
Em meio aos protestos na Bolívia contra a decretação unilateral do adiamento das eleições, de parte do governo de fato e seus instrumentos, e contra a incúria diante da pandemia, o ex-ministro da Economia e favorito nas pesquisas, Luis Arce, candidato do MAS (Movimento Ao Socialismo), em entrevista ao jornal brasileiro O Globo ressaltou suas propostas para reconstruir a estabilidade econômica, social e política da Bolívia, perdida sob o golpe, e que permitira que, por seis anos consecutivos, fosse o país de maior crescimento econômico na América do Sul.
O jornal deu ênfase à autocrítica do MAS, reafirmada por Arce, de que “aprendemos que é preciso respeitar os referendos”, referindo-se à decisão de Evo Morales concorrer ao quarto mandato, após sentença favorável da principal corte do país, uma possibilidade no entanto já recusada por plebiscito em 2016.
Arce, como responsável pela pasta da Economia na maior parte dos 13 anos de governo de Evo Morales, esteve à frente da reconstrução do país em novas bases, com industrialização e fortalecimento da estatal do petróleo e gás, e o PIB crescendo em média 5,0% ao ano. Os bloqueios ocorrem em seis dos nove departamentos (Estados) do país.
GOTA D’ÁGUA
Em relação aos protestos e bloqueios de estrada em curso, Arce enfatizou que a gota d’água foi a decretação unilateral desse quarto adiamento das eleições, passando por cima dos partidos e da lei vigente. É isso que está levando as pessoas “a arriscarem suas vidas no bloqueio”, contra o desastre na Saúde e contra a falta de assistência do governo de fato à população.
Como observou Arce, em razão da pandemia as eleições já haviam sido adiadas por três vezes de forma consensual pelos partidos e concordância da sociedade civil, com última data marcada para 6 de setembro.
A pergunta feita a ele pelo O Globo foi: “Evo Morales reconheceu que foi um erro se candidatar a uma nova reeleição. O que o MAS aprendeu com esse erro?”
Em sua resposta, Arce disse que a candidatura a uma nova reeleição “gerou no país uma linha política muito dura, que abriu espaço para o golpe de Estado de novembro”, apesar de estar “no marco constitucional legal”.
“A lição aprendida é que é preciso respeitar o que digam os referendos e o que diga o povo boliviano, mas também esperamos que assim façam os partidos que vão estar na disputa eleitoral das próximas eleições”.
CAOS NA SAÚDE
Sobre a gestão do governo de fato de Jeanine Áñez da crise do coronavírus, que já contagiou 90 mil e matou mais de 3.600, Arce afirmou “lamentar pelos bolivianos que, justamente em uma pandemia, não estamos vivendo em uma democracia”, mas sob um “governo improvisado”, que “não cumpriu as expectativas”.
Sobre o caos na Saúde no país em plena pandemia, ele lembrou que em menos de um ano, o país já teve três ministros da pasta.
Depois de uma quarentena parcial em março, seguida por uma quarentena total, o governo Áñez “não conseguiu durante esse tempo todo planejar uma resposta e comprar o que devia para enfrentar o coronavírus”, dos respiradores às UTIs e aos testes, denunciou. Quando comprou, “foram superfaturados”.
Médicos, enfermeiras, policiais e militares envolvidos na assistência aos doentes e na manutenção da quarentena continuam sem os equipamentos de proteção pessoal indispensáveis, disse ainda Arce. “As estatísticas são mentirosas”.
Também foi inteiramente inadequada a resposta do governo quanto à assistência às pessoas no quadro de paralisação da economia sob a pandemia.
“Os benefícios chegaram tarde demais”, assinalou, lembrando o peso da economia informal na Bolívia. “As pessoas ganham por dia de trabalho; nesse sentido a quarentena tem um efeito brutal na diminuição de renda”. Ele revelou que o governo acabou cedendo a algumas propostas do MAS.
“Houve um aumento da fome no país porque muitas pessoas não tinham o que comer sem trabalhar”, registrou o candidato do MAS. Ele acrescentou que nos bairros populares foram organizadas refeições comunitárias, “o que mitigou o efeito das políticas equivocadas deste governo”.
RECESSÃO
Quanto à economia, com a volta do neoliberalismo depois do golpe de novembro, já caiu 1,1% no último trimestre do ano passado, e “afundou de vez” com a pandemia. Em abril, a Bolívia já estava sob recessão de 5,6%: “nunca havíamos chegado a níveis tão baixos”.
Outro desastre é na educação. O governo Áñez decretou de maneira abrupta o encerramento do ano letivo, com cinco meses de ano escolar pela frente, “o único país da região a fazê-lo” – contra a posição da Federação dos Trabalhadores da Educação.
“Este governo já nos mostrou sua inclinação contra a educação e a cultura, fechando o Ministério da Cultura há alguns meses”, apontou Arce.
O líder boliviano também condenou as repetidas violações de direitos humanos e da liberdade de expressão por parte do governo Áñez. “Os poucos meios de comunicação que denunciam os atos de corrupção são perseguidos e o clima político está exacerbado”, ressaltou o ex-ministro, comentando ainda que o regime culpa o MAS “por tudo”.
OEA FRAUDULENTA
O candidato do MAS disse que observadores internacionais de respeito, como a Fundação Carter e a União Europeia, são bem-vindos ao processo eleitoral na Bolívia, mas não a OEA, cuja ingerência criou o pretexto para o golpe.
“Não é um organismo que garante transparência ou eleições limpas, está totalmente politizado e ao lado da direita no meu país, não sei em outros”, assinalou. “Aqui isso ficou muito claro. Catapultaram uma suposta fraude eleitoral que, agora sabemos, não aconteceu. Seus informes já foram descartados por outros estudos”, acrescentou.
Na entrevista, também foi abordada a ingerência do atual governo brasileiro na crise política de novembro da Bolívia. Conforme testemunho de um adversário político do MAS, o embaixador brasileiro estava presente na reunião que decidiu o nome do ‘presidente interino’, após a derrubada de Evo.
Quanto a futuras relações de um novo governo do MAS com o atual governo brasileiro, Arce disse que o desejo é ter relações com todos os países, desde que a soberania boliviana seja respeitada. “Não temos problemas em conversar com governos de qualquer espectro político, desde que as negociações sejam benéficas para ambos os governos e não apenas um”.
ESTABILIDADE
A autocrítica do MAS facilita a recomposição da classe média, que apoiava Evo, mas aderiu ao golpe e já se decepcionou com o desgoverno de Áñez.
Como observou Arce,”o efeito econômico causado pela política neoliberal criou um enorme risco de que a classe média volte a cair na pobreza. A tarefa que temos agora, após a pandemia, é a reconstrução da economia e a reativação desses setores, que precisam reagir”.
“Isso vai gerar uma tranqüilidade na classe média, que vai voltar a ter emprego e renda vamos voltar a ser o país que fomos, durante seis anos consecutivos a primeira economia em taxa de crescimento na região. Contávamos com uma estabilidade econômica, social e política na Bolívia, que foi desfeita. Precisamos reconstruir essa trilogia de estabilidade”, concluiu.
Outras ingerências descaradas, como a do governo Trump, e do bilionário Elon Musk, dono da Tesla, dizendo que a tomada do poder foi o “golpe do lítio” e que dá golpe “em quem quiser”, não foram motivo de análise na entrevista. A Bolívia possui as maiores reservas de lítio do planeta, o ‘ouro branco’, que é a matéria prima essencial das baterias dos carros elétricos.
IMPASSE AINDA
Posteriormente a essa entrevista, Arce assinalou, segundo a AFP, que se vê claramente que não será possível cumprir a data (de 6 de setembro). “É preciso propiciar o diálogo para poder resolver este tema. Acompanharemos qualquer decisão que resulte do diálogo”.
Para aceitar uma nova data, o MAS exige que seja definida por lei, e não por uma mera resolução. Que seja definitiva, já que os reiterados adiamentos geram inconformismo na população, e que o acordo alcançado tenha o aval da comunidade internacional. Em paralelo às manobras palacianas, a Assembleia Nacional vem buscando pavimentar um acordo.
Por sua vez o secretário-executivo da Central Operária Boliviana (COB), Juan Carlos Huarachi, entidade que encabeça os bloqueios, após dizer que a data teria de manter a eleição no dia 6 de setembro, admitiu “chegar a um acordo” sobre uma nova data [que não 18 de outubro], “um meio-termo, mas eles não aceitam”.
Já o assim chamado ‘diálogo’ de Áñez sobre o quarto adiamento das eleições, fracassou no domingo. Só participaram pequenos partidos, que juntos não chegam a 3% do eleitorado.
Os candidatos Carlos Mesa, Jorge Quiroga e Luis Fernando Camacho declinaram participar da reunião. Mesmo esses partidos menores pediram que Áñez desista da candidatura e se dedique unicamente ao exercício da presidência interina.
Manifestantes vêm pedindo a renúncia dela nos protestos e desmentiram a acusação de que os manifestantes impediam a chegada de oxigênio para os doentes da Covid-19, já que esse tipo de carga tem trânsito livre pelos bloqueios.