Em nota oficial sobre os depoimentos de Antonio Palocci que foram recentemente divulgados, a presidenta nacional do PT, Gleisi Hoffmann, afirmou que “nada que Antonio Palocci diga sobre o PT e seus dirigentes tem qualquer resquício de credibilidade desde que ele negociou com a Polícia Federal, no âmbito da Lava Jato, um pacote de mentiras para escapar da cadeia e usufruir de dezenas de milhões em valores que haviam sido bloqueados”.
Em suma, Palocci não tem credibilidade porque confessou – e a srª Hoffmann considera que confissão, quando implica Lula e o PT, é sempre mentira. Por que é mentira? Ora, porque implica Lula e o PT.
Com uma definição dessas do que é mentira, resta saber o que não é mentira. Pois, com isso, a diferença entre o que é verdade e o que é mentira deixa de ter sentido. Parece um pouco com a jurisprudência do sr. Gilmar Mendes, que, nas palavras de um colega seu, “muda de acordo com o réu” (v. HP 03/19/2019, Melhor um procurador geral maluco do que um ministro patife no STF).
Porém, parece mais ainda – embora a forma seja algo mais amaciada – com aqueles brucutus bolsonaristas, que acham certo qualquer coisa que Bolsonaro faz, porque é o Bolsonaro que fez.
Pois a questão, até agora, é que os fatos confirmaram os depoimentos de Palocci (v., por exemplo: HP 03/10/2019, Mantega passou informação ao BTG e parte de Lula era 10%, depõe Palocci).
Porém, diz a srª Hoffmann que Palocci mentiu “para escapar da cadeia e usufruir de dezenas de milhões em valores que haviam sido bloqueados”.
Que dezenas de milhões? Quer dizer que o ministro da Fazenda de Lula e, depois disso, coordenador da campanha de Dilma (um dos “três porquinhos”, a quem ela agradeceu após sua eleição, em 2010) e seu ministro da Casa Civil, era um ladrão?
Papagaio!
Mas como é que o PT não tomou nenhuma providência quanto a isso? Será que a srª Hoffmann e seus colegas só repararam que conviviam, há décadas, com um ladrão no momento em que ele se ofereceu para fazer uma “colaboração premiada”?
Ou será que acreditavam que Palocci ganhou “dezenas de milhões” com o trabalho honesto, como diz a Bíblia, com o suor do seu rosto?
O mais ridículo é que todo mundo na cúpula do PT – e até fora – sabia que Palocci era o operador de Lula. Foi isso o que lhe garantiu a reabilitação, após o escândalo que o derrubou do Ministério da Fazenda, com sua elevação outra vez ao Ministério (e, ainda por cima, da Casa Civil: o lugar que a própria Dilma ocupara no governo Lula).
O CASO DO BANCO SAFRA
Como o conjunto dos depoimentos de Palocci são de uma extensão razoável, aqui, vamos transcrevê-los por partes, e em resumo, sobretudo os anexos dos depoimentos.
Comecemos por um caso menos conhecido publicamente: as relações com o banqueiro Joseph Safra e seu banco, o Banco Safra.
Primeiro, a sinopse do caso, realizada pelos que interrogaram Palocci:
“Conforme consta dos anexos envolvendo o Banco Safra, bem se percebe que o colaborador [Palocci] realizou diversos atos de ofício, em conjunto com outros agentes políticos, sobretudo Lula, perante variados órgãos, buscando beneficiar o Banco Safra.
“As contrapartidas aos atos praticados se davam das mais variadas maneiras:
“(a) doações formais para as campanhas e ‘caixa dois’;
“(b) repasses em espécie;
“(c) ‘doação’ para o Instituto Lula;
“(d) repasses por intermédio da Projeto [empresa de consultoria de Palocci].
“Desta forma, de um lado, o Banco Safra remunerava constantemente Palocci, de outro lado, Palocci atendia ao Banco Safra em seus pleitos perante o governo.
“A relação era tão próxima que, em dado momento, Antonio Palocci chegou a indicar o Presidente do Banco do Brasil, Rossano Maranhão, para o cargo de presidente do Banco Safra, tornando a relação ainda mais fluída.
“Vale dizer que Rossano Maranhão era pessoa de irrestrita confiança de Palocci.
“Além disso, Lula e Antonio Palocci comentavam entre si que tinham uma verdadeira ‘conta sem limite’ com o Banco Safra.
“Vale dizer que, só por intermédio dos contratos realizados com a Projeto [a empresa de consultoria de Palocci], o Banco Safra pagou a quantia de R$ 1,25 milhão de reais em vantagens indevidas para Antonio Palocci, afora as outras vias de repasse.
“O Safra, por sua proximidade com Antonio Palocci, além de todos os métodos de repasse já mencionados, chegou a fazer repasses em espécie para o colaborador e Lula,conforme será narrado em anexos específicos” (cf. Anexo 01, “Vantagens indevidas recebidas através da Projeto”, item 2 – “Atos de Ofício para o BANCO SAFRA”).
CARREIRA
Rossano Maranhão era funcionário de carreira do Banco do Brasil (foi, inclusive, vice-presidente da área internacional no governo Fernando Henrique, substituindo o notório Ricardo Sérgio de Oliveira, depois que este foi pego em flagrante por um grampo telefônico, durante a privatização das empresas de telecomunicações).
Em 2005, por escolha de Palocci, Rossano Maranhão tornou-se presidente do Banco do Brasil, cargo do qual saiu em 2006, depois que Palocci caiu do Ministério, com a revelação de que mantinha, com alguns amigos, uma casa suspeita (estamos sendo educados) em Brasília para fazer negócios.
Ao sair da presidência do BB, Maranhão, realmente, transferiu-se para o Banco Safra. Foi depois, em 2011, convidado pessoalmente por Dilma para a presidência da Infraero e a Secretaria de Aviação Civil. Após a reeleição de Dilma, era um dos nomes cotados para o Ministério da Fazenda, finalmente entregue a Joaquim Levy.
Maranhão fez uma declaração estranha (ou nem tanto) quando Aldemir Bendine, seu sucessor na presidência do BB (e, depois, no governo Dilma, presidente da Petrobrás) foi preso por corrupção: “Rossano Maranhão, ex-BB e atual presidente do Safra, diz que não se surpreendeu com a prisão de Aldemir Bendine semana passada” (v. Sonia Racy, Prisão de Bendini não surpreendeu a Rossano Maranhão, ex-presidente do BB, OESP 01/08/2017).
O ESPECTRO FINANCEIRO
Quanto ao verdadeiro mandachuva do Safra, Joseph Safra, aquele com quem Lula e Palocci tratavam, eis um perfil do cidadão:
“Quando se trata de estranhas transações, é difícil antepor o nome de Joseph Safra ao do seu banco. O banqueiro está – e não está – associado às delações de Antônio Palocci, envolvendo o repasse de dinheiro por fora para o Instituto Lula e a campanha eleitoral de Fernando Haddad, aos casos de facilitação da venda da Aracruz Celulose para o Votorantim e aos negócios incluindo Casino, Carrefour e Abílio Diniz. Mas o banco está presente em todos. Joseph igualmente está – e não está – ligado à Operação Zelotes e ao Caso Wikileaks. Mas, o banco está presente. Ele está – e não está – indexado às estripulias cambiais que levaram a Aracruz à garra antes de ser adquirida pela então Votorantim Celulose e Papel (VCP), posteriormente Fibria Celulose e recém-incorporada pela Suzano.
“E a instituição comparece. Joseph sempre esteve – e não esteve – vinculado a virtuais operações de gestão temerária ou contravenção. O banqueiro dos banqueiros sempre conseguiu que sua pessoa física se diluísse na placa do banco. Ele deslizou pelos meandros da instituição financeira devido às discussões judiciais por suspeito recebimento de dinheiro desviado de obras públicas durante a gestão do ex-prefeito paulistano Paulo Maluf. Coube ao Safra National Bank of New York a responsabilidade pela operação. O banco firmou um termo de ajuste de conduta (TAC) no valor de US$ 10 milhões. Joseph também esteve – mas não esteve – no episódio de lavagem de dinheiro, na Suíça. Quem compareceu foi o J. Safra Sarasin Ag, junto com mais quatro bancos, com o montante total de US$ 1 bilhão. Talvez a única vez que o lendário banqueiro teve arranhada sua impoluta imagem tenha sido na Operação Zelotes, em processo no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
“Seu nome, quase um arcano, veio à tona. Joseph foi acusado, junto com seu ex-funcionário João Inácio Puga, de pagamentos por fora à Receita Federal para obter a anulação de multas da ordem de mais de R$ 2 bilhões. Em um primeiro momento, o Ministério Público chegou a considerar o banqueiro como o ‘longa manus’ de Puga. Mas, como sempre, Joseph acabou diluído no imbróglio. Puga dirimiu-o de qualquer responsabilidade, assumindo, sozinho, uma decisão de tamanha monta. O Sistema Nacional de Passaportes identificou que o banqueiro passou 151 dias no exterior e por isso não tinha tempo para discutir pessoalmente o assunto. E como era de se esperar, em 12 de dezembro de 2016 o Tribunal Regional Federal da 1° Região encerrou a ação penal contra o banqueiro Joseph Safra. Assim como algumas criaturas da literatura, é possível que o dono do Banco Safra não exista. Seja um espectro que paira sobre o sistema financeiro. Joseph, o mais emblemático e silencioso dos banqueiros, gostaria que essa versão fosse a realidade”.
Não se trata de um retrato feito – ou deformado – por algum comunista, esquerdista ou nacionalista: cf. Relatório Reservado, Crônica de um banqueiro acima do bem e do mal, ed. 6184, 22/08/2019).
Segundo a confissão do ex-ministro, “o Banco Safra sempre foi muito próximo de Lula e de Palocci, de forma que sempre teve ‘facilidade’ para resolver suas questões com o governo, repassando as quantias que lhe eram solicitadas, das mais variadas maneiras”.
SÍNTESE
Vejamos, então, o primeiro anexo do depoimento de Palocci:
“Palocci tinha ‘carta branca’ para buscar recursos (dinheiro) com o Safra sempre que ele ou Lula precisassem.
“De forma a bem esclarecer, todos os repasses do Safra à Consultoria Projeto visavam remunerar Palocci pelos ‘favores’ prestados junto ao governo.
“Um dos casos em que Lula atendeu o Banco Safra, foi no pedido que beneficiou a empresa francesa Casino.”
Vejamos o que foi isso.
Em 2005, Abílio Diniz vendeu a maior parte das ações do Grupo Pão de Açúcar para o grupo francês Casino, também da área de supermercados. Pelo contrato, os franceses do Casino assumiriam o controle do Pão de Açúcar em 2012.
Em 2011, Diniz tentou uma manobra: pegar R$ 4,5 bilhões no BNDES para fazer uma “fusão” com outro grupo francês, o Carrefour, e escantear o Casino (v. HP, 08/07/2011, Sem acordo e sem recursos do BNDES, controle de 65% do Pão de Açúcar pelos franceses não prospera).
Em suma, ele propunha que o governo lhe entregasse R$ 4,5 bilhões do BNDES para que pudesse passar por cima de contratos que ele mesmo havia assinado – com o sensacional resultado de entregar o Pão de Açúcar a outro grupo francês.
No início, o governo parecia inclinar-se para contemplar Diniz com o dinheiro do povo, em um negócio desastroso.
Depois, mudou de posição, o que atribuímos, na época, ao escândalo público causado pela pretensão de Diniz – o que é verdade.
O que Palocci relatou em seu depoimento é que essa não foi toda a verdade:
“Conforme descrito no anexo referente à situação conflituosa ‘Casino X Abílio Diniz’ [N.HP: depois publicaremos também esse anexo], o Casino se comprometeu a repassar 30 milhões de euros a Lula e ao PT, caso Lula atuasse junto ao Governo (Dilma) e ao BNDES (Luciano Coutinho) para dificultar a ‘atuação’ de Abílio, o que efetivamente foi feito.
“Os repasses foram realizados das mais variadas formas, sobretudo em virtude do expressivo montante que ficou acertado.
“A operação ficou a cargo do Banco Safra, até mesmo porque foi Joseph Safra quem intermediou o contato entre Jean-Charles [Naouri], Presidente do Casino, e Lula, em um jantar do qual também participou Clara Ant.”
Lula estava, no entanto, fazendo jogo duplo. Como em todo jogo duplo, um dos lados servia apenas de pato ou de otário (o grifo abaixo é nosso):
“Palocci não participou do jantar, tendo em vista que representava os interesses de Abílio. Não obstante, Lula lhe relatou tudo, pois ele teria um papel muito importante: ‘segurar’ Abílio no que fosse possível.
“Neste caso do Casino, após a realização dos atos inegavelmente favoráveis, os repasses da propina começaram a ser realizados, sendo que, em virtude do expressivo montante, foi necessária a diluição temporal.
“Os valores ficaram alocados no Safra, provavelmente na filial da Suíça, em nome do próprio Joseph Safra.
“Tanto é assim que Joseph Safra convidou Palocci para ser Conselheiro do banco na Suíça.
“O PT recebeu através de doações oficiais e por meio de ‘caixa dois’.
“Lula recebeu através do Instituto Lula e pessoalmente em espécie (‘cash’).
“Aqui é que entra Antonio Palocci, pois foi ele quem pessoalmente foi ao Banco Safra solicitar os repasses para o Instituto Lula, bem como ‘recolher’ os valores para serem entregues diretamente a Lula.
“Vale ressaltar que o Safra já repassava valores em espécie para Lula e Palocci, que faziam as retiradas no referido banco já no final do governo Lula, como ‘agradecimento’ por favores anteriores ao Casino.
“A atuação pessoal de Palocci explica-se, pois, nem Safra e nem Lula se sentiriam à vontade de entregar/receber dinheiro em ‘cash’ por intermédio de operadores.”
Portanto, o operador era o próprio Palocci. O que chama atenção é que isso servia para o atacado e para o varejo:
“Assim é que, por volta de cinco vezes, Antonio Palocci esteve no Banco Safra para retirar dinheiro em espécie para repassar pessoalmente a Lula, montantes variáveis entre R$ 20 e R$ 100 mil reais, conforme era demandado por Lula.
“O colaborador [Palocci] se recorda que, em uma das oportunidades, José (sic) Safra entregou o dinheiro dentro de uma caixa de lenços hermés, a qual tem guardada até hoje.
“A maioria das entregas para Lula aconteceu no próprio Instituto Lula, mas duas entregas foram peculiares e em locais distintos do Instituto.
“Na primeira destas oportunidades, Antonio Palocci repassou o dinheiro para Lula na sala presidencial dentro do terminal da Aeronáutica do Aeroporto de Brasília, em uma caixa de celular, valor que era de R$ 50 mil reais.
“Esta entrega aconteceu no final de 2010, provavelmente no mês de outubro.
“Na segunda oportunidade, Palocci entregou dinheiro no interior do avião presidencial no Aeroporto em Congonhas, sendo que o dinheiro se encontrava dentro de uma caixa de uísque, ao que se recorda R$ 50 mil reais, também no ano de 2010, provavelmente em novembro/dezembro de 2010.
“As demais entregas pessoais (Palocci/Lula) foram realizadas no Instituto Lula.
“Em todas as oportunidades, foram feitas inúmeras ligações para Lula, a fim de combinar horários e locais.
“Nas ligações, Lula sempre utilizava o celular de um ‘ajudante de ordem’, sobretudo Moraes.
“Registro importante é que os deslocamentos de Palocci sempre foram realizados por seus motoristas, tanto em São Paulo/SP, quanto em Brasília, pois Palocci não dirigia, sendo que tais motoristas podem corroborar certos detalhes destes deslocamentos até o Safra, aos aeroportos e ao Instituto Lula.
“Estes motoristas testemunharam os diversos encontros de Palocci.”
Há mais, sobre a relação com o Safra, mas, por enquanto, ficamos por aqui.
C.L.
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