Segundo a Reuters, a Arábia Saudita advertiu Washington de que, se a chamada “lei NOpep (Não à Opep)” for aprovada e posta em vigor, Riad irá desencadear o que os especialistas chamam de “opção nuclear”: abandonar o petrodólar e passar a comercializar o petróleo em outras moedas.
“Os sauditas dizem: deixe os americanos passarem a NOpep e seria a economia dos EUA que desmoronaria”, relatou uma fonte ouvida pela agência de notícias.
Tal legislação permitiria a impetração de ações contra os países membros da Opep em tribunais norte-americanos, sob a alegação de que a defesa do preço do petróleo pelos produtores infringe as ‘leis antitruste’ dos EUA, ao mesmo tempo em que megabancos norte-americanos e fundos especulativos conexos têm mãos livres para derrubar no chão o preço do petróleo, asfixiando os produtores, como fizeram em 2014 e na década de 1980.
A NOpep foi apresentada ao Congresso pela primeira vez em 2000 e daria aos EUA a capacidade de ditar os preços e até o nível de produção de petróleo não apenas através das manobras especulativas como já faz atualmente, mas por via judicial, ameaçando processar os membros da Opep que não se submeterem.
Mais de uma vez, o presidente Trump “exigiu” a redução do preço do petróleo pelo Twitter e em um livro de 2011 chegou a manifestar apoio ao projeto de lei.
Em última instância, o que tal lei faria seria revogar a imunidade soberana dos integrantes da Opep e sujeitar os países membros a leis domésticas norte-americanas. A Opep foi formada em setembro de 1960, quando as Sete Irmãs ainda controlavam tudo, para permitir um preço mais justo para os produtores e uma partilha menos leonina, até o ponto atual em que estatais controlam a maior parte das reservas de petróleo no mundo.
Apesar de ser reapresentada, a lei jamais foi aprovada, mas sua existência é uma ameaça real em um quadro de uso ensandecido de sanções “por razões de segurança nacional” contra os concorrentes pelo governo Trump, por razões ditas “geopolíticas” e como parte da guerra comercial “contra todos”.
Ao preço atual de US $ 70 por barril, o valor anual da produção mundial de petróleo é de US $ 2,5 trilhões, o que corresponde a 2-3% do PIB mundial.
Para as fontes consultadas, a expectativa de Riad é de que não precisará chegar a esse extremo – o fim do status do petrodólar exclusivo -, mas os sauditas “têm cenários ‘e se’”.
Conforme a Reuters, as chances de o projeto de lei NOpep entrar em vigor “são escassas” e a Arábia Saudita “dificilmente seguirá adiante”, mas o fato de Riad estar considerando um passo tão drástico é um sinal do aborrecimento do reino “com possíveis desafios legais dos EUA à Opep”.
A agência de notícias acrescentou que o ministério da Energia saudita “não respondeu” a um pedido de comentário, enquanto o secretário de Energia de Trump, Rick Perry, admitiu que a lei NOpep poderia ter “consequências inesperadas”.
Países membros da Opep, como o Irã e a Venezuela, sob ataque das sanções unilaterais norte-americanas, já se viram forçados a abandonar o petrodólar, o que foi tentado antes pelo Iraque, sob o presidente Sadam. Rússia e China – esta, a maior importadora mundial de petróleo – passaram a comercializar parte do fornecimento de petróleo em yuans resgatáveis em ouro, o que já começa a ser chamado de ‘petroyuan’.
Não é a primeira vez que Riad faz uma advertência a Washington. Durante o governo Obama, quando houve uma movimentação no Congresso dos EUA para permitir que o governo da Arábia Saudita fosse acionado em tribunais norte-americanos pelo 11 de Setembro, os sauditas chegaram a ameaçar com a desova em massa dos títulos do Tesouro que detêm.
Em outro episódio mais recente e muito mal explicado, o presidente Trump chegou a tuitar que o governo saudita “não duraria uma semana” se os EUA retirassem seu apoio, levando o príncipe MBS a uma resposta ríspida. Apesar de todo o enlevo que há aparentemente entre os dois (dos contratos bilionários de fornecimento de armas ao silêncio sobre o caso Khashoggi).
Washington também não esconde sua contrariedade com os recentes laços entre a Arábia Saudita e a Rússia – que não faz parte da Opep -, que resultaram nos acordos de corte de produção, que tiraram o preço do petróleo do colapso, e que vêm sendo renovados. Mais de uma vez Trump reclamou da “alta do preço do petróleo”.
Na prática, a advertência de Riad significa que o célebre acordo de 1975, após o rompimento da paridade dólar-ouro por Nixon em 1971, que ancorou a moeda norte-americana na comercialização da principal commodity do planeta, poderia vir a ser quebrado ou pelo menos abalroado, com todas as implicações.
Aliás, não foi exatamente um acordo, mas aquela opção que o traficante Pablo Escobar costumava apresentar: “plata o plomo” (prata ou chumbo).
O então secretário de Estado Kissinger chegou a ameaçar a Arábia Saudita com “um plano de contingência” militar para invadir e ocupar os campos de petróleo, se a gentil oferta fosse recusada.
Pelo trato, a venda de petróleo seria exclusivamente em dólares e Riad teria de reciclar os dólares da venda de petróleo comprando títulos do Tesouro norte-americano. Foi criado um mecanismo especial, fora dos leilões, para fazer isso, “adds-on”, em que era mantida em sigilo a posição de investimento saudita. Com o tamanho das reservas da Arábia Saudita, essa regra foi na prática estendida à Opep.
O que possibilitava que a demanda pela moeda dos EUA se tornasse mais ou menos independente do estado interno da economia dos EUA ou da dívida ou déficits do governo, ao mesmo tempo em que fazia com que os EUA se tornassem os maiores beneficiários do choque do preço do petróleo. Mecanismo que possibilitou tornar os déficits gêmeos na turbina da financeirização que se seguiu.
Três coelhos com uma cajadada: açambarcava as receitas da Opep, enchia as burras dos bancos norte-americanos e britânicos, inflando Wall Street e a City londrina, e forçava quem precisava de petróleo – os principais concorrentes, Alemanha e Japão -, a ter que se manter aferrado ao dólar nas suas próprias exportações. Em maio de 1973 – antes do primeiro choque do petróleo – um grupo de banqueiros internacionais e políticos se reuniu na Suécia para articular o plano de reciclagem dos petrodólares encabeçado por Kissinger.
A.P.