EDUARDO COSTA – (…) O nacionalismo – o patriotismo – inexistente na pauta positivista ou anarquista, ambas de origem europeia, passa a compor o ideário operário no Rio Grande do Sul
Espontaneamente os trabalhadores fazem manifestação de agradecimento ao governador e continuam sua greve, até que todos os patrões assumissem os mesmos compromissos. Uma Liga de Defesa Popular é constituída. Um verdadeiro poder popular paralelo é organizado: só circula nas ruas com mercadorias quem estiver autorizado pela Liga. Suprimento livre, só de asilos e hospitais. Em três dias praticamente todos os patrões fazem as concessões. O governo segue garantindo a livre manifestação, pedindo que tudo seja ordeiro. E os próprios trabalhadores se responsabilizam pela ordem.
Mas decidem não sair da greve. Afinal, tudo seria ilusório, se os seus aumentos salariais fossem usados para justificar aumento nos preços praticados. O governo edita então a mais fantástica das intervenções no mercado. Além de tabelar preços ao consumidor, proíbe as exportações dos bens essenciais, só autorizada para excedentes, depois de calculados o consumo justo e adequado per capita da população! A Liga de Defesa Popular controla.
Na concentração em que decidem terminar a greve geral, depois dos pronunciamentos de seus líderes Derivi, Moll, Villar, Araújo – pelos seus nomes se sabem as suas origens étnicas – todos sindicalistas que confluíram na Federação Operária do Rio Grande do Sul, a massa proletária, cantaria o Hino Anarquista, Filhos do Povo:
Filho do Povo,
Te oprimem correntes E essa injustiça não pode seguir,
Se a tua existência é um mundo de penas
Antes que escravo preferes morrer.
Esses burgueses, assaz egoístas,
Que assim depreciam a humanidade,
Serão varridos pelos anarquistas
Ao forte grito de Liberdade.
Vermelho Pendão,
Não mais sofrer,
A exploração há de sucumbir.
Levanta-te, povo leal,
Ao grito de Revolução social.
Direitos não há que pedir;
Só a união os poderá exigir.
Nosso caminho não romperás.
Torpe burguês.
Atrás! Atrás!
A vitória é exaltada e, pela comparação com a situação de São Paulo e do Rio, o governo gaúcho ganha prestígio nacional – afinal naqueles estados o movimento foi derrotado. No dia 5 de agosto saíram da greve, com grande passeata colocando primeiro os serviços essenciais a funcionar e depois as demais atividades.
Mas as coisas não terminariam por aí. Os ferroviários, com o exemplo, voltam à greve, datada de 17 de outubro – e, em escaramuças com o Exército, vários trabalhadores morrem. Fazem chocar trens, cortam linhas de transmissão. E começa uma luta política dos trabalhadores contra a empresa estrangeira! O Governo Borges, a pedido dos grevistas, entra na mediação com o Exército e com a empresa. O inspetor geral da Compagnie Auxiliaire – Mr. Cartwright, é demitido em 31 de outubro. As reivindicações são atendidas, mas a recomposição salarial não chega aos níveis solicitados. O Governo passa a regular o transporte ferroviário.
Durante esses episódios de outubro – lembro que são anteriores à vitória dos bolcheviques, formalmente a 25 de outubro, mas pelo calendário ocidental era novembro – é criado o Comitê Patriótico, para fazer frente comum com os grevistas da Viação Férrea do Rio Grande do Sul, contra o “vergalhão estrangeiro”. O nacionalismo – o patriotismo – inexistente na pauta positivista ou anarquista, ambas de origem europeia, passa a compor o ideário operário no Rio Grande do Sul.
Em novembro de 1917, enquanto os trabalhadores ferroviários de Santa Maria se congratulavam com o governo Borges, os estudantes, filhos dos fazendeiros, faziam manifestação na frente do Palácio contra o governo, como, com destaque, registraria o Correio do Povo de 31 de outubro.
Três anos depois o Governo Borges encampa a companhia, na mensagem à Assembleia Legislativa, efetivando uma tese castilhista da necessidade da estatização dos serviços de utilidade pública.
Não muito depois, ainda no rastro dessa greve, assisistas e borgistas, maragatos e chimangos, a Aliança Libertadora e o Partido Republicano do Rio Grande do Sul, depois de novas lutas em 23, e trégua até 27, pactuam a formação da Aliança Liberal. O pai de Brizola é assassinado em 23 quando voltava para casa, com o armistício. Brizola tinha pouco mais de um ano.
Obtida a unidade política no Rio Grande, a revolução de 30, com Getúlio no comando, é um passeio até o Rio de Janeiro. O Rio o recebe de braços abertos, ele que fora deputado federal, ministro da Fazenda do Brasil e Presidente da Província do Rio Grande do Sul pelas mãos de Borges. Apesar do ódio mortal das classes dirigentes paulistas ao “populismo” que vinha do sul, os trabalhadores de lá sempre apoiariam Getúlio. Além de o elegerem Senador em 46, lhe deram 25% de sua votação, garantindo a vitória para Presidente em 50.
O “Getulismo” assegura, como o “Borgismo”, que os trabalhadores possam se organizar, colocando agora o Exército a protegê-los, ao invés de jogá-lo para desbaratar greves.
Na redemocratização de 45, ao se afastar do poder ditatorial, percebe que devia deixar o legado de um partido para o desenvolvimento equilibrado brasileiro: o PTB. Procuraria juntar a burguesia progressista nacional com os trabalhadores.
A história recente do trabalhismo, pós-redemocratização de 45 e de 79/88, com a anistia e nova Constituição Federal, é cheia de tropeços. Contra esse trabalhismo, seu ideário e seu crescimento em todo o país se insurgiram as forças mais conservadoras. Em particular as que se organizaram para depor presidentes constitucionalmente eleitos: Getúlio em 54 e Jango em 64.
Foi necessário que Jango morresse no exílio para que a anistia fosse aprovada. Se Jango voltasse, seria, sem nenhuma dúvida, Presidente mais uma vez.
Para Brizola, o sobrevivente, seria mais difícil, senão impossível. Contra ele, o poder invisível usaria a mídia, o aliciamento e a fraude para afastá-lo dessa possibilidade, após a redemocratização.
Enquanto Jango, no exílio articulara politicamente com presidentes de países latino-americanos, como Perón, da Argentina, e Carlos Perez, da Venezuela, Brizola dera o passo revolucionário de aproximação do trabalhismo com Cuba de Fidel Castro. Brizola no Brasil e Che Guevara na Bolívia eram parte do mesmo projeto de libertação latino-americano. Ambos fracassaram militarmente, mas seus sonhos sobrevivem.
O resto, as lições dos 47 anos que nos separam de 64, precisa também ser revisitado. Objeto de reflexão a ser feita ao longo dos próximos livros, mas que aqui deve começar a ser lembrada pelas primeiras elaborações de Brizola ao ser candidato em 1982, pelo PDT, ao Governo do Estado do Rio de Janeiro.
Brizola não se sentia constrangido, como pretendiam que ficasse, em dividir o espaço eleitoral com o PMDB. O que o incomodava era ver Lysâneas Maciel, que estivera em Lisboa, candidato pelo PT, partido que tentara trazer para uma composição nacional e regional.
Naquelas eleições os seus cuidados eram grandes: não queria ser acusado de precipitar um novo retrocesso político. Preservar a democracia político-eleitoral era sua maior preocupação. Por isso elege a educação de base como sua meta principal: ninguém podia ser contra e era um imperativo nacional proclamado por José Bonifácio em 1823, mas fora de pauta durante os governos imperiais e na República Velha, e repautado por Getúlio Vargas em 1930.
E de quem receberia a adesão, entre outros? Do maior líder comunista da história do Brasil: Luiz Carlos Prestes – o cavaleiro da esperança. Prestes morreu Presidente de Honra do PDT do Rio de Janeiro. Incorporou ele ao PDT de Brizola uma manifestação silenciosa, mas lúcida, que ao contrário dos que “modernizavam” o comunismo daqui com a estratégia europeia, os aproximando dos discursos social-democratas, no Brasil o ajustamento seria a aliança com o trabalhismo. Muitos de seus companheiros o acompanharam.
Brizola se tornou Governador do Estado do Rio de Janeiro e o primeiro vice-presidente latino-americano da Internacional Socialista. Ninguém exigiria qualquer posicionamento dele diferente daquele que manifestava no Brasil. Ele era a prova da vitalidade de uma proposta soberana, socialista e democrática em países do terceiro mundo.
Além do maquiavelismo consentido do feiticeiro do golpe de 64, auxiliado pela máquina imperial da mídia, da consolidação da ditadura fez parte o oportunismo na redemocratização. E o combate sem tréguas a Brizola, inclusive por setores da esquerda brasileira. A qualquer brasileiro é dado o direito a aspirar à presidência da república. Mas, no caso de Brizola, era uma ideia fixa. A mais elementar e óbvia manifestação de que o Brasil vivia sendo sangrado economicamente, amenizado pela expressão de “perdas internacionais”, era motivo de deboche. Uma escola pública de tempo integral era demagogia!
A plataforma de Jango e a luta do trabalhismo de Brizola no Governo do Estado do Rio de Janeiro deixaram para novas gerações a clareza de que, enquanto nos submetermos ao poder monopolizado da mídia, não haverá projeto nacional. Enquanto não houver uma reforma política na qual o poder econômico não seja decisivo, não haverá um país justo e soberano.
Precisamos continuar, ou devemos aderir às análises acadêmicas de outras matrizes políticas? Não cremos ser necessário ir além desse quadro de pinceladas largas. A alternativa hoje é a pulverização nas lutas pelas causas dos interesses difusos das pessoas ou dos coletivos removidos de sua determinação econômico-social. Nada contra, mas…
No Brasil de hoje louvamos o assistencialismo para amenizar os efeitos da desagregação econômica e social desse modelo de desenvolvimento dependente. Nossos avanços econômicos e sociais saem do destravamento doentio do crédito – uma das receitas de recessão impostas pelos sociais democratas neoliberais //modernizadores,/. E de uma retomada dos investimentos do estado em infra-estrutura condenada pelos mesmos.
Seria muito pouco se não desfrutássemos de um espaço de liberdades democráticas capaz de nos oferecer o ambiente para participar e nos organizar, para debater e nos manifestar, ainda que aturdidos pelo poder mistificador da mídia.
Há muitas causas urgentes a nos comover e motivar, como a da educação e da saúde: continuamos com um dos piores indicadores de saúde e educação da América Latina! E as vias não são as tortuosas que estão sendo percorridas.
Não podemos, enfim, deixar que o novo desenvolvimentismo se dê à custa do sacrifício e de condições de trabalho precárias e até indecentes para os trabalhadores.
Por isso tudo o trabalhismo de Jango e Brizola continua a desafiar as esquerdas brasileiras até hoje.
Às outras correntes da esquerda, o desafio é que ofereçam um caminho político melhor, que não engane os trabalhadores, que não os dispersem tentando impositivamente resolver questões da superestrutura ideológica ou cultural, enquanto aprofundam nossa dependência, com fantasias geopolíticas. Nem se transformem num gueto político-ideológico. Que vença a melhor para um Brasil dos brasileiros.
A nós, trabalhistas de hoje, cabe a tarefa de construir um partido melhor, capaz de voltar a ser a referência política dos trabalhadores e de todos quantos lutem por justiça social. Capaz de estabelecer alianças com lealdade, mas sem subordinação, agregando nossas causas, sem abandonar nossa tradição de luta e de defesa das instituições democráticas em seu sentido substancial, que permitam construir, “ombro a ombro com nosso povo”, como diria Brizola, uma nação justa e soberana.
E se não conseguirmos isso logo?
O líder do PDT dizia que o trabalhismo, como movimento político nacional, era como pau-de-fogo, a chama que fica acesa quando se vai dormir no campo e que, pela manhã, parece morta, coberta de cinzas. Mas, com alguns gravetos e um ventinho ou abanada, reacende o fogo da história da luta pela libertação dos trabalhadores brasileiros.