
MARCO ANTÔNIO CAMPANELLA (*)
As plataformas digitais pelas quais os cidadãos comuns, ou não, se comunicam entre si e com a sociedade transformaram-se em canais alternativos à comunicação tradicional, assim como a imprensa em geral passou a recorrer a esses novos instrumentos tecnológicos para se comunicar de forma mais veloz com seu público, antes restrita aos jornais impressos e às emissoras de rádio e televisão.
A internet permitiu essa nova modalidade de comunicação e algumas personalidades, inclusive – e principalmente, do mundo político – passaram a exercer forte influência social em razão desses instrumentos que antes não existiam.
Com isso, a informação ou a desinformação, assim como a formação de juízos (ou de consciências), adquiriu amplitude e velocidade inéditas.
A decisão do aplicativo Twitter de banir o perfil do presidente dos EUA, Donald Trump, considerado o homem mais poderoso do mundo pelo cargo que ainda ocupa, nem tanto pelas suas qualificações, mas pelo poderio econômico e bélico do país que preside (ou desgoverna, atabalhoadamente), gerou manifestações contrárias e favoráveis em todo mundo.
No Brasil, chamou atenção a opinião de duas figuras que se encontram em campos políticos opostos: a do ministro Ernesto Araújo, das Relações Exteriores; e a do jornalista Breno Altman, editor do site Opera Mundi.
Araújo, cada vez mais conhecido como Beato Salú, em razão dos renitentes vitupérios à história da diplomacia brasileira, reproduziu no seu Twitter três trechos da Declaração Universal dos Direitos Humanos que tratam de assuntos como liberdade de expressão e eleições. Segundo ele, em nome de uma suposta liberdade de expressão, o Twitter jamais poderia ter censurado o decadente presidente norte-americano.
Altman também se manifestou na mesma direção: “a defesa da democracia, no mundo moderno, inclui a luta ferrenha pela neutralidade das redes: isso é, os oligopólios privados não deveriam controlar o direito à expressão e o acesso à informação. Decisões a esse respeito somente podem caber ao Estado e à Justiça”, postou o periodista sobre a decisão de banimento permanente da conta de Trump.
Resumo das duas opiniões: tudo vale em nome da liberdade de opinião ou de expressão, e quem se sentir ofendido que recorra à lei e à Justiça, ou ao Papa, em última instância.
Não é a primeira vez que o contraditório é exposto de forma tão saliente para o debate nacional, ainda que o fato esteja focado na liberdade de expressão.
Nos tempos em que a internet e suas plataformas não existiam nem em sonho, a discussão sobre o palpitante tema sempre ocupou o centro das atenções de jornalistas e comunicadores em geral.
Recorro à opinião daquele que foi a testemunha viva da evolução da imprensa brasileira no século 20, com forte protagonismo político nos mais de cem anos que viveu: o jornalista, escritor, político e professor Barbosa Lima Sobrinho, patrono da imprensa e eterno presidente da ABI.
Barbosa comparava a profissão do jornalista à do professor, definindo o jornalismo como uma variação do magistério, ou seja, o comunicador é mais do que um transmissor de informações, mas um educador e civilizador.
Liberdade de imprensa e de expressão, com as novas e avançadas formas de comunicação, encontram, hoje, entre si, um forte sombreamento. Não são, rigorosamente, a mesma coisa, mas, em se tratando das contas de algumas personalidades poderosas, como é o caso, ainda, de Trump, com inegável capacidade de disseminação de suas opiniões e indução de comportamentos, os critérios de avaliação sobre esses limites muito se assemelham.
Os EUA, em que pesem os retrocessos verificados especialmente após a Segunda Grande Guerra, vitaminados pela hegemonia das grandes corporações do sistema financeiro, das armas e do petróleo, consolidaram um sistema político-eleitoral sobre o qual podemos apontar inúmeras imperfeições, mas é o patamar de desenvolvimento institucional que aquele país alcançou, a partir do qual foi possível, inclusive, a eleição do arquibilionário Trump há quatro anos atrás.
Nesse cenário, perguntamos: é aceitável que o presidente dos Estados Unidos da América utilize suas redes sociais para insuflar sua turba declaradamente fascista (ou, até, nazista) a invadir e depredar as dependências do Capitólio, o Parlamento norte-americano, para impedir a proclamação de seu adversário como próximo mandatário da nação, mesmo diante da inexistência de uma única prova de que houve fraude no processo eleitoral remanescente?
No Brasil, que também já atingiu alguns patamares civilizatórios inegáveis, cujos valores estão profundamente impregnados em nossa história, entre os quais a democracia política e os direitos universais, é razoável a tolerância das redes sociais com a pregação golpista, ou mesmo, fascista, de personalidades que ocupam importantes posições de poder e, consequentemente, ostentam nítida influência social?
A lógica vale para todas as nações, a despeito dos sistemas econômicos e sociais de cada uma delas.
As redes sociais, embora muitas de caráter monopolista, também têm um limite ético, e foi com base nele que as contas de Trump foram corretamente banidas.
Onde está a ética em permitir que uma plataforma de alcance universal seja utilizada para agredir essas conquistas civilizatórias, fruto de séculos de luta?
Onde está a ética em favorecer a sanha golpista contra instituições que hoje molduram, ainda que limitadamente, a democracia nesses países, como o Parlamento?
Liberdade de expressão, já nos ensinava Barbosa Lima Sobrinho, não corresponde a uma licença completa para dizer e pregar tudo que se pensa e o que se quer. A fronteira da liberdade de expressão em uma sociedade não é infinita e deve estar limitada às conquistas civilizatórias que custaram muito caro às nações, insculpidas, invariavelmente, em suas leis maiores como cláusulas pétreas, se tratando de uma questão objetiva, e não subjetiva, como alguns, equivocadamente, querem fazer crer.
Por isso mesmo, o insuflado “liberalismo” na economia e na política é igualmente pernicioso no exercício do jornalismo e na missão de se comunicar.
Ainda em 1923, Barbosa dizia, com muita propriedade: “Se o espírito público se impressiona com os ataques rudes, se aprecia as notícias sensacionais, se admira a grosseria da linguagem e a falta de escrúpulo nas acusações, a imprensa amarela virá fatalmente atendendo às solicitações do meio em que está destinada a viver e de cujo apoio precisa para a sua própria subsistência”.
Felizmente, mesmo os monopólios privados responsáveis por esses aplicativos, cuja democratização deve ser objeto permanente da atenção de governos e instituições, não estão dispostos a compactuar com a invasão de alguns limites que foram edificados democraticamente pelas sociedades e seus povos ao longo dos tempos.
Só resta dizer aos interlocutores Araújo e Altman, tão preocupados em assegurar a “liberdade de expressão” a Trump e seus congêneres, o que afirmou em tom de desabafo, outro dia, um colega nosso da redação do HP: “pqp pra essa liberdade de expressão”!
É o que diria, talvez, Barbosa Lima Sobrinho, em tom mais polido, certamente, se estivesse entre nós, a mais essa demonstração de farisaísmo e hipocrisia.
(*) Da Redação do Jornal Hora do Povo.