Em artigo na Folha deste domingo (25), o porta-voz dos bancos tenta impor a Lula uma política econômica que não altere em nada a ciranda financeira e o caos instalado no Brasil
O ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga, defendeu, em artigo publicado na Folha de S. Paulo deste domingo (25), a arenga neoliberal de que o Brasil deve se manter no atual estado de estagnação econômica em que se encontra.
Num estado em que há anos o país chafurda por se submeter às mais diversas políticas de arrocho fiscal, entre elas a “excrescência constitucional” do teto de gasto, implantado no governo Temer.
APOIO AO DESASTRE BOLSONARISTA
Armínio Fraga avaliza em seu artigo na Folha o desastre bolsonarista na economia ao elogiar o superávit primário de 0,6% do PIB, obtido pelo governo em 2022, segundo projeções oficiais. “Este é o exemplo a ser seguido por Lula”, disse o ex-presidente do BC. Mais do que isso, ele defendeu que o superávit primário – recursos reservados para os bancos – no primeiro ano do governo Lula seja ainda maior e atinja 1% do PIB. Sobre a tragédia econômica provocada no país por essas políticas, tanto no longo prazo, quanto no último ano, nenhuma palavra.
A criminosa desindustrialização do país, que empobrece o Brasil há décadas, os cerca de 33 milhões de brasileiros passando fome, os investimentos mais baixos da história nos últimos anos, as universidades e institutos federais se transformando em pedintes, sem condições de funcionar, a vergonhosa suspensão de emissão de passaportes por falta de dinheiro para a Polícia Federal, os cortes no fornecimento de água para o Nordeste, o congelamento da merenda escolar, o arrocho de quatro anos nos salários de servidores, a falta de recursos para pagar aposentadorias, a extinção das farmácias populares, nada disso importa para Fraga.
Como bom rentista – Fraga foi membro do Conselho Internacional do JP Morgan e diretor da Soros Fund Management – ele só tem olhos para o superávit primário, ou seja, para o dinheiro que sai do Orçamento da União e é transferido para os cofres de banqueiros e rentistas como ele. Todo esse desastre na economia provocado pela especulação financeira é visto por Fraga como “um bem que foi feito ao país e que não pode ser abandonado”. A que “país” ele se refere não se sabe, mas certamente não é o Brasil.
Ao ameaçar com inflação, caso Lula retome os investimentos e o país cresça, Fraga envereda pela grotesca falta de escrúpulos da falida “Escola de Chicago”, de Guedes & Cia. Ele mente sem nenhum pudor sobre as causas da atual inflação.
ENERGIA E ALIMENTOS CAUSARAM INFLAÇÃO
Qualquer estudante de economia sabe que a inflação de 2021/2022 não tem nada a ver com excesso de liquidez ou aumento de demanda. O núcleo central da atual inflação esteve na crise energética, que elevou os preços dos combustíveis, e no desarranjo da cadeia global de suprimentos, provocado pela pandemia e agravado pelas sanções dos EUA à Rússia. Alimentos e gasolina dolarizados subiram de preços e a falta de uma política e abastecimento de Bolsonaro agravou a situação.
Ao creditar a redução das taxas de inflação, ocorrida nos últimos meses deste ano, à atuação do Banco Central e seus juros altos, Fraga confirma sua desonestidade intelectual e o seu oportunismo. “O esforço [elevação dos juros] vem dando resultado, mas as expectativas de inflação embutidas nas taxas de juros dos títulos do governo ainda apontam para uma inflação de 6,5% ao ano a perder de vista, o que significa que o trabalho do BC está longe de estar concluído”, argumentou.
Ele esconde cinicamente que os preços baixaram nos últimos meses por conta da redução dos preços do petróleo no mercado internacional e do valor das commodities, em decorrência da desaceleração da economia da China. Ou seja, vale tudo, inclusive a mentira grosseira, para chantagear o novo governo.
Se investir e melhorar a vida do povo, haverá inflação, diz ele. Além dessa xaropada de que investimentos provocam inflação já estar descartada em quase todo o mundo, há muitos anos – vide o quantitative easing (QE), John Maynard Keynes já havia esclarecido essa questão também há muito tempo. Não é inflacionária, diz o famoso economista, a expansão monetária em economias com capacidade ociosa em alta, como é o caso do Brasil. Portanto, por vários lados, não procede a “ameaça” inflacionária de Fraga.
Outra “malandragem” do economista para chantagear Lula e o novo governo é dizer que Dilma Rousseff teria levado o Brasil à recessão por ter feito em 2014 o que o novo governo quer fazer agora. Ou seja, aumentar os investimentos públicos e elevar o poder de compra dos salários.
CORTE DE INVESTIMENTOS PROVOCOU RECESSÃO
Não é verdade. Foi exatamente o contrário o que ocorreu naquela ocasião. Após as altas taxas de investimento do segundo governo Lula, Guido Mantega, então ministro de Dilma, afirmou que era preciso reduzir os investimentos públicos para abrir espaços para a iniciativa privada. E foi isso o que aconteceu a partir de 2013. A indicação de Joaquim Levy para a Fazenda confirmou a guinada em relação à política econômica anterior. Esse foi o problema que levou à recessão e não o “excesso” de investimentos e salários.
Todo esse esforço de Fraga em falsear a realidade tem o objetivo de não permitir que o Brasil se livre da camisa de força das políticas de arrocho fiscal que alimentam a especulação financeira e que há muito vêm destruindo a estrutura produtiva do país. Ele se empenha em convencer o novo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, a enviar ao Congresso Nacional um novo “arcabouço fiscal” que não altere em nada as atuais restrições orçamentárias. Em suma, ele que manter tudo exatamente como está.
Fraga não faz a menor cerimônia em detalhar onde Lula deve arrochar. “Tal ajuste teria que ocorrer nas rubricas mais relevantes, como a folha de pagamentos e a Previdência”, defende o articulista. Traduzindo, o economês: quem tem que ser arrochado são os trabalhadores que, segundo ele, estariam nadando em dinheiro e causando inflação, e os aposentados que, na visão de Fraga, são uns verdadeiros marajás.
O cinismo não para por aí. “Em todas [essas medidas], o ajuste poderia e deveria contribuir diretamente para uma redução da desigualdade de renda, algo que certamente deveria fazer parte dos planos de um governo de centro-esquerda de um país tão desigual como o nosso”, diz o porta-voz dos bancos. Ele deixa claro que “reduzir desigualdades”, para os banqueiros como ele, significa colocar “todos ‘igualmente’ na sarjeta”.
Fraga conclui dizendo que o governo Lula tem que ser corajoso para fazer o inverso do que ele prometeu em sua campanha. “Não há chance de sucesso sem encarar esse desafio, mas as resistências serão ferozes, como sempre”, disse. “Nessas horas, cabe a nossos líderes lembrar que com o grande ajuste ocorreria uma relevante queda nos prêmios de risco na economia, elemento essencial para a construção de um ciclo virtuoso de crescimento e estabilidade”. Ou seja, com os banqueiros felizes e o país estagnado, tudo “fica em ordem”. Esse é o “ciclo virtuoso” de Fraga.
SÉRGIO CRUZ