando-nos assim, para mudanças possivelmente mais radicais. De nenhum outro modo poderá o Brasil enfrentar os tempos novos e a nova sociedade que, de qualquer modo, se vem formando neste país em plena expansão democrática.