Quem acompanhou o depoimento do ex-ministro das Relações Exteriores do governo Bolsonaro, Ernesto Araújo, nesta terça-feira (18), na CPI da Covid-19 do Senado Federal, pode fartar-se de um verdadeiro show de dissimulação e impostura.
Araújo foi, até sua exoneração do Itamaraty, uma espécie de ponta de lança do olavismo no governo, adepto fervoroso e declarado do “filósofo da Virgínia” e de suas teses negacionistas.
No entanto, ao se apresentar na Comissão, parecia outra pessoa, tentando convencer os senadores e a atenta audiência que ele não desacatou a China em nenhum momento, embora tenha se referido à pandemia, em artigo, como “comunavírus”, entre outras excrescências frequentemente repetidas pelo próprio Bolsonaro.
Nem mesmo a intervenção incisiva da senadora Kátia Abreu que o acusou de desonrar a diplomacia brasileira e os ensinamentos do Instituto Rio Branco mexeu com os brios do ex-ministro.
As considerações iniciais do presidente Omar Aziz de que Araújo faltara com “a verdade” ao dizer que não havia afrontado a China sinalizaram para o depoente que os senadores não estavam dispostos a aceitar tergiversações.
Ao final e ao cabo, a maior fragilidade do depoimento de Araújo foi, sem dúvida, além da escamoteação dos ataques à China, a tentativa frustrada de demonstrar que, quando ministro, atuou para incorporar o Brasil na Covax, a aliança mundial de vacinas, criada em junho de 2020.
Ficou evidente, pelos fatos, que a diplomacia que estava sob seu comando falhou seriamente numa questão que poderia ter contribuído para que as vacinas chegassem mais rapidamente ao país ainda no ano passado.
Senão, vejamos:
ABRIL DE 2020
A primeira reunião da aliança de vacinas ocorreu sem a presença do Brasil. No encontro, que foi realizado com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a União Europeia, nenhum diplomata brasileiro fez parte. O Itamaraty, à época, justificou a ausência em razão do estudo de “outras alianças”. Nessa época, a aliança ainda não era conhecida como “Covax”, mas as negociações já existiam, com a participação de governos, inclusive latino-americanos. A ideia do consórcio também já havia sido estabelecida, assim como as regras do que seria a aliança. Em seu lançamento oficial, em abril, o consórcio contou inclusive com a presidente da Comissão Europeia, Ursula van der Leyen. A representação da América Latina na aliança ficou com Carlos Alvarado, presidente da Costa Rica. Ele pediu o respaldo ao multilateralismo.
MAIO DE 2020
Quase um mês depois, em 18 de maio, uma segunda reunião foi realizada e, mais uma vez, com o Brasil ausente. Tedros Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, comemorou os resultados do encontro. “Líderes de mais de 40 países se uniram”, indicou. Segundo ele, o que os governos fizeram foi “demonstrar solidariedade global”. O etíope alertou que existia o potencial de “ondas contínuas” de contaminação do vírus. Nesse contexto, uma vacina é necessária. “O vírus vai estar presente por um longo tempo e precisamos nos unir para dar uma resposta”, afirmou. O Itamaraty, instado sobre a ausência do país em tão importante iniciativa, sequer deu uma resposta sobre o evento.
JUNHO DE 2020
Somente em junho o Itamaraty enviou uma carta à OMS solicitando que a participação do país fosse considerada. Numa outra carta enviada no final de agosto para as entidades internacionais, o governo indicava que tinha interesse em fazer parte do projeto para adquirir vacinas para o equivalente a 20% de sua população.
SETEMBRO DE 2020
Ainda no início de setembro, o governo Bolsonaro não havia definido se aderiria ao projeto, mesmo depois de enviar cartas de interesse à cúpula da OMS. Na véspera do fim do prazo final para a adesão aos contratos, o governo brasileiro ainda avaliava se iria fazer parte da Covax.
Finalmente, quando definida a participação do país, a opção foi por comprar o mínimo de doses autorizadas no mecanismo, o equivalente a 10% da população nacional, quando era possível a solicitação de até 50% de cobertura. O pretexto apresentado à época foi de que o sistema de aquisição era muito rígido, associado ao fato de que o governo firmara acordo com a AstraZeneca, diante de um pandemia resiliente que exigia não apenas uma, mas uma farta cesta de imunizantes para a cobertura de milhões de vidas.
Questionado sobre essa decisão, Araújo jogou no colo do então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que depõe, não por coincidência, nesta quarta-feira (19), na mesma CPI.
O ex-ministro também tentou dourar a pílula ao afirmar que o país foi o primeiro a receber as vacinas exportadas pela Índia, quando se sabe que as doses do Instituto Serun foram enviadas, prioritariamente, para outras nações do continente asiático.
A FACE OBSCURA DO BOLSONARISMO
Hoje, do palco da CPI que pouco a pouco vai desnudando o negacionismo que vicejou abundantemente na Esplanada dos Ministérios durante a pandemia, fica mais evidente as razões de fundo que fizeram com que figuras como o sr. Ernesto Araújo, entre outros, tratassem o combate ao coronavírus a partir de uma ótica obscurantista.
A ausência do país na construção do consórcio Covax e a adesão tardia pela quantidade mínima de vacinas são revelações da rejeição aos instrumentos multilaterais e de solidariedade tão imprescindíveis entre as nações em momentos de grave crise sanitária que atinge a todos.
Multilateralismo e solidariedade são como palavrões para figuras como Ernesto Araújo & Cia, que viram e continuam vendo o momento como um “jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual, facilmente controlável”.
Não por outro motivo, Bolsonaro e seu chanceler alinharam-se até a ultima hora à vigarice trumpista da cloroquina, entre outras, em prejuízo das relações com os próprios Estados Unidos e o governo de Biden que acabara de ser eleito, fechando-se num verdadeiro casulo ao apostar caninamente todas as fichas em seu homônimo norte-americano, cujas práticas golpistas demonstradas na tentativa de assalto ao Capitólio muito se assemelham às do bolsonarismo.
Como é típico dessa gente, buscou refúgio na impostura, negando-se a assumir a defesa da tese da imunidade de rebanho cujas consequências podem ser aferidas nos números que nos aproximam de meio de milhão de mortes no país.
Confrontado com a realidade, Araújo preferiu dissimular para ocultar a obscura face do bolsonarismo que lastreou sua passagem trágica pelo Itamaraty.
Com a palavra, agora, Pazuello.
MAC