
CARLOS LOPES
As classes, frações e segmentos de classe, em nosso país, constituem a própria História do Brasil – o que não é uma novidade, teórica ou prática, considerando o mundo, isto é, a história dos outros países nos quais isso também é verdade.
Podemos dizer, como já se disse nesses outros países, que a nossa história é a história da luta de classes em nosso país.
É no confronto entre si, e nas alianças e nos compromissos que estabeleceram e estabelecem contra determinados inimigos para alcançar determinados objetivos, que essas classes se definiram e se definem – desde a descoberta do país, em 1500.
Então, o que existe de original, de específico, em nossa história, ou seja, o que existe de particular no desdobramento da luta de classes em nosso país?
As relações capitalistas no Brasil passaram a se generalizar na segunda metade do século XIX. O período corresponde à decadência do escravismo, assinalada dramaticamente pela crise bancária de 1866, conhecida como “Crise do Souto”, em razão do seu epicentro financeiro, a Casa Souto, banco do português Antônio José Alves Souto, aquinhoado por D. Pedro II com um daqueles títulos de fancaria em que o Império foi pródigo.
A Crise do Souto, que afetou profundamente o sistema bancário do país, foi, como observou Mauá, sobretudo uma crise da economia escravista.
Mas ela não varreu o escravismo, que permaneceu através da Guerra do Paraguai – e depois. Apesar da crise – e da guerra – a economia escravista seria suficientemente poderosa para sufocar outras iniciativas econômicas, como demonstra a falência do próprio Mauá, em 1875.
A sociedade brasileira se constituíra, a princípio, em sua fase colonial, através do que alguns historiadores chamaram “transplantação”. Em suma, somente os indígenas eram originários do nosso território. Os brancos vieram de fora e os negros foram caçados na África e trazidos para cá em navios negreiros.
Assim, a força de trabalho que construiu o país, tanto na cultura da cana – em virtude do monopólio do açúcar – quanto na mineração, quanto em outras atividades econômicas, foi principalmente escrava, negra e indígena.
No entanto, é necessário especificar que não teria sido possível a constituição de uma sociedade no Brasil colonial se os elementos formadores da nacionalidade não se miscigenassem. Daí, especialmente, a característica mestiça e colorida do povo brasileiro – ou seja, a característica mestiça e colorida, em geral, das próprias classes sociais brasileiras.
Nesse contexto, datam da primeira época da construção de nosso país os episódios – principalmente durante as invasões holandesas (1624-1654) – que ficaram conhecidos como “nativismo”. Trata-se do surgimento, ainda que embrionário, dos primeiros indícios do sentimento nacional. Não por acaso, a memória dessa época é a de uma união de brancos, negros e indígenas contra o invasor estrangeiro. Havia, portanto, um início, ainda que algo confuso, do instinto de classe, ainda que se misturassem, muitas vezes, no sentimento nativista, proprietários e não proprietários. Mas é verdade – e isso, aqui, é o mais importante – que o inimigo, o estrangeiro, era visto quase como outra classe.
Em especial a obra do poeta Gregório de Mattos (1636-1696), por sua linguagem, sua estética e sua temática, é muito esclarecedora desse aspecto – e, inclusive, sobre a diferenciação progressiva entre brasileiros e portugueses.
Entretanto, os acontecimentos após a expulsão dos holandeses, e a restauração do trono lusitano, até então – após o desaparecimento de D. Sebastião – ocupado pelos castelhanos (1580-1640), estabeleceram um terrível monopólio colonial sobre o Brasil.
Este monopólio da então metrópole entrou em crise a partir do século XVIII, pari passu com a revolução industrial na Inglaterra e outros países europeus.
Daí as revoltas brasileiras contra o domínio português: a de Filipe dos Santos (1720), a Inconfidência Mineira (1789), a Conjuração Baiana (1798), a Revolução Pernambucana (1817) – esta última já durante o período do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, decretado em 1815.
A transmigração da família real, durante as guerras napoleônicas, em 1808, realmente conferiu um perfil particular ao desenvolvimento histórico brasileiro.
Ela permitiu que a Independência do Brasil ocorresse sob o governo do próprio herdeiro lusitano.
Mas isso também desatou uma luta de classes que se ocultava como uma luta de nacionalidades: brasileiros contra portugueses, com pouca distinção dentro de cada um desses grupos.
Esta foi a origem da abdicação de D. Pedro I, com a revolta dos brasileiros contra os portugueses (que haviam, com a Constituição outorgada pelo imperador, português de origem, recebido cidadania autóctone).
A Regência, que se estendeu de 1831 a 1840, foi um período de luta de classes intensa, com revoltas em várias partes do país.
Mas a Maioridade (1840), que consolidou a Independência, significou também a hegemonia dos senhores de terras e de escravos. Daí, a monarquia que foi mantida – contra o quase republicanismo do período regencial – exatamente como instrumento político dos senhores de terras e de escravos.
O que significou a manutenção do latifúndio agrícola e do escravismo.
O fim do tráfico negreiro, ilegal “para inglês ver” desde 1830, mas efetivamente proibido somente em 1850, tornou inviável a continuidade, por muito mais tempo, do escravismo – e a crise de 1866 foi disso uma demonstração cabal.
É neste momento, sobretudo após a Guerra do Paraguai, que irrompe a principal luta de classes da nossa história até então: o Abolicionismo e a luta pela derrubada da monarquia, isto é, pela República.
O Manifesto Republicano foi publicado em 1870, ano do término da Guerra do Paraguai – e a convenção republicana de Itu foi em 1873.
Enquanto isso, o abolicionismo tomava o país – inclusive ganhando adesões além dos republicanos, como foi o caso de monarquistas como Joaquim Nabuco e André Rebouças.
Mas é verdade que os republicanos, independente da posição oficial de seu partido, eram, quase todos, abolicionistas. Até Campos Sales se declarou abolicionista, segundo relato de Silva Jardim, bem antes de 1888.
O fato é que a decadência da monarquia e da escravidão se tornou patente a partir da década de 60 do século XIX – a tal ponto que, muito antes de 1888 e 1889, tanto o escravismo quanto o Império constituíam trambolhos visíveis e evidentes, a obstar o nosso desenvolvimento.
Notemos que, além dos senhores de terras e escravos, e dos escravos, havia no país toda uma classe de industriais progressistas – em geral, abolicionistas – e uma classe média representada, sobretudo, pelos militares.
A derrubada da monarquia – um ano após a frente ampla abolicionista impor ao regime monárquico o fim da escravatura – foi resultado da aliança entre os setores industriais, os donos de terra já livres, na maior parte, da escravidão, e a classe média militar.
Os dois primeiros mandatos presidenciais – os de Deodoro, e, sobretudo, Floriano – sacudiram o país com a luta pela industrialização nacional.
Entretanto, os donos de terra – principalmente produtores de café, então a mercadoria mais importante do país – tomaram o poder com Prudente de Moraes e Campos Sales.
Apesar da República Velha ser um período convulso da História do Brasil, em especial pelas revoltas tenentistas, foi somente em 1930 que o país levantou-se para implementar um Projeto Nacional de Desenvolvimento.
Nesse ínterim, a classe operária brasileira, através de greves, manifestações sindicais, e, principalmente, com a fundação, em 1922, do Partido Comunista do Brasil, adquiria maturidade inédita em nossa história – e isso seria um componente decisivo nas décadas seguintes.
Ao mesmo tempo, as revoltas tenentistas são a maior prova de que os ideais da classe média que fundou a República – aquilo que se chamou, na sua época, “florianismo”, em especial a industrialização – permaneciam vivos, ainda que, por pouco, quase lançados no submundo da política e da sociedade.
Em 1930, com apoio da classe operária, esses setores estabeleceram uma aliança com os dissidentes da oligarquia e com a burguesia industrial.
Assim, caiu a República Velha, isto é, o regime ditatorial da oligarquia cafeeira.
A melhor síntese do que ocorreu, assim como a relação do presente com o nosso passado, foi escrita, em 2001, por Haroldo Lima:
“A Nação brasileira forjou-se em período relativamente recente, na luta contra a dominação colonial portuguesa. Seus ideais de autonomia e liberdade firmaram-se em três movimentos marcantes de nossa história: a independência nacional, a Abolição da Escravatura e a Proclamação da República. Anseios nacionais e democráticos, até radicalizados, estiveram presentes em todos esses movimentos, mas não predominaram. Em decorrência disso, a subordinação do país aos interesses externos nunca deixou de existir, mudou de formas, não de essência.
“Foi a Revolução de 1930, a despeito de limitações e de posições antidemocráticas que assumiu, que lançou as bases de um Projeto Nacional no Brasil.
“No período de 1930 a 1954, marcado pela figura do presidente Vargas, implantaram-se os primeiros órgãos e empresas de um Estado nacional brasileiro, o Conselho Nacional do Petróleo (CNP), em 1938; o Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica, em 1939; a Companhia Siderúrgica Nacional, em 1940; a Companhia Vale do Rio Doce, em 1942; a Companhia Nacional de Álcalis, em 1943; a Fábrica Nacional de Motores, em 1943; a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, em 1945; o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, em 1952; a Petrobrás, em 1953; a Eletrobrás, em 1954.
“A formação da inteligência brasileira também deu seus primeiros significativos passos nesse período com a criação, com muito atraso, das duas universidades basilares de nossa história: a Universidade de São Paulo, em 1934, e a Universidade do Distrito Federal, em 1935, no Rio de Janeiro. Fundam-se ainda, aí, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a CAPES, o Conselho Nacional de Pesquisas, o CNPq, o Centro Técnico da Aeronáutica, CTA, tudo em 1947, e o Instituto Tecnológico da Aeronáutica, o ITA, em 1950.
“Foi com base nesse lastro orgânico, econômico e educacional que se pôs em prática no país uma política de substituição de importações, com o que se iniciou o longo período em que o desenvolvimento brasileiro foi dos maiores do mundo” (Haroldo Lima, Informe especial sobre a desnacionalização, 10º Congresso do PCdoB, 2001, pp. 151-152).
Esse longo período de desenvolvimento do Brasil seria baseado na aliança entre os trabalhadores, o empresariado nacional e o Estado Nacional – contra, fundamentalmente, o capital financeiro imperialista.
Não é necessário, diante disso, explicar o vendaval que varreu o país – e que levou o presidente Getúlio à morte – até 1954. O próprio conteúdo da política econômica, e da aliança de classes que a sustentou, é capaz de explicá-lo.
Os anos seguintes seriam o da reversão dessa política, de desmonte dessa aliança, e da instalação do capital estrangeiro, principalmente através da indústria automobilística (mas não somente), como o principal setor da economia do país.
No governo Juscelino, os traços gerais daquilo que, na época da ditadura, chamou-se “modelo brasileiro” ou “milagre brasileiro”, já foram estabelecidos.
Mas é evidente que esses “traços gerais” estavam em contradição com o próprio país, isto é, com o seu povo, com a Nação, com o seu desenvolvimento, portanto, com a democracia. Daí, a renúncia de Jânio, as atribulações do período Jango, e, finalmente, o golpe de 1964 com a consequente ditadura, durante 21 anos.
A tentativa inicial da ditadura foi exterminar a aliança nacional-desenvolvimentista (isto é, entre os trabalhadores, o empresariado nacional e o Estado nacional). O problema é que isso resultou em uma catástrofe: o espaço ocupado pelas empresas nacionais, que foram falidas pela política do governo, não foi ocupado pelas multinacionais, ao mesmo tempo que o mercado interno era achatado pelo arrocho salarial sobre os trabalhadores.
Assim, a partir do governo Médici/Delfim Netto, estabeleceu-se uma outra aliança de classes: aquela entre o capital estrangeiro, o capital nacional e o Estado – que não podemos mais chamar de “nacional” – contra a classe operária brasileira e os demais trabalhadores.
A classe operária, portanto, foi excluída da aliança, pois o objetivo da ditadura – e dessa aliança – foi (e ainda é) o aumento da exploração sobre os trabalhadores. O arrocho salarial foi – e ainda é – a sua marca distintiva.
A melhor demonstração disso é que foram as greves de 1978-1980 que detonaram o fim da ditadura. O próprio movimento das “Diretas Já” não teria sido possível sem a eclosão anterior das greves operárias. Aliás, até hoje, ao longo de inúmeras vicissitudes, temos na Presidência da República um representante daquele movimento de insubmissão diante da ditadura.
Mas o modelo econômico da ditadura – com sua espúria base de classes – não foi destruído com a derrubada do regime. Por um breve momento, durante a Constituinte, que elaborou a Constituição de 1988, quase conseguimos voltar aos trilhos do nacional-desenvolvimentismo. Infelizmente, o modelo da ditadura foi restaurado, após os acontecimentos que convulsionaram a União Soviética e o Leste Europeu.
Foi em cima, ainda, do modelo econômico implantado pela ditadura – arrocho salarial, concentração de renda, favorecimento ao capital estrangeiro, prioridade ao mercado externo – que o neoliberalismo se implantou, sobretudo a partir do governo Collor, mas já desde a gestão Maílson da Nóbrega no Ministério da Fazenda, no governo Sarney, e, depois, no governo Fernando Henrique.
Resta dizer, sobre esse modelo, prevalecente, para nossa infelicidade, até hoje, que a burguesia nacional – a burguesia industrial brasileira – perdeu significação, relativamente à época do nacional-desenvolvimentismo.
Quanto aos trabalhadores, a precarização do trabalho (trabalho por aplicativos, “uberização”, etc.) atingiu ainda mais os salários, as condições de vida e trabalho.
Forçosamente, temos de apontar que a ofensiva contra a organização sindical dos trabalhadores (a chamada “reforma trabalhista”) e contra as aposentadorias (a chamada “reforma da Previdência”), tornou ainda mais precária a situação da classe operária.
Quanto à burguesia, sua fração rentista, parasitária, adquiriu um peso extraordinário, às custas do dinheiro público – isto é, dos colossais juros da dívida pública. Trata-se de um segmento com ramificação direta com os monopólios financeiros do exterior, que, essencialmente, não produz, apenas suga o trabalho do povo, como os vampiros da lenda sugavam o sangue das pessoas normais. Também ao modo do conde Drácula, são mortos-vivos que têm de estrangular o Estado, o Tesouro e o povo, mas apenas para manter sua opulenta condição de mortos-vivos.
O que não quer dizer que o setor produtivo da burguesia – estamos nos referindo à burguesia nacional – tenha deixado de existir. Várias manifestações, nos últimos tempos, principalmente dentro de entidades empresariais, têm demonstrado que esse setor continua vivo e atuante.
Este último setor é aquele com que a classe operária tem condições de aliar-se em um Projeto Nacional de Desenvolvimento – o que significa, embora em novas bases técnicas, voltar aos trilhos do nacional-desenvolvimentismo.
o Brasil precisa reescrever sua história sob a ótica dos Povos originarios, os nativos, os Brasileiros ,de fato!!! Portugal não descobriu o Brasil, e sim saqueou, usurpou, matou ,aprisionou , escravizou e se utilizou de mão de obra escrava para levar embora as riquezas do País. vamos “desromantizar” e desmascarar essa grande farsa do tal “descobrimento”, que não passou de uma invasão, colonização, saque e massacre.