
Durante a visita de Bolsonaro os argentinos ocuparam as ruas em defesa da soberania e da solidariedade entre os povos; repeliram as políticas neoliberais de Bolsonaro e Macri e deram um “NÃO às declarações racistas e de apologia à tortura expressas por ambos
Aos brados de “seu ódio não é bem-vindo aqui”, milhares de argentinos foram às ruas de Buenos Aires para repudiar a presença do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, apologista da tortura e da ditadura, bem como da discriminação e do neoliberalismo sem peias. Os manifestantes marcharam do centro da cidade até a Praça de Maio, em frente à Casa Rosada, sede do governo, onde o protesto prosseguiu como festival cultural “Argentina rechaça Bolsonaro”, na quinta-feira.
A convocatória do ato registrou, ainda, que o presidente argentino Mauricio Macri “é um dos poucos presidentes no mundo que fariam uma foto” com Bolsonaro. O rechaço repete o fiasco em Nova Iorque, que inclusive levou Bolsonaro a transferir sua ‘visita’ para Dallas, cidade conhecida principalmente por ser onde o presidente Kennedy foi assassinado e por ser tema de série de televisão sobre oligarcas do petróleo.

Apesar de, na manifestação, ter sido decisivo o apoio de entidades progressistas de grande tradição no país irmão, como as Avós da Praça de Maio e a Central dos Trabalhadores Argentinos, o repúdio vai muito além, por se tratar de um país onde 30 mil oposicionistas foram assassinados nas masmorras do regime e um número ainda maior sofreu tortura. E onde até o sequestro de bebês de mulheres mortas pela repressão, e entrega a colaboracionistas para que os criassem, ocorreu.
OFENSA IMPERDOÁVEL
Para a população argentina, a apologia da tortura, dos assassinatos políticos e da ditadura é uma ofensa imperdoável, o que, certamente, está além das possibilidades de compreensão de Bolsonaro. A ditadura argentina é aquela à qual o então secretário de Estado Kissinger pediu que se “apressassem” porque a oposição nos EUA ia ganhar as eleições e os torturadores ficariam sem retaguarda. E eles se apressaram. Antros da tortura se tornaram símbolos de um passado que nenhum argentino quer ver repetido ou justificado.
Os organizadores ressaltaram que o protesto é “em defesa da soberania, da solidariedade latino-americana, contra as políticas neoliberais de Bolsonaro e Macri” e um “NÃO ao autoritarismo, ao militarismo e às várias declarações racistas, machistas, homofóbicas e de apologia à tortura expressa por ambos”.
As entidades advertiram, ainda, que “a violência que [Bolsonaro] emite, negando os crimes contra a humanidade das ditaduras latino-americanas, coloca em perigo a continuidade democrática de um dos países com maior peso na nossa América Latina”.
Desde que a indesejada visita foi anunciada, começaram nas redes sociais os memes contra sua pregação de ódio e obscurantismo. A Anistia Internacional salientou que a “retórica hostil” do inquilino do Palácio do Planalto “estimula a proliferação de discursos de ódio, a polarização, e poderia legitimar violações aos direitos humanos”.
MIASMA
Apesar de há vários anos ter se tornado uma tradição que a primeira visita do presidente eleito seja ao país vizinho, tanto de parte da Argentina quanto do Brasil, não foi essa a preferência de Bolsonaro. Foi primeiro ao Chile, provavelmente em busca dos miasmas de Pinochet e de Milton Friedman, depois foi a Israel para mergulhar nas águas turvas de Netanyahu, e, o auge, aos EUA para o beija-mão a Trump e a indizível recordação do dia em que bateu continência para a bandeira norte-americana, a 300 quilômetros do Disney World.
Nada de pessoal, apenas que Macri e a retomada do neoliberalismo haviam conduzido a Argentina a um desastre tamanho, e de volta ao FMI, que até Bolsonaro achou conveniente retardar o encontro. Acabou, quem sabe, demorando demais, e com a rapidez da desmoralização do seu próprio governo, a coisa ficou parecendo um abraço de afogados. Mas Bolsonaro não se vexou, e conclamou os argentinos a votarem “com a razão”, não com a “emoção” em Macri. “Responsabilidade”, é isso aí, gente. Só faltou sugerir o slogan da campanha da reeleição: “vote Macri por relações carnais com os EUA”.
EU SOU VOCÊ AMANHÃ
A seis meses das eleições, é dramática a situação da Argentina, depois do desgoverno de Macri, conforme compilação a partir do El País. Macri levou o país a quebrar e teve de ser socorrido pelo maior empréstimo da história do FMI, US$ 56,3 bilhões, em troca de arrocho e cortes de gastos públicos desmesurados, com promessa de ‘superavit’ fiscal em 2021. “Entre dezembro de 2015, quando Macri chegou ao poder, e 2018, quando a economia sofreu intervenção do FMI, a Argentina foi o maior emissor mundial de dívida em termos absolutos e havia acumulado quase 143 bilhões de dólares, mais da metade dos quais foram ao exterior”.
Macri pagou os fundos abutres, jurando que ao abrir as porteiras o capital estrangeiro iria inundar o país e levá-lo ao crescimento, suspendeu as defesas da produção nacional e a moratória, mas a casa caiu. A inflação acumulada durante o mandato de Macri “supera os 260%” e o peso “desvalorizou 360% em relação ao dólar”.
A construção, o comércio e a indústria, que representam quase a metade do emprego argentino, “sofreram uma queda de atividade próxima a 40% durante os já onze meses de recessão”. O poder aquisitivo dos salários “caiu quase 20%”. Os pequenos trabalhos informais, “popularmente conhecidos como changas”, foram dizimados.
O quadro social é tenebroso. “Um de cada dois argentinos menores de idade é pobre e um de cada dez passa fome em um país que exporta alimentos para 400 milhões de pessoas”. “Quatro em cada dez crianças na Argentina vivem em lares com déficits de saneamento e dois em cada dez dormem em camas ou colchões compartilhados. 20% não foram ao médico em 2018 e o número é duplicado em comparação com aqueles que não visitaram um dentista. 41% não possuem livros infantis em casa e 21% não comemoraram seu aniversário”.
Outro fato preocupante é o aumento do trabalho infantil. “Entre 2017 e 2018, o percentual de crianças entre 5 e 17 anos no trabalho aumentou de 12% para 15,5%”. “O inverno será frio, porque o aumento das tarifas de gás e eletricidade (entre 300% e 600% durante o mandato de Macri, a partir das tarifas baixíssimas e subvencionadas do kirchnerismo) torna proibitiva a calefação em muitas casas”.
TOCAIA NA CURVA
E o “resgate” pelo FMI, que elevou para 97% do PIB a dívida pública argentina, vai pesar sobre os ombros argentinos bem rapidamente. “De acordo com as condições assinadas em Washington, em 2021 devem ser devolvidos 3,8 bilhões de dólares; em 2022, 18,5 bilhões; em 2023, 23 bilhões, e em 2024, 10,1 bilhões de dólares. Os pagamentos de 2022 e 2023 podem atrasar qualquer crescimento em uma economia cujo PIB anual mal supera os 600 bilhões de dólares. A visita de Bolsonaro e sua comitiva durou menos de 24 horas.