
Em ações contraditórias, o presidente do Equador baixou “toque de recolher e militarização” de toda a capital, Quito, para, logo em seguida, ao final do dia, em cadeia nacional, anunciar sua “disposição ao diálogo e de revisar o decreto 833” (aquele que, em atenção a imposição do FMI, cortou o subsídio dos combustíveis e catapultou o seu preço: gerou um aumento de 123% do dia para a noite).
O mais recente anúncio, junto com a informação de que a “mesa de negociação” tem início, neste domingo, às 15:00 da tarde, acontece depois das firmes declarações de dirigentes da Coordenação Nacional dos Indígenas do Equador e da aceleração no ritmo e amplitude da revolta, mantidos mesmo depois da decretação da ocupação militar de Quito.
Durante o dia, os manifestantes cercaram a Assembleia Popular (como é denominado o Congresso Nacional do Equador). Enquanto isso, os confrontos com policiais se multiplicavam no centro de Quito. Barricadas foram erguidas nos diversos pontos da capital paralisando o trânsito e dificultando o acesso ao aeroporto. Com o anúncio do toque de recolher, houve intensificação das manifestações nos bairros populares de Quito, se estendem pelos subúrbios periféricos, com aumento do número de barricadas.
A capital do país, onde permanecem mobilizados dezenas de milhares de indígenas, com apoio de estudantes e trabalhadores se mantém sublevada.
A repressão já deixou, segundo denuncia a Defensoria do Povo que – com seus informes, manifesta protesto contra a agressividade policial e mostra discordância aos atos agressivos de Moreno até no interior deste órgão governamental – 6 manifestantes mortos.
Em seu quinto informe emitido desde o início dos protestos do dia 3 de outubro e da decretação do “Estado de Exceção” pelo presidente Moreno, faz um apanhado das “vulnerações aos direitos humanos dos equatorianos”.
Diz o informe da Defensoria do Povo:
“A Instituição Nacional de Direitos Humanos, no marco da greve nacional e da declaração do Estado de Exceção e, em cumprimento a seu mandato constitucional e legal, monitora e vigia a situação de vulneração dos direitos humanos em todo o território nacional.
“Diante disso, apresenta as cifras de pessoas falecidas, detidas e feridas, até o dia 12 de outubro de 2019”.
Já são 937 pessoas feridas e atendidas pelo sistema público de Saúde e pela Cruz Vermelha, diz a Defensoria.
Os detidos chegam a 1.127, com prisões todos os dias desde o início dos protestos.
“Quito se converteu em um campo de batalha pela intransigência do governo”
O jornalista do portal Página 12, Marco Teruggi, em reportagem desde Quito, descreve o quadro no 11º dia de manifestações contra o que denunciam como o “pacotaço do FMI”:
“Quito se converteu em um campo de batalha pela intransigência do governo”.
O presidente, que agora volta atrás de suas declarações anteriores de que não mexeria no decreto 833 e diz disposto a revê-lo, em declarações aparentemente bem mais conciliadoras, havia se manifestado de forma ditatorial em meados do mesmo sábado, quando declarou: “Dispus o toque de recolher e a militarização de Quito e vales. Começa a vigir à 15:00. Isto facilitará a atuação da força pública frente aos intoleráveis desmandos da violência”.
Na declaração, Moreno, que já havia culpado o ex-presidente Rafael Correa e a Maduro pelos eventos que revolvem o país desde o dia 3, agora diz que são “os traficantes, os narcotraficantes, os Latin kings criminosos e os correístas que estão se dedicando aos atos vandálicos”.
Os líderes indígenas se dissociaram de um grupo de mascarados que atacaram o jornal El Comercio (que entrevistou o próprio líder da CONAIE, reproduzida ao final desta matéria) e a TV Teleamazonas.
Teruggi informa que “apesar da repressão de Lenin Moreno as manifestações se estendem dia e noite, o acesso à Assembleia Nacional está cortado por dezenas de barricadas aonde se repete uma palavra de ordem central: ‘Fora Moreno, Fora!’”
Ele acrescenta que segue “a pulsação” e “escalada da massividade popular”, de um lado, e da “violência estatal”, por outro.
“Primeiro foram os motoristas e taxistas, a seguir o movimento indígena, centralmente a Coordenação das Nacionalidades Indígenas (CONAIE) e nos últimos dias, a mobilização se tornou mais ampla: envolve jovens, mestiços, brancos, trabalhadores manifestando e erguendo barricadas”.
Teruggi também fala do crescimento dessa mobilização popular ao transcorrer desses dias. Traz o quadro da mobilização “em diferentes cidades, bloqueios de estradas em nível nacional, culminando com a confluência de uma grande mobilização da CONAIE e outros movimentos indígenas e camponeses, com caravanas que chegaram a Quito na quarta-feira, dia 9”.
MORENO SURPREENDIDO COM DIMENSÃO DA REVOLTA
Surpreendido diante da magnitude da revolta, além de recrudescer a repressão, Moreno mudou-se da capital do país, Quito, para a cidade litorânea de Guayaquil, de onde passou a despachar junto com seus ministros e generalato.

HOMENAGEM AO LÍDER ASSASSINADO
A decisão dos participantes da caravana que chegou a Quito, no dia 9, enfrentando uma repressão, com policiais retirando populares do seio das concentrações para aplicar-lhes golpes de cassetetes, atacando acampamentos onde estavam instalados, despejando gás lacrimogêneo a torto e a direito nas ruas do centro histórico de Quito, fez arrefecer, durante o dia, o cerco policial ao centro e os indígenas puderam avançar com bandeiras do país e do movimento indígena, com cartazes exigindo a saída do presidente.
Primeiramente concentrados na praça El Arbolito, dirigiram-se, no dia seguinte, à Casa de Cultura Equatoriana, onde no seu gigantesco pátio central, o Àgora, milhares instalaram a Assembleia dos Povos. Àquela altura, dois dos ativistas da CONAIE já haviam sido mortos.
A multidão de indígenas havia conseguido deter oito policiais e os fizeram conduzir o caixão do assassinado líder, Inocencio Tucumbi, coberto com a bandeira do Equador, ao palco de onde os líderes da entidade junto com os integrantes da caravana indígena realizavam a Assembleia.
Lá foi homenageado com um minuto de silêncio, decretação de luto nacional e com um juramento lido em voz alta pelo presidente da CONAIE, Jaime Vargas:
“Temos lágrimas de ira, mas aprendemos com nossas mães e nossos pais que honramos os mortos na luta nos multiplicando… Que sua força e sua convicção na luta em defesa dos direitos dos mais empobrecidos sigam iluminando este caminho de insurreição popular ante um governo opressor”.
O cantão de Pujili, na província de Catopaxi, onde vivia Tucumbi e de onde saiu em direção a Quito, amanheceu o dia 11 em luto oficial de quatro dias decretado pela Prefeitura local.
Segundo o censo do Instituto de Estatísticas e Censos do Equador, INEC, 87% da população do cantão é composta de pobres. A comunidade liderada por Tucumbi, é a de Yanahurco de Jaigua, que, em quechua, significa Serra Negra, a dez quilômetros do centro de Pujili. Ali, Inocêncio Tucumbi, que já se converteu em referência heroica nesta luta, trabalhava como agricultor e pastor de ovelhas.
CONAIE: DISPOSIÇÃO AO DIÁLOGO E À MOBILIZAÇÃO
A postura da direção da CONAIE tem sido firme no sentido de manter a mobilização ao mesmo tempo em que se propõe a dialogar com o governo.
Foi neste sentido que, em entendimentos com a Defensoria do Povo Equatoriano, fez com que fosse procurada a delegação da ONU no país e se lhe propusesse a mediação com o governo.
Ao mesmo tempo se declararam em mobilização e resistência na capital e no restante do país “desde a costa e as serras até a Amazônia”, como afirma seu comunicado, destacando três pontos centrais como exigência para o avanço nas negociações:
– Revogação do Decreto 833 (com as imposições do FMI)
– Afastamento da ministra do Interior, Maria Paula Romo, e do ministro da Defesa Oswaldo Jarrín, aos quais a entidade responsabiliza pelos assassinatos
– Fim da repressão com a liberação dos detidos, do estado de exceção e, agora, do toque de recolher na capital e arredores.

EM ENTREVISTA, LÍDER DA CONAIE SE POSICIONA
“Hoje o Equador vive uma crise social, uma crise imposta ao povo do Equador. Hoje os indígenas de distintas nacionalidades, junto com outros setores da sociedade equatoriana, saíram às ruas para resistir, para exigir ao governo nacional que revoque imediatamente o decreto 883 que afeta os bolsos de todos o povo equatorianos”, declarou o presidente da CONAIE, Jaime Vargas, em entrevista concedida ao jornal El Comercio, diante da Casa da Cultura Equatoriana, que a entidade mantém ocupada.
Vargas prosseguiu, afirmando que: “Assim que, com toda a recomendação dos dirigentes provinciais, emitimos um documento oficial da CONAIE pedindo três coisas: em primeiro lugar que se revogue o decreto 883, em segundo lugar que cesse a repressão sobre todo o povo equatoriano e em terceiro lugar que saiam os dois ministros que mandaram matar as pessoas: a Ministra do Interior, Maria Romo, e o ministro da Defesa, Jarrín. Eles estão hoje assassinando diretamente ao povo a este povo que reclama dos custos diretos, um povo que vem lutando dia a dia, esse governo precisa ver melhor a seu povo equatoriano”.
Seguem os demais trechos da entrevista ao El Comercio:
El Comercio – Há alguma intervenção da ONU, com um papel de aproximação? Qual o papel da ONU neste caso?
Vargas – Já mantivemos duas reuniões com representantes da Nações Unidas. O representante da ONU no Equador me ligou diretamente e eu lhe esclareci as demandas dos movimentos sociais. O problema é que este governo está entregue de corpo e alma ao Fundo Monetário Internacional. Tudo isso que está acontecendo, estas mortes, estes assassinatos, é por este afã do governo de servir ao FMI.
E. C. – Com estas mobilizações tem início um desabastecimento. Há alguma forma de enfrentar este problema?
Vargas – O que eu creio é que todos os equatorianos que vivem na cidade se dão conta de que sem os integrantes das distintas nacionalidades indígenas, que vivem no campo e aí trabalham, não podem seguir vivendo. Por isso, vemos que esta marcha é de todo o povo equatoriano e nós insistimos que tudo o que está acontecendo é a negação da Revolução Cidadã, que Rafael Correa empreendeu e Lenín Moreno foi parte. E somos nós que atuamos nesta Revolução, que queremos preservar suas conquistas, que aqui estamos.
E. C. – Existe uma Comissão encarregada de buscar uma trégua? Como está conformada esta comissão?
Vargas – Todos os movimentos e decisões passaram pelas direções provinciais, não há uma decisão do presidente da CONAIE, há a decisão de todo um povo. Temos que responder ao nosso povo. Como dissemos ontem, tem muita gente que tenta propalar a ideia de desmobilizar esta gente que está nas estradas, dizendo os dirigentes estão negociando, ontem me mostraram um áudio onde alguém dizia que os dirigentes estão vendidos por 100 milhões de dólares. Mentira. Aqui, ninguém vende o povo! Aqui houve derramamento de sangue, por cima deste derramamento de sangue, não haverá diálogo ou negociação oculta, pelas costas do povo.
O que nós precisamos é deste povo. Da sua decisão firme de que vamos seguir com esta direção da CONAIE.
Aproveitamos para dar o nosso recado e fizemos uma marcha para dizer que na Amazônia estamos presentes. Vimos neste roteiro e marchamos para instalar uma Assembleia dos Povos das diferentes nacionalidades para podermos definir algumas estratégias, para informar o que está fazendo o governo que não nos respondeu a esta posição de aproximação. No meio deste caminho acabam de nos bombardear. Pois é, se ontem entregamos os policiais que havíamos detido para demonstrar boa vontade, alguns nos acusam de dirigentes covardes. Quando estão matando as pessoas que lutam por nada mais que seus direitos.
E. C. – Finalmente, qual sua expectativa com relação à resposta do governo?
Vargas – Neste momento vou fazer ligações para pedir à comissão da ONU faça uma ponte para informar o que está acontecendo. Já há mais de 900 feridos. Isto é dialogar?
E mais, o diálogo tem que ter transparência, deve ser realizado na presença de todos os dirigentes das organizações regionais. É isto que temos dito. Não sou eu quem vai decidir. É o povo. Ele é que toma as decisões”.
Jaime concluiu a entrevista mostrando os cartuchos de fuzis e cápsulas de granadas de gás, dizendo: “Nós vamos entregar aos representantes das Nações Unidas as provas do uso de munição viva e granadas”.
NATHANIEL BRAIA