Si se calla el cantor calla la vida
Porque la vida, la vida misma es todo un canto
Si se calla el cantor, muere de espanto
La esperanza, la luz y la alegría
(Horácio Guarany)
VALÉRIO BEMFICA (*)
O juiz da 161ª Zona Eleitoral de Porto Alegre resolveu proibir um evento fechado na internet, uma live, que Caetano Veloso promoverá no dia 7 de novembro a fim de arrecadar recursos para a campanha de Manuela D’Ávila à Prefeitura da cidade, sob o falso argumento de que se tratava de um “showmício”, proibido pela Lei Eleitoral. Nada mais falso. Atendeu ao pedido de um candidato que sonha em comer algumas migalhas do bolsonarismo na eleição para prefeito, e que, com justiça, habita a rabeira das pesquisas eleitorais. A decisão, felizmente, é liminar (provisória).
A vedação prevista em lei destina-se, supostamente, a coibir o abuso do poder econômico nas eleições. O parágrafo 6º do artigo 39 da Lei 9.504/97, imediatamente anterior ao que fala em showmício, proíbe a distribuição de “de camisetas, chaveiros, bonés, canetas, brindes, cestas básicas ou quaisquer outros bens ou materiais que possam proporcionar vantagem ao eleitor”. O parágrafo 8º, imediatamente posterior, proíbe o uso de outdoors. E o parágrafo 7º, no qual o juiz tenta alicerçar sua decisão, é claro: proíbe-se a participação de artistas “com a finalidade de animar comício e reunião eleitoral”. O show é considerado pela lei como um “presente” do candidato aos eleitores. Por isso é proibido. Alguns anos atrás as campanhas mais abastadas costumavam contratar os artistas da moda para seus eventos. O efeito era bastante duvidoso: o mesmo artista fazia shows para candidatos diferentes e, não raro, concorrentes. Muitas vezes o candidato era vaiado ao tentar interromper o show e fazer sua propaganda. Talvez seja por isso que os grandes partidos não tenham se insurgido contra a proibição: o showmício era caro e pouco eficiente.
Mas o evento proposto por Caetano é o inverso disso! Não é um “presente” que Manuela dará a seus eleitores. Ninguém assistirá à live gratuitamente, mas terá de pagar por isso. É uma contribuição – legal e comunicada ao Tribunal Eleitoral – que Caetano e outros apoiadores darão a Manuela. O Artigo 23º da lei, em seu inciso V, prevê claramente como uma das formas de arrecadação de recursos para campanhas eleitorais a “comercialização de bens e/ou serviços, ou promoção de eventos de arrecadação”. E é exatamente isso que será realizado: um evento para arrecadação de recursos. A lei é cristalina: um candidato não pode oferecer, gratuitamente, um churrasco para eleitores. Mas pode promover um churrasco – onde as pessoas comprem ingresso – para arrecadar recursos para a sua campanha. E isso é bastante comum. Não é preciso que o magistrado tenha “posgrado em La Coruña” para entender a diferença entre as duas coisas. Basta bom-senso. Mesmo o candidato nanico que solicitou a suspensão do evento sabe. Ao último, entretanto, além de bom-senso, falta vergonha na cara.
Mas o evento proposto por Caetano é o inverso disso! Não é um “presente” que Manuela dará a seus eleitores. Ninguém assistirá à live gratuitamente, mas terá de pagar por isso. É uma contribuição – legal e comunicada ao Tribunal Eleitoral – que Caetano e outros apoiadores darão a Manuela.
O que dissemos até aqui é mais do que suficiente para convencer o nosso leitor habitual do quão estúpida e absurda é a decisão de impedir que um dos mais importantes artistas brasileiros expresse seu apoio eleitoral e se engaje em uma campanha. Mas pedimos licença para ir além. E vamos começar justamente por aí: quem está sendo censurado e por apoiar quem. E, não menos importante, quem clamou por tal censura.
Em 1969 Caetano Veloso foi preso pela ditadura. Mesmo não sendo militante de nenhuma organização clandestina, não tendo cometido nenhum ato ilegal, não tendo dirigido qualquer impropério ao ditador de plantão, foi parar na solitária. Seu comportamento incomodava os poderosos e moralistas de plantão. Precisou amargar alguns anos de exílio. E não se dobrou. Nos dias atuais Caetano tem se destacado no meio artístico por suas posições firmes na defesa da democracia. Sem medo, enfrentou o astrólogo-guru-bufão da Virgínia e posicionou-se claramente em apoio a candidatos de esquerda contra o bolsonarismo (além da campanha de Manuela, Caetano pretende também apoiar a de Guilherme Boulos em São Paulo). Ou seja, um típico representante do que o muar-em-chefe e seus acólitos chamam de “marxismo cultural”. Uma voz a ser calada.
E quem clama pela censura? Um candidato que sonha com o apoio da família miliciana, como se isso fosse garantir sua eleição. Ganhou um comentário genérico do filho zero-qualquer-coisa no facebook. Mas o Dudu Bananinha não se deu nem ao trabalho de mencionar o seu nome… Nem nós nos daremos.
Já Manuela é mulher, jovem e… comunista! Não vê Jesus em goiabeiras, não acha que a mulher deve ser submissa ao homem, não acha que a mulher é culpada pelos abusos que sofre. E mais: inteligente e preparada, desponta nas pesquisas como candidata favorita à Prefeitura – no linguajar dos gaúchos, “com meia cancha de vantagem”. Ousa denunciar os desmandos e políticas deletérias do governo do capitão-fujão. Não se intimida diante da avalanche de fake news vomitadas pelo gabinete do ódio e apresenta-se como alternativa real para ser a primeira prefeita da capital gaúcha. Outra voz a ser silenciada!
E quem clama pela censura? Um candidato que sonha com o apoio da família miliciana, como se isso fosse garantir sua eleição. Ganhou um comentário genérico do filho zero-qualquer-coisa no facebook. Mas o Dudu Bananinha não se deu nem ao trabalho de mencionar o seu nome… Nem nós nos daremos.
Resta-nos ainda fazer alguns comentários sobre o suposto rigor dos tribunais em garantir a lisura do pleito. O Brasil conta com uma Justiça Eleitoral autônoma. É um fato positivo, conquista da Revolução de 30, que acabou com o voto de cabresto, característico do Império e da República Velha. Isso não significa, porém, que o mecanismo funcione perfeitamente. A elaboração das leis está sujeita às pressões e interesses dos poderosos. E sua interpretação e aplicação também. E vivemos em um momento em que reina um certo obscurantismo, com terraplanistas pontificando sobre ciência e vestais de cabaré sobre ética. Invertendo-se a lógica da mulher de Cézar, não é preciso ser honesto, só é preciso parecer honesto. Por esta lógica, Guilherme Boulos é punido pois a figura do ator Wagner Moura apareceu por 6 segundos em sua propaganda eleitoral. A lei só permitia 5! Mas um outro candidato gastar todo o seu tempo alegando ser amigo do Presidente e dizendo que por isso seria a melhor alternativa para a cidade, tudo bem. O Caetano colaborar com a campanha da Manuela é abuso. A família Mattar, dona da Localiza, que ganha fortunas revendendo carros que comprou com isenção de impostos, distribuir elevadas somas para candidatos é legal. O véio da Havan ter dinheiro para financiar candidatos, mas deixar de recolher o INSS dos empregados é normal.
Um outro candidato gastar todo o seu tempo alegando ser amigo do Presidente e dizendo que por isso seria a melhor alternativa para a cidade, tudo bem. O Caetano colaborar com a campanha da Manuela é abuso.
O rigor da Lei e de sua aplicação não podem matar a política. Não podem servir para beneficiar os poderosos, para silenciar o povo e para impedir a sua mobilização. A participação de artistas em campanhas eleitorais sempre ocorreu no Brasil. E, em geral, eles estavam ao lado dos candidatos populares. O showmício foi invenção dos candidatos sem povo. Pagavam caro e tinham baixo rendimento. Resolveram proibir, mas, para manter a vantagem, tentam impedir que os artistas realmente comprometidos com as causas progressistas também participem. Mas no meio do caminho tinha um Caetano… Não calarão o cantor!
(*) Presidente do Centro Popular de Cultura (CPC) da UMES-SP