Um deputado bolsonarista algo bisonho (se é que existem os de outro tipo) reclamou da pouca repercussão do depoimento de Antonio Palocci, cujos anexos (de 1 a 39) foram divulgados.
Pelo que se pode deduzir, ele acha que a mídia está protegendo Lula e o PT.
Convenhamos que, disso, o PT e Lula são inocentes. O problema do depoimento de Palocci – que é também a sua diferença em relação aos depoimentos de outros – é que, nele, aparece o setor financeiro e multinacionais como jorro de corrupção. Não apenas as empreiteiras, candidatas a monopólios, mas os que já são monopólios financeiros – ainda que algo marginais, dentro dos cartéis de que participam.
O deputado bolsonarista, portanto, não precisa ficar intrigado com o silêncio de seus colegas de bancada – aliás, imensamente maior que o da imprensa, que, com efeito, divulgou o depoimento e seus anexos.
Já mencionamos, na matéria anterior desta série – sobre as relações com Joseph Safra e seu banco – o conflito entre o grupo francês Casino, da área de supermercados, e o então controlador do grupo Pão de Açúcar (GPA), Abílio Diniz (v. HP 09/10/2019, As confissões de Palocci (1): o caso Safra).
No anexo 05 dos depoimentos de Antonio Palocci, há uma descrição da sua própria intervenção – e a de Lula – nesse conflito (para a nossa cobertura na época em que ele aconteceu, v. HP, 08/07/2011, Sem acordo e sem recursos do BNDES, controle de 65% do Pão de Açúcar pelos franceses não prospera).
Quase não precisamos, aqui, fazer comentários, como verá o leitor.
A sinopse é a seguinte:
“Abílio Diniz entrou em ‘disputa’ com a empresa francesa Casino. Tanto Abílio, quanto [o grupo] Casino, buscaram todo tipo de ingerência perante o governo para fazer prevalecer as respectivas posições. Casino aproximou-se de Lula, por intermédio de [Joseph] Safra, prometendo a vultosa quantia de 30 milhões de euros para o ex-presidente. Abílio Diniz, por sua vez, aproximou-se de Palocci, buscando que este o “apadrinhasse” na situação. Abílio Diniz repassou posteriormente a Palocci a quantia ilícita de R$ 2,096 milhões de reais, tendo sido o pagamento operacionalizado através da Projeto [a empresa de consultoria de Palocci]. A empresa que efetuou a contratação com a Projeto foi a PAIC Participações [a holding da família Diniz].”
ANEXO 05
Transcrevemos, abaixo, a íntegra do quinto anexo do depoimento de Palocci, intitulado “Casino X Abílio Diniz e os 30 milhões de euros para o PT e Lula”. Os itálicos estão no original – e são reproduções de palavras usadas pelo próprio Palocci em seu depoimento. Os negritos indicam palavras que, no original, estão em maiúsculas – o que poderia tornar a leitura desagradável. Daí, a nossa opção de substituir as maiúsculas por negritos. As explicações entre colchetes são, todas, nossas.
Comecemos, então:
“Em 2005, Abílio Diniz realizou um negócio de ‘salvamento’ do Grupo Pão de Açúcar [GPA] com a empresa francesa Casino, a qual fez um aporte substancial no Pão de Açúcar, ficando, por meio do acordo assinado, com o direito de assumir o controle acionário do GPA alguns anos depois, o que significaria a entrega do Pão de Açúcar para o grupo francês.
“Tal negociação acabou por envolver uma ampla atuação de favorecimentos políticos nos anos de 2011 e 2012.
“Palocci favoreceu Abílio Diniz.
“Lula e Dilma favoreceram o Grupo Casino.”
Os entretítulos abaixo, também pertencem ao original.
1 – Abílio e a aproximação do Governo:
“Em 2010, o Pão de Açúcar fez um negócio de compra das Casas Bahia, sendo que, a partir daí, Abílio Diniz se aproximou ainda mais de Antonio Palocci e de Márcio Thomaz Bastos.
“Abílio Diniz tinha uma relação muito próxima com o governo e este ‘movimento’ já representava uma preparação para tentar ‘derrubar’ a entrada do grupo Casino no território nacional.
“O Casino tinha a opção para exercer a compra do Pão de Açúcar com vencimento no ano de 2012.
“Assim é que, no ano de 2011, Abílio Diniz põe em prática um plano para tentar evitar que o GPA (Grupo Pão de Açúcar) fosse retirado do seu controle, o que envolveria movimentos tanto empresariais, quanto governamentais.
“Concomitantemente, Antonio Palocci convida Abílio e outros três empresários para compor um Conselho de Gestão junto à Presidência da República, cujos integrantes eram chamados de ‘ministros sem pasta’.
“Desse conselho participavam: Abílio Diniz, Jorge Gerdau, Antonio Maciel [executivo-chefe, sucessivamente, da Ford, da Suzano e da Caoa], Antonio Palocci e Dilma Rousseff.
“Na sequência, é realizado um almoço entre Abílio, Dilma e Palocci, conforme agenda formal da Presidência, oportunidade em que Abílio narra que tinha um negócio que, segundo ele, seria ‘fantástico’, mas que precisaria da ajuda do Planalto com o tema.
“No encontro, Abílio não especificou exatamente o que tinha em mente, mas disse que logo traria a questão para conhecimento do Planalto.”
2 – A estratégia da fusão com o Carrefour:
“Posteriormente, [Palocci] ficou sabendo da estratégia de Abílio.
“A grande jogada de Abílio era realizar uma fusão do GPA com o Carrefour, o que diluiria a entrada do Casino, quando do exercício da opção de compra, de forma a inviabilizar que o Casino assumisse o controle acionário.
“Ocorre que, a fim de efetivar a fusão com o Carrefour, Abílio precisaria da liberação de empréstimo do BNDES, o que ele deixou previamente ajustado com o Banco.
“Contudo, quando Abílio anuncia a compra do Carrefour, a imprensa reage fortemente, dizendo se tratar de um ‘golpe’, repercussão que de imediato deixa Abílio preocupado.
“Pércio de Souza [dono da Estáter, financeira especializada em “fusões e aquisições”] era quem estava organizando a operação para Abílio e, no dia em que a situação veio à tona na imprensa, Pércio vai à casa do colaborador [Palocci] e diz que dará quanto o colaborador quiser para atuar em duas frentes: a primeira, para que o governo defendesse publicamente a operação; e, a segunda, para garantir o empréstimo perante o BNDES, operação sem a qual o negócio não teria como se realizar.
“Antonio Palocci diz que está ‘fechado’ com Abílio, mas diz que será difícil, mencionando que talvez fosse necessário ir a Lula, para que ele resolvesse a situação junto à Dilma.
“No dia seguinte – ou dois dias depois – Palocci vai buscar Abílio no escritório dele e vão juntos ao Instituto Lula.
“Na reunião, Abílio ‘apela’ muito, fazendo referência às ‘ajudas’ prestadas no passado, não conseguindo esconder certa fragilidade diante da situação.
“Lula fica de falar com Dilma e com Luciano Coutinho [então presidente do BNDES] sobre o assunto, embora não dê garantias a Abílio.”
3 – Movimento oposto do Casino:
“Paralelamente, sabedores de que [Palocci] está ‘ao lado’ de Abílio Diniz na questão, Clara Ant [assessora de Lula] e Paulo Okamoto [presidente do Instituto Lula] ligam para Palocci para avisar que José Dirceu está ligando todos os dias no Instituto Lula para tentar marcar uma reunião entre Lula e Jean-Charles Naouri, presidente do Casino.
“Clara fala para Palocci ir conversar com Lula, pois tinha algo ‘muito grande’ acontecendo, relacionado ao assunto.
“Atendendo ao conselho de Clara, Palocci vai falar com Lula e este menciona que o Casino estava querendo dar 30 milhões de euros para que eles ajudassem a ‘melar’ a operação de Abílio com o Carrefour.
“A verdade é que o Casino começou a fazer um movimento pesado para vencer a disputa com Abílio, passando a atuar em várias frentes, inclusive perante o colaborador [Palocci].
“Neste contexto, Marcelo Trindade, que era um dos representantes do Casino, liga para o colaborador [Palocci] dizendo que queria lhe indicar um grande cliente.
“Simultaneamente, Henrique, genro de Edson Godoi, da AMIL, vem ao colaborador e diz que quer fazer um ‘novo contrato’ com Palocci a fim de que ele atue em favor dos interesses de Jean-Charles.
“O colaborador diz que tem um problema ético, pois é amigo e trabalha para Abílio, mas, a fim de ‘tranquilizar’ o interlocutor, Palocci diz que vai se afastar do caso, ‘tirando o pé’ da situação.
“As ‘procuras’ não cessam e Marcelo Trindade visita Antonio Palocci, dizendo que quer passar contratos com grandes ganhos financeiros para o mesmo.
“Ao final do encontro, Trindade pergunta se Palocci estaria participando do negócio do Pão de Açúcar.
“Palocci responde que era amigo de Abílio, mas que estaria distante do assunto.
“Marcelo se mostra, então, preocupado e curioso em saber os próximos passos de Abílio, mas Palocci desconversa e não dá continuidade ao assunto.”
4 – O acordo entre Lula e Jean-Charles:
“Em determinado momento, Abílio procura o colaborador [Palocci] e diz que está sendo traído, pois Lula teria jantado com Jean-Charles e com Joseph Safra na casa deste último.
“Estariam no jantar Lula, Safra, Clara Ant e Jean-Charles. Clara estava presente, pois foi ela quem viabilizou o encontro.
“O colaborador fala, então, para Abílio ir com calma, pois Lula não tinha por que apoiar o Casino.
“Contudo, no mesmo dia, Lula chama o colaborador [Palocci] no Instituto Lula e conta os detalhes do jantar, pedindo que [Palocci] passasse a controlar Abílio, salientando que a conversa com Jean-Charles tinha sido muito boa.
“Nas palavras de Lula: ‘O cara confirmou os trinta milhões de euros, pô, você tem que me ajudar’.
“De acordo com Lula, Joseph Safra daria todo o apoio para operacionalizar as questões financeiras. Lula atuaria junto a Dilma e Coutinho para barrar o empréstimo e qualquer apoio governamental, e a tarefa de Palocci seria a de segurar Abílio, pois este estava movendo mundos e fundos para obter a satisfação dos seus interesses na operação.
“Lula fez a parte dele, fazendo com que o BNDES não liberasse o empréstimo pré-aprovado e inviabilizando qualquer apoio governamental ao GPA.
“Já no jantar Lula ‘vendeu’ para Jean-Charles que a situação estaria resolvida e que ele poderia retornar tranquilo para a França, pois, do outro lado, representando Abílio, estava Antonio Palocci, pessoa sobre a qual ele, Lula, tinha plena ascendência.
“O colaborador [Palocci] sabe que o empréstimo do BNDES deveria ter sido realizado, mas apenas não foi em razão da interferência de Lula.”
5 – Repasses das vantagens indevidas:
“Conforme mencionado, o Banco Safra ficou incumbido de intermediar os repasses das vantagens indevidas, de forma diluída e diversificada, pois o montante era muito expressivo. Assim é que, após estar tudo resolvido:
- Lula pede um almoço com Joseph Safra, no qual Fernando Haddad vai junto para ser apresentado como candidato às eleições municipais de São Paulo/SP. No dia seguinte, Lula pede para Palocci voltar a falar com Joseph Safra e já levantar valores financeiros para Haddad, sendo que Joseph Safra repassa R$ 2 milhões para a campanha eleitoral de Haddad para a Prefeitura de São Paulo de 2012.
- Na eleição presidencial de 2014, Safra efetua a doação de R$ 10 milhões de reais.
- O Safra faz repasses para o Instituto Lula, tanto de forma extraoficial, quanto de forma oficial, sendo que Palocci fez retiradas frequentes de valores em espécie junto ao Banco Safra.
“Foi Antonio Palocci quem foi no Safra para organizar vários dos repasses. Joseph Safra, inclusive, convidou Palocci para que fosse Conselheiro do seu banco na Suíça, provavelmente por estar lá alocada boa parte do dinheiro do Casino.
“Palocci entendeu que o convite poderia ser uma forma de que Lula ficasse bem informado sobre o dinheiro alocado no banco, por meio de Palocci.
“[Palocci] perguntou se seria necessário.
“Safra disse que poderia ficar a critério de Palocci.
“Por outro lado, Abílio Diniz recompensa Antonio Palocci pela atuação, ainda que não tenha dado certo, por todo o esforço em indicá-lo para o Conselho da Presidência, bem como pelas tentativas frustradas em seu favor, através do pagamento de R$ 2 milhões de reais, efetuado pela empresa PAIC Participações [a holding da família de Diniz] junto à sua consultoria.”
JULGAMENTO
Como dissemos no artigo anterior desta série, até agora os relatos de Palocci coincidem com os fatos – e essa é a sua força.
Além disso, a única observação que poderia ser acrescentada, após o que foi transcrito acima, é que Antonio Palocci jamais demonstrou, na vida, algum talento para a literatura de ficção, muito menos para detalhes ou minúcias.
Pelo contrário, independente do que possa se pensar – ou sentir – sobre ele, é consenso que não se trata de alguém como grande e criativa imaginação.
Basta ver as formas de ganhar dinheiro que escolheu, para comprová-lo.
Deixamos, então, o julgamento sobre a veracidade do relato de Palocci aos nossos leitores.
C.L.
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