“Basta analisar a evolução da capacidade instalada brasileira para perceber que a pujança do capital privado no setor elétrico foi decepcionante”, afirma o especialista Roberto Pereira D’Araújo, diretor do Ilumina (Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Energético) no artigo que reproduzimos a seguir. Segundo ele, “de 1973 até 1990, período estatal, em média, acrescentamos 2400 MW a cada ano, um déficit anual de 100 MW (4%). Mas, de 1991 até 2001 o aumento anual foi de 1930 MW. Portanto, um déficit de 570 MW/ano (23%)!”
As contas oclusas do setor elétrico
ROBERTO PEREIRO D’ARAÚJO (*)
Exaltando o fim da bandeira da escassez, é hora de refletir profundamente sobre números do setor elétrico. A tarifa é hoje uma das mais caras do planeta em relação à renda média. Um pouco de curiosidade revela misteriosos valores.
Começando pelas nossas tomadas, o Brasil fez uma mudança exigindo um padrão inédito. Adotamos conectores embutidos e até um terceiro pino para aterramento, o “pino nada”, pois a maioria dos consumidores não tem a fiação para essa função. Bolaram um padrão para 20 e 10 Amperes ao invés de apenas um. Ora, a transmissão da corrente depende da área de contato dos pinos. O de 10 A tem 4 mm de diâmetro, mas o de 20 A não tem 8 mm, mas 4,8, apenas 20% a mais. Evidente que bastaria apenas um formato para atender à exigência de segurança. Mas, para a alegria dos fabricantes e irritação dos consumidores, os adaptadores deram um jeito.
A bandeira da escassez soa módica noticiada para cada 100 kWh. Quando se usa a unidade praticada no planeta, o MWh (1000 kWh), começam a surgir comparações bizarras. O que significa pagar R$ 142/MWh em relação a outros valores do setor? Os leilões A-3 e A-4 de 2021 mostram investidores assegurando vender energia eólica e solar por menos de R$ 130/MWh. Ou seja, a bandeira de escassez está pagando previamente valores da energia de novas usinas. Se isso não é um indício de que não está havendo investimento suficiente, estamos mal de entender sintomas.
A “escassez”, ecoa como uma tragédia e, geralmente, São Pedro leva a culpa, pois isentam-se todos os outros fatores que podem esvaziar reservatórios e fica mais fácil cobrar do consumidor. Mas essa escassez é inédita? Claro que não! Ela foi pior do que a do racionamento de 2001, mas no registro histórico de 91 anos das vazões, quando comparada ao “período crítico”, de 1949 a 1956, os anos 2014 – 2021 são apenas 0,4% mais secos. (Ver gráfico). Sequer há a desculpa de esquecer essa seca do século passado porque ela é parte essencial do modelo. Apesar de óbvio, tenho que repetir que reservatórios também se esvaziam se não há investimento adequado para a evolução do consumo.
O impercebido é que, assim como há o “azar” de não ter água para gerar, há também o inverso. De 2004 até 2012 as hidráulicas tiveram a “sorte” de gerar 270 GW médios acima de seus certificados de garantia física. Não é pouca energia! É análogo a 5 anos de consumo! Só que no exótico modelo brasileiro, a “sorte” não paga o “azar”. É como ganhar na megasena, mas o prêmio é tão irrisório que não consegue pagar as dívidas do “azar”. Pior! As usinas atingidas pela MP 579, que, apesar do garrote de preços, não conseguiu reduzir tarifas, passam o risco para o consumidor cativo. Mas, nos períodos de “sorte”, quem se aproveita é o mítico mercado livre que, hoje, representa cerca de 30% do consumo.
Essa é a parte mais complexa e alvo de críticas a quem tenta indicar que a “liberdade” desse mercado é peculiar. De 2003 até 2012 o PLD médio esteve abaixo de R$ 55/MWh. Como não há transparência e o PLD é a referência desse mercado, a pergunta que continua sem resposta é: Qual foi a contratação de expansão da oferta nesse período? Se não houve a expansão que justifique o crescimento desse mercado, como essa omissão afetou os outros consumidores?
Chegamos ao cerne da celeuma capital privado x capital público com a ajuda de outros cálculos oclusos. A evolução do consumo de energia elétrica no Brasil tem uma característica duradoura. O consumo cresce a cerca de 1550 MW médios a cada ano, o que exige por volta de novos 2500 MW por ano.
Basta analisar a evolução da capacidade instalada brasileira para perceber que a pujança do capital privado no setor elétrico foi decepcionante. De 1973 até 1990, período estatal, em média, acrescentamos 2400 MW a cada ano, um déficit anual de 100 MW (4%). Mas, de 1991 até 2001 o aumento anual foi de 1930 MW. Portanto, um déficit de 570 MW/ano (23%)!
Qual foi o anúncio mais fundamental dessa época? A privatização de todo o sistema da Eletrobras, que só resultou numa venda parcial por conta do racionamento de 2001. Sob um cenário de transferência de propriedade, o capital não investiu em novas usinas e nem a Eletrobras, pois seria privatizada. Examinando as nossas hidráulicas, constata-se que cerca de 16% delas foram adquiridas prontas pelo setor privado, 22% foram construídas em parceria com estatais e apenas 8 % das usinas é privada na origem! Parece que não aprendemos e vamos repetir a frustrante experiência!
A cara solução para essa decepção explica grande parte da nossa tarifa recorde: Usinas térmicas fósseis! De 1999 até 2007 essas térmicas saltaram de 8 GW para 18 GW. Depois do período de preços baixos no mercado livre, cresceram de 18 até 30 GW. Eólicas e solares, apesar de subsidiadas no mercado, ainda estão muito abaixo da potencialidade do nosso território.
Números oclusos são a base para a desinformação e, sem informação, não haverá saída para a nossa cara energia.
(*) Diretor do Instituto Ilumina roberto@ilumina.org.br
O texto foi reproduzido do site Ilumina e publicado originalmente no Valor Econômico