Escolhido paraninfo de uma turma de Medicina em Paris, o velho Georges Clemenceau – que se formara médico, mas fora, sucessivamente, deputado, editor do L’Aurore, líder da campanha em defesa do capitão Alfred Dreyfus, senador, ministro e primeiro-ministro da França durante a I Guerra Mundial – começou seu discurso com a frase: “Médico, eu nunca o fui…”.
Realmente, não há outra profissão de onde tenham surgido os mais variados – e tantos – artistas, escritores, políticos, jornalistas, e sei lá mais o quê…
Poderia ser uma afirmação em causa própria – pois o autor destas linhas acaba de completar 40 anos de sua formatura em medicina – mas é apenas um fato objetivo e histórico, que nada tem a ver com qualquer vaidade dos seguidores de Hipócrates, frente às demais carreiras. Naturalmente, Che Guevara era médico. Mas Antonio Carlos Magalhães também era – e pediatra…
No entanto, existem aqueles que honram sua profissão na própria profissão – em suma, são médicos notáveis e pensadores notáveis, que não se ativeram à medicina, ou não se sentiram limitados por ela, apesar de permanecerem médicos. Há muito, Rodolfo Mondolfo chamou a atenção para o Corpus Hippocraticum, não como uma coleção de tratados sobre a arte médica, mas como uma obra de importância filosófica geral (v. o livro de Mondolfo, “La Comprensione del Soggetto Umano nella Cultura Antica”, de 1955).
Todo esse nariz de cera é para falar do primeiro volume das memórias de Eduardo Costa, “50 Anos Desta Noite: memórias de um estudante de medicina em tempos de luta pela legalidade democrática” (Nitpress, Niterói, 2011).
Eduardo Costa – aliás, Eduardo de Azeredo Costa – foi secretário da Saúde do primeiro governo Brizola, no Rio de Janeiro, e secretário da Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia no segundo governo Brizola. Foi, também, diretor do Instituto de Tecnologia em Fármacos (Farmanguinhos), da Fiocruz, e presidente da Fundação Nacional de Segurança e Medicina no Trabalho (Fundacentro), do Ministério do Trabalho.
É, portanto, um profissional dos mais conhecidos.
No entanto, um homem é muito mais que a coleção de cargos que ocupou – ou, mesmo, que a sua própria profissão.
As memórias de Eduardo – que é gaúcho – começam em um dos mais dramáticos momentos da vida nacional: a tentativa de golpe, após a renúncia de Jânio Quadros, e a resistência do governador Brizola, do general Machado Lopes e do povo do Rio Grande do Sul.
Hoje há quem gaste a palavra “golpe” para esconder seus próprios malfeitos, que levaram a um divórcio tão grande com a Nação, que até alguns vagabundos – instalados no Congresso e no governo por esses citados malfeitos – conseguiram apeá-los do poder.
Esse pessoal (os que têm alguma boa fé, ainda que beirando a estupidez) não sabe o que é um golpe.
Mas alguns até sabem. Apenas, ao contrário dos primeiros, usam a palavra com má-fé – a mesma, aliás, que os levou ao mais escandaloso estelionato eleitoral da história do país.
Os homens e mulheres da geração de Eduardo, entretanto, aprenderam pelo sofrimento e pela luta o que significa um verdadeiro golpe ou uma verdadeira tentativa de golpe.
As memórias de Eduardo Costa são sobre isso.
No entanto, aqui, escolhemos para publicar o último capítulo deste – que adjetivo usar? Soberbo? Magnífico? Esplêndido? O leitor, claro, é livre para escolher – primeiro volume das memórias de Eduardo Costa.
O motivo é a abordagem das raízes gaúchas, não apenas da sua trajetória, mas as raízes gaúchas – sem detrimento de outras raízes, que vão do Amazonas ao Prata (ou do Oiapoque ao Chuí, que Deus proteja os nossos rios) – da história nacional, ou seja, da história do Brasil enquanto Nação.
Vamos ao texto de Eduardo, pois já falamos muito.
C.L.
EDUARDO COSTA
Ao considerar terminado este livro, algumas questões se colocaram. Assim como o discurso de formatura mostra o que eu estava levando para a viagem de jovem médico, me perguntei se havia alguma coisa mais que eu devesse explicitar que estivesse na minha bagagem política e que soasse conclusiva sobre aquele período.
Concluí que o que eu levava era mesmo aquela história de vivência e participação alinhada ao pensamento comunista e sentimentos que certamente afloraram sem ser necessário declará-los. E claro, as leituras, as amizades.
Lembrei-me, no entanto, de uma pergunta que o meu colega José do Vale endereçou a mim e ao Fadul, depois de nos acompanhar nas conversas-entrevistas que relatei na introdução. Ele, ainda que morando há muito tempo no Rio, é cearense e muito ligado à sua terra natal. Queria entender o que gerava o comportamento político gaúcho da época, tanto quanto ele percebia, tão diferenciado do resto do país. Foi fácil arrolar meia dúzia de fatores, dos quais saliento as missões, em particular a formação de um estado teocrático, as guerras de fronteira, a questão do federalismo, a economia subsidiária voltada para o mercado interno, a república e o positivismo. E ainda, a proximidade da cultura espanhola – afinal, único estado na época com fronteiras vivas com seus vizinhos; e por fim, a imigração europeia do século XIX. Uma boa salada de frutas, entremeada da cultura luso-escravocrata, com resultado surpreendente.
Enfim, isso tudo estava na origem do que vivemos, isto é, do ambiente político do qual participei. Mas, de fato, não conheço a história do Rio Grande do Sul, de maneira sistemática, ou aprofundada.
Todavia, tenho a clara percepção do que moldou, para além dos livros, aquilo que a gente aprende sem perceber, a visão política que carrego como fundamental – traços, crenças, um certo idealismo positivista – que se reafirma depois do débâcle do socialismo de estado soviético. E, mais importante, me alinhou a Brizola.
Esse mesmo Brizola que permitiu em 1979, em Lisboa, que entendêssemos a importância de pensar um socialismo democrático, o que, até ali, considerávamos redundante e até retrógrado. E logo, com esse entendimento, reafirmar que o nacionalismo, no nosso caso, é decorrente da própria história colonial que se prolonga com novas metrópoles. Pouco a ver com os países europeus, cujo socialismo democrático se colocava sobre economias pujantes enriquecidas pelo próprio domínio colonial que exerceram. Não é um nacionalismo “fascistóide” de supremacia étnica ou nacional sobre outros, como, de novo, a direita sempre quis rotular o trabalhismo, o associando a Getúlio. Ao contrário é um nacionalismo libertário de defesa de quem quer nos dominar. Que entende que o idealismo metafísico é a globalização financeira na ausência de regulação soberana de fluxos no mundo da rapina.
Em Londres, na casa de minha cunhada e concunhado, Susan e John Barlow (um “GP”- médico de família), fui surpreendido por um telefonema de Leonel Brizola fazendo o convite para o Encontro de Lisboa. Minha mãe, que também iria, passara o número.
Encontrar Francisco Julião ao lado de Brizola na sede do Partido Socialista português, ver quem estávamos juntando naquele momento, saber que Carlos Araújo, que não pudera ir por não lhe concederem passaporte, também aderia, me deu ainda mais certeza do caminho a seguir.
Uma proposta, enfim, baseada na nossa história real e particular de lutas. Livre da camisa de força das ideias construídas em outras realidades, que eram usadas para enquadrar o processo social brasileiro e para estigmatizar nossos caminhos políticos mais próximos e óbvios.
O Trabalhismo seria o caminho brasileiro para o Socialismo.
Não teria graça, nem profundidade, se eu tentasse descrever aqui todas as certezas reafirmadas e o fato de que não deixei de continuar a entender que o materialismo dialético é o melhor instrumento de análise da realidade. Que, também, não abria mão de propugnar por uma revolução social, mas que sabia que o caminho a trilhar agora passava ainda pela conquista da democracia burguesa dependente. Pensava: – Na hora certa, hoje imprecisa, sei de que lado vou estar; sempre.
Entre as leituras que fiz no passado, e agora redescobertas, creio que existe uma, de um verdadeiro “livreto” – pré-ensaio, como o autor, o amigo já falecido Miguel Bodea o classifica – que conta tudo sobre a construção do trabalhismo gaúcho, segundo ele, que se estrutura no Castilhismo, se define no Borgismo e que, a partir da guerra, Getúlio dá o formato de um partido nacional.
Nosso trabalhismo foi construído com o nascimento da república, cujas raízes estão na luta pela independência de Portugal: um país dos brasileiros. Nosso trabalhismo traz na sua origem, no seu ideário sempre renovado, a libertação nacional do jugo estrangeiro. Defende o estado laico com um idealismo filosófico cortante: a negação da metafísica como instrumento do convencimento, substituída pelo conhecimento objetivo. Define uma prática de poder com a qual pretende construir uma sociedade para todos. Não quer excluir ninguém, mas quer promover a justiça social. Um movimento que foi capaz de estabelecer o diálogo com as forças de oposição ferrenha, até com lutas armadas, para construir uma unidade política na salvaguarda de uma proposta de defesa da economia brasileira. Que rompeu com a economia agrário-exportadora para modernizar o país. Que deitou seu sangue para denunciar o “democratismo” autoritário burguês, que manipulava o país para permitir a exploração imperialista. Que teria como ferramenta um estado regulador no mundo capitalista, convencido que deve sempre proteger as grandes massas de trabalhadores e avançar dentro das conjunturas concretas.
E que mobilizou a população na defesa da legalidade democrática, fazendo desse espaço emergirem as propostas de reformas revolucionárias para o Brasil.
Pois bem, a pérola, desencavada por Bodea, é a documentação em torno da Greve Geral de 1917, no Rio Grande do Sul. Depois do pré-ensaio de 1978, ele volta com o Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul, editora da UFRGS, 1992. Leiam. Resumo, pois conta tudo.
A guerra de 1914 cria grande desequilíbrio econômico mundial. Em 1917, em particular, movimentos grevistas se espalham pelo mundo e já em fevereiro Kerenski assume o poder na Rússia.
No Brasil, a greve irromperia inicialmente em São Paulo, em julho. Além das péssimas condições salariais, havia a influência anarquista italiana – mais de 50% dos trabalhadores registrados eram estrangeiros. No Rio Grande do Sul eram quase 25%.
Os trabalhadores ferroviários traziam as notícias da greve paulista. E nos últimos dias do mês os comboios sairiam de Santa Maria para todos os pontos do estado com panfletos propagando a greve geral no estado. A concessionária das ferrovias era belga; e chama o Exército, que sufoca o movimento, assumindo o controle dos trens. Os trabalhadores sabotam, arrancam trilhos.
A greve irrompe forte em Porto Alegre. Antes houvera uma greve isolada de calceteiros. Na praça da Alfândega, autorizada e garantida pelo Governo de Borges, uma assembleia dos sindicalistas com considerável massa de trabalhadores deflagra a greve geral de Porto Alegre. O movimento se alastra rapidamente e os trabalhadores marcham pelas ruas da cidade em protesto por melhores salários e jornada de oito horas.
Vão ao Palácio do Governo, que os recebe e os apoia pela justeza da causa e dada a situação de miséria dos proletários. Decreta que todos os empregados do governo do estado terão seus salários majorados de acordo com as mesmas reivindicações, determinando também que todos, sem exceção, passem a ter jornadas de oito horas.