
A falta de uma política nacional voltada às crianças que foram impactadas pela pandemia de Covid-19 dificultou ainda mais o acesso a uma alimentação de qualidade. No Brasil, apenas 1 em cada 4 crianças atendidas nos serviços de Atenção Básica têm acesso, no mínimo, as três principais refeições do dia — café da manhã, almoço e jantar. É o que mostra a pesquisa feita pelo Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) do Ministério da Saúde. De acordo com o estudo, entre janeiro e outubro de 2021, somente 26% das crianças atendidas pelo SUS, com idades entre 2 e 9 anos realizavam pelo menos essas três principais refeições.
No ano passado, o levantamento do SISVAN revelou um índice ainda pior: apenas 21% das famílias brasileiras entrevistas afirmaram que as crianças consumiam ao menos três refeições por dia, – apenas 1 em cada 5. As mais afetadas pela fome são, principalmente, as crianças cujas famílias são as mais pobres, vítimas do desemprego e que, consequentemente, perderam a renda. “Geralmente, tendem a ser negras ou pardas e a morar nas regiões Norte e Nordeste”, explica Naércio Menezes Filho, membro do Comitê Científico do Núcleo Ciência pela Infância (NCPI).
O SISVAN é um sistema de monitoramento da situação alimentar e nutricional da população assistida pelos serviços de Atenção Básica no Brasil. Ou seja, monitora as famílias atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
A situação alimentar da população infantil mundial nesses tempos de pandemia provocada pelo coronavírus consta de um relatório da UNICEF, órgão das Nações Unidas para a infância, intitulado “Alimentação fadada ao fracasso? – A Crise na alimentação de crianças nos primeiros anos de vida”, divulgado em setembro.
O estudo analisou a situação em 91 países e revelou que – apenas metade das crianças de 6 a 23 meses – está recebendo o número mínimo de refeições por dia. O documento, divulgado antes da Cúpula dos Sistemas Alimentares da Organização da ONU que aconteceu em setembro, em Nova Iorque, observa também que apenas um terço consume o número mínimo de grupos de alimentos que uma criança necessita para se desenvolver. “Uma análise mais aprofundada de 50 países com dados de tendências disponíveis revela que esses padrões inadequados de alimentação persistiram ao longo da última década”, diz o documento.
A presidente do departamento de nutrologia da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), Virgínia Weffort, explica como a falta de alimentação – e a alimentação inadequada – afetam o desenvolvimento infantil. “Até os 5 anos existe a programação metabólica, que é programar o seu organismo para evitar doenças. E, dos 5 aos 9 anos de idade, continua sendo importante para o crescimento da criança”, disse.
A pesquisa do SISVAN analisa também a qualidade da alimentação. Em 2021, o número de crianças que ingerem alimentos ultraprocessados (feitos predominantemente com componentes artificiais), de 85%, supera à quantidade que consume frutas (77%) e verduras (66%), por exemplo. A partir desses indicadores que se mantiveram inalterados nos últimos anos, conclui-se que a ingestão de guloseimas (doces, balas, gomas) e bebidas açucaradas, vem ocorrendo, ano após anos, superando a de alimentos naturais.
A ONU também alertou sobre a relação entre pobreza, alimentação e qualidade nutricional, agravadas pela pandemia. “Como a covid-19 continua interrompendo serviços essenciais e levando mais famílias à pobreza, o relatório conclui que a pandemia está afetando a forma como as famílias alimentam suas crianças”, diz o texto.” Por exemplo, uma pesquisa realizada entre domicílios urbanos em Jacarta, na Indonésia, descobriu que metade das famílias foi forçada a reduzir as compras de alimentos nutritivos”, prossegue o documento.
“Como resultado, a porcentagem de crianças que consumiram o número mínimo recomendado de grupos de alimentos caiu em um terço em 2020, em comparação com 2018”, aponta o estudo.
A SBP cita os riscos no consumo de ultraprocessados. “Esses alimentos têm excesso de óleo, de açúcar e de sal. A criança está sendo programada para ser obesa, hipertensa, diabética”, diz ela. “Mas, quando a gente prescreve para a criança comer frutas, verduras e legumes, a família vai ao varejão e o dinheiro do mês inteiro fica ali pra comida de uma semana. Nos pacotinhos, o dinheiro rende mais.”
Outra consequência preocupante da desnutrição infantil é a anemia. “Ela lesa os neurônios e causa dificuldade de aprendizado, alerta Virgínia Weffort. “E é uma alteração para sempre. Não tem reversão do coeficiente intelectual dessa criança que teve anemia”, explica a nutróloga.
Para Weffort, a escola tem um papel no combate à desnutrição infantil. “A escola não deve só alimentar, mas ensinar a comer bem. Orientando essa criança sobre o que é um alimento saudável e qual a sua importância, ela pode passar pra família em casa, que às vezes não teve essa oportunidade de conhecimento”, defende.
A plataforma DataSus, do Ministério da Saúde revela um triste dado: neste ano, até o mês de setembro, já foram registradas 3.061 mortes de crianças de 0 a 9 anos por desnutrição no país. Em todo o ano de 2020, foram quase 4 mil mortes.
O economista Menezes Filho, coordenador do Centro de Políticas Públicas do Instituto de Ensino e Pesquisa – Insper -, defende programas de distribuição de renda, a exemplo do Bolsa Família, como principal política pública de combate à fome. Ele também faz um alerta sobre a ameaça de perder conquistas obtidas últimas décadas.
“Estamos correndo risco de retrocesso por conta da recessão, da pandemia e de políticas equivocadas na saúde, na educação e na assistência. Se nada for feito, perderemos os avanços das últimas décadas”.