A economista Monica De Bolle, membro sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins, em artigo, afirma que os “títulos públicos são tratados como dívida pública, embora não o sejam no estrito senso de suas funções. Estão dadas as bases para o patrimonialismo tupiniquim: inflamos o estoque de dívida, base de remuneração dos credores; ao mesmo tempo, trabalhamos com juros nas alturas, garantindo seus rendimentos”.
De acordo com a economista, “o Brasil não tinha aquecimento de demanda para justificar o aumento de 2,75% para 13,75% da Selic. Sobretudo em se tratando as causas da inflação de desdobramentos no além-mar”. “O que fez, portanto, esse aumento dos juros? Como já abordado, ele gerou um ganho de R$ 737 bilhões entre março de 2021 e junho de 2022 para os detentores de títulos públicos”.
“No Brasil é prática ocultar as despesas financeiras e seus desdobramentos patrimonialistas enfatizando sempre o resultado primário do governo. As despesas financeiras, só para lembrar, são aquelas com os pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. Quem se beneficia desses pagamentos? Os detentores de títulos. E quem são os detentores de títulos? Bem, não são os mais pobres“.
“Ao remunerarmos os detentores de títulos dessa maneira completamente distorcida sem separar com propriedade a política monetária da política fiscal, perpetuamos a situação recorrente de nunca termos o suficiente para atender à população mais vulnerável do País. É possível resolver esse problema? É.“, afirma Monica De Bolle, ex-diretora do Instituto de Estudos de Política Econômica (IEPE/Casa das Garças), no artigo que reproduzimos a seguir.
As Medidas Econômicas de Haddad e o Patrimonialismo
O patrimonialismo é ocultado pelas “análises”
MONICA DE BOLLE
Ainda no calor dos atentados de 8/1, o Ministro da Fazenda anunciou um rol de medidas para reduzir o déficit nominal em 2022. Já começou bem ao jogar o enfoque da discussão sobre o déficit nominal. No Brasil é prática ocultar as despesas financeiras e seus desdobramentos patrimonialistas enfatizando sempre o resultado primário do governo. As despesas financeiras, só para lembrar, são aquelas com os pagamentos de juros e amortizações da dívida pública. Quem se beneficia desses pagamentos? Os detentores de títulos. E quem são os detentores de títulos? Bem, não são os mais pobres.
Nesse artigo abordei a relação íntima entre a política fiscal e a política monetária que está no cerne do patrimonialismo à brasileira. Ao discorrer sobre as causas da inflação que levaram o Banco Central (BACEN) a, mais uma vez, escrever a carta em que explica porque não cumpriu a meta, afirmei que a alta de preços no Brasil proveio mais de causas externas do que de fatores internos. O próprio BACEN parece reconhecer tal fato em sua última missiva. Ora, se a inflação proveio do exterior — das políticas de combate à pandemia da China, da elevação dos preços do petróleo — é de se questionar porque elevamos tanto os juros domésticos já que esse instrumento não tem qualquer alcance fora das fronteiras de nosso país. Deixando de lado o combate aos efeitos de segunda ordem oriundos das pressões inflacionárias que tanto gostam os economistas de enfatizar para a confusão geral daqueles que não sabem do que se trata, não é difícil enxergar que o Brasil não tinha aquecimento de demanda para justificar o aumento de 2,75% para 13,75% da Selic. Sobretudo em se tratando as causas da inflação de desdobramentos no além-mar.
O que fez, portanto, esse aumento dos juros? Como já abordado, ele gerou um ganho de R$ 737 bilhões entre março de 2021 e junho de 2022 para os detentores de títulos públicos. O que torna esse ganho tão brutal? O cálculo do montante da dívida pública. No Brasil, calculamos o estoque de dívida pelo volume de títulos públicos emitidos. Até aí, nenhuma falácia visível. O problema é que temos um enrosco adicional entre a política fiscal e a monetária provocado pelo uso desenfreado de operações compromissadas. Operações compromissadas são utilizadas pelo BACEN para regular a quantidade de moeda nos mercados — a “liquidez” — e elas se valem dos títulos públicos que a autarquia tem em carteira. É costume no Brasil ver compromissadas no valor de trilhões diariamente durante certos períodos. Volumes dessa natureza são uma idiossincrasia brasileira que obrigam o BACEN a reter um imenso estoque de títulos públicos. Esses títulos públicos são tratados como dívida pública, embora não o sejam no estrito senso de suas funções. Estão dadas as bases para o patrimonialismo tupiniquim: inflamos o estoque de dívida, base de remuneração dos credores; ao mesmo tempo, trabalhamos com juros nas alturas, garantindo seus rendimentos.
Quem são os detentores da dívida pública? Como já disse, não são os mais pobres. Institui-se, portanto, o nosso conflito distributivo, pois os recursos públicos são limitados. Ao remunerarmos os detentores de títulos dessa maneira completamente distorcida sem separar com propriedade a política monetária da política fiscal, perpetuamos a situação recorrente de nunca termos o suficiente para atender à população mais vulnerável do País. É possível resolver esse problema? É. Como? Começa pelo reconhecimento do que é, de fato, dívida. Se excluíssemos as compromissadas, diminuiríamos o estoque da dívida em uns 15%, grosso modo. Com base de remuneração menor, reduziríamos os ganhos dos detentores. Na verdade, o que deveríamos fazer é seguir aquilo que outros países já fizeram para se livrar desse enrosco entre política fiscal e política monetária: substituir as compromissadas pela remuneração de depósitos bancários no BACEN como instrumento de regulação de liquidez. Está aí uma forma de modernizarmos nosso sistema, simultaneamente tornando as políticas macroeconômicas menos patrimonialistas.
Outra forma de tratar corretamente a dívida pública é utilizar o conceito de dívida líquida, isto é, aquilo que de fato reflete o passivo do governo. O Brasil tem cerca de US$ 300 bilhões em reservas internacionais — esse é um ativo. A dívida líquida é o resultado da diferença entre o passivo bruto e o ativo. Em reais, usando uma cotação conservadora para a taxa de câmbio de R$ 5, US$ 300 bilhões são R$ 1,5 trilhões. Esse montante equivale a mais de 20% da dívida. Logo, ao trabalharmos com o conceito de dívida líquida, mais uma vez reduzimos a base de remuneração dos detentores de títulos, diminuindo seus ganhos se o cálculo fosse feito com estoques corrigidos.
Façamos a conta aqui, para ilustração. O estoque da dívida, hoje, é de mais ou menos R$ 6,7 trilhões. Ao excluírmos as compromissadas, o reduziríamos para uns R$ 5,7 trilhões. Depois, ao deduzirmos as reservas, chegaríamos a R$ 4,2 trilhões. Os R$ 4,2 trilhões equivalem a 47% do PIB, bem menos do que os cerca de 75% alardeados pelos alarmistas de sempre.
O que tudo isso quer dizer? Primeiramente que a discussão sobre despesas primárias, foco dos agentes de mercado e analistas corriqueiros da economia, oculta questões fundamentais sobre o estoque e a remuneração da dívida pública. Por que são ocultadas essas questões? Ora, porque elas embasam o patrimonialismo enraizado e escondem o que está errado no argumento “não é hora de aumentar as despesas com programas sociais”, ou “despesas com programas sociais vão aumentar a inflação”, ou “o plano de Haddad é ruim porque não tratou das despesas”, ou “a dívida de 75% do PIB não permite mais despesas — o país vai quebrar”. O país vai quebrar?
Calculado corretamente o estoque da dívida, excluindo compromissadas e reservas internacionais, é fácil ver que não há pressa alguma em reduzir despesas, sobretudo as despesas com programas sociais que estão constituídas como direito fundamental na Constituição. Não digo que as despesas em geral não devam ser avaliadas, eliminadas se ineficazes forem, e que é de extrema importância o exercício frequente e formalmente estabelecido da revisão de gastos públicos, algo que não fazemos no Brasil. O que argumento é que o discurso econômico convencional muito esconde e pouco revela acerca dos problemas reais da economia brasileira. O principal deles é o patrimonialismo arraigado que dita e elabora as políticas macroeconômicas do País.
Por todas essas razões, é correto o enfoque de Haddad no déficit nominal, ainda que as medidas para a receita tenham deixado a desejar. Dentre elas, a única que é realmente sólida trata da reversão das desonerações de BolsoGuedes, que podem gerar uns R$ 100 bilhões para os cofres públicos. Mas, como um primeiro anúncio apontando direções, Haddad fez o que tinha de fazer.
O que tinha Haddad de fazer? Anunciar o fim do patrimonialismo à brasileira. Não foi à toa que muitos torceram o nariz. O importante agora é garantir que o desvio de septo seja permanente.
Reproduzido do Monica’s Newsletter