“O objetivo é guardar recursos importantes para o pagamento da dívida pública”, denuncia a fundadora da Auditoria Cidadã da Dívida e auditora-fiscal
A fundadora da Auditoria Cidadã da Dívida e auditora-fiscal aposentada da Receita Federal, Maria Lucia Fatorelli, avalia que a lógica do Arcabouço Fiscal leva para a retirada de direitos da população brasileira, “que vive na pobreza e com salários baixos”.
“O objetivo é guardar recursos importantes para o pagamento da dívida pública”, denuncia.
“O Arcabouço Fiscal, que representou praticamente uma cópia do teto de gastos sociais de Michel Temer, por um lado permitindo apenas um ínfimo aumento real de até 2,5% ao ano, desde que obedecidas outras regras instituídas pelo próprio arcabouço, como as metas de resultado primário e a necessidade de crescimento das receitas arrecadadas”, explica. O Arcabouço Fiscal foi criado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, e aprovado pelo Congresso Nacional no ano passado.
“Desta forma, o pacote [de corte de gastos do governo] serve para limitar investimentos sociais dentro do teto do arcabouço, dentro da lógica do “resultado primário”, ou seja, desconsiderando os gastos com juros da dívida, que ficam fora de qualquer ajuste fiscal”, observou Fatorelli.
A auditora-fiscal, em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), fez duras críticas ao pacote de cortes de gastos de despesas obrigatórias, proposto e encaminhado pelo ministro Haddad, no final de novembro ao Congresso Nacional.
“Desta forma, o pacote [de corte de gastos do governo] serve para limitar investimentos sociais dentro do teto do arcabouço, dentro da lógica do “resultado primário”, ou seja, desconsiderando os gastos com juros da dívida, que ficam fora de qualquer ajuste fiscal”
Na última semana, a Câmara dos deputados e o Senado aprovaram grande parte das medidas, como a limitação, até 2030, da valorização real do salário mínimo a um teto de crescimento de no máximo 2,5% – texto que foi aprovado na forma original que a Fazenda enviou ao legislativo.
Fatorelli afirma que “a redução de gastos sociais resultante das medidas desse pacote, que recai principalmente sobre as pessoas mais vulneráveis”… “deve ser de R$ 30,6 bilhões já em 2025, segundo anunciado pelo governo, e seguirá aumentando nos anos seguintes, somando R$ 327,1 bilhões até 2030, dos quais R$ 109,8 bilhões sairão do salário mínimo”, destacou. Essas estimativas feitas pela Fazenda são anteriores a aprovação do pacote fiscal pelo legislativo.
“A limitação do crescimento real do salário mínimo ao parâmetro previsto na lei do arcabouço fiscal – de 0,6% a apenas 2,5% reais anuais – é um grave ataque a dezenas de milhões de trabalhadores, aposentados e beneficiários assistenciais”, condenou a auditora.
“Se essa regra estivesse em vigor desde o início do Plano Real (julho de 1994), considerando-se o reajuste máximo possível de 2,5% reais ao ano, o salário mínimo atual seria de apenas R$ 1.095,10, e não os R$ 1.412 definidos em janeiro/2024″, observou Fatorelli.
“Ao longo dos próximos 5 anos, a nova regra trazida pelo pacote apresentado por Haddad terá um impacto negativo de quase R$ 110 bilhões no salário mínimo, além dos reflexos em benefícios calculados com base nesse indicador”, denunciou.
“Esse impacto retira uma parcela da renda da parcela mais vulnerável da população, que recebe salários baixos e depende de benefícios sociais. Por isso é de uma perversidade inaceitável, em um país tão rico como o Brasil, e que está fazendo isso para não questionar o Sistema da Dívida, seus mecanismos injustificáveis e seus juros mais elevados do planeta”, destacou.
Para Fatorelli a restrição do acesso ao abono salarial “é outra perversidade inaceitável”.
“Desde que foi instituído, trabalhadores e trabalhadoras que recebem até 2 salários mínimos mensais durante o ano têm direito de receber o abono de 1 salário mínimo no fim do ano. Esse pacote irá eliminar paulatinamente o direito de trabalhadores (as) que recebem entre 1,5 e 2 salários mínimos. Dessa forma, dentro de poucos anos, somente quem recebe até 1,5 salário mínimo terá direito a esse benefício”, explica e segue argumentando.
“Segundo estimativa do próprio governo, a mudança irá economizar R$ 18,1 bilhões até 2030, ou seja, esse é o montante que deixará de ser destinado a esse grupo de trabalhadores que têm salário mensal entre 1,5 e 2 salários mínimos, e passará a ser destinado ao pagamento dos gastos financeiros com o Sistema da Dívida”.
Outra medida condenada pela auditora foi a proposta da área econômica que propunha restringir o acesso ao BPC (Benefício de Prestação Continuada), que, hoje, garante um salário mínimo por mês a idosos com idade igual ou superior a 65 anos e pessoas com deficiência, com a renda por pessoa do grupo familiar igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo.
Para aprovar essa proposta, os parlamentares tiveram de rejeitar ou amenizar trecho da proposta original que consideravam “duras demais”, mas a essência da proposta – de afunilar o acesso do benefício – foi mantida no texto.
Para Maria Lucia Fatorelli, enquanto mais uma vez se cobra o sacrifício do povo para o reequilíbrio fiscal, “o maior gasto do país, referente a juros e amortizações do Sistema da Dívida, que provocam o maior rombo às contas públicas e são responsáveis pelo déficit nominal histórico”, segue sigiloso, sem nenhuma identificação dos detentores dos títulos públicos, e livre de qualquer censura por regras limitadoras de gastos.
“Evidentemente, se o governo enfrentasse os mecanismos que alimentam esse sistema, não precisaria estar apresentando esse pacote. Em lugar desse pacote, já poderíamos ter avançado com o PLP 104/2022, que limita os juros no Brasil, caso o governo apoiasse esse projeto. Poderíamos também ter iniciado a auditoria dessa dívida e enfrentado mecanismos como a bolsa banqueiro”, afirma a Fatorelli.
“O bolsa banqueiro”, explica a auditora, “é a remuneração que o Banco Central paga diariamente aos bancos sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles”.
“Qual a justificativa para isso? Não há. É uma ‘bolsa’. Atualmente, o montante de R$ 1,64 trilhão no caixa do Banco Central representa a sobra de caixa dos bancos; é um dinheiro que pertence à sociedade que mantém depósitos bancários ou aplicações financeiras”, segue Fatorelli.
“Esse dinheiro da sociedade deveria retornar a ela por meio de empréstimos para pessoas e empresas a juros baixos, a fim de dinamizar a economia com a ampliação de negócios e geração de emprego e renda. Mas não é isso que acontece. O Banco Central aceita o depósito dessa fortuna e paga diariamente a taxa SELIC (juro base da economia) ou até mais sobre este valor aos bancos, por meio das chamadas “operações compromissadas” ou “depósitos voluntários remunerados”.
“Em 2023, o Banco Central gastou mais de R$ 220 bilhões para doar esses juros aos bancos, sobre um dinheiro que nem sequer pertence a eles”, condenou a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida.