MARCUS VINICIUS DE ANDRADE (*)
A tragédia cultural brasileira se desenrola infinitamente e, ao que tudo indica, parece que ainda está longe de ter fim. A todo momento, o Brasil renova e agrava sua miserabilidade, tendo de conviver com perdas culturais de toda ordem, muitas delas irrecuperáveis, com isso resignando-se a ser aquela “Pátria minha, tão pobrinha…”, de que falou um dia o poeta Vinícius de Moraes. No último mês, o país perdeu intelectuais como Roberto Romano, José Arthur Gianotti, Francisco Weffort e José Ramos Tinhorão, que, cada um à sua maneira, decerto farão muita falta à nossa vida cultural, em crescente processo de desertificação.
Mas além das inexoráveis perdas de vidas humanas determinadas pelo destino e que doravante só nos cumpre chorar e reverenciar, a cultura do Brasil há muito vem sendo ameaçada e diminuída por perdas e prejuízos materiais de alta monta, o que certamente põe em xeque o que poderemos ser quando crescer, no campo da arte e do pensamento. Nesse aspecto, o mais recente golpe que sofremos foi o incêndio ocorrido no arquivo da Cinemateca Brasileira (Vila Leopoldina), em São Paulo, no último dia 29 de julho. Ainda que fosse uma tragédia anunciada (visto o risco de fogo ter sido advertido às autoridades poucos dias antes do sinistro), o incêndio na Cinemateca indignou e comoveu a comunidade cultural e a opinião pública do país, não só pelos prejuízos financeiros que causou, mas principalmente por ter destruído parte significativa do mais importante arquivo cinematográfico do país. Ao longo dos tempos considerado um elemento purificador, o fogo mais uma vez irrompeu na história brasileira como um agente destruidor da cultura, como se saído das brigadas anti-intelectuais do romance Fahrenheit 451 (Ray Bradbury) em apropriado conluio com o espírito dos tempos bolsonaristas, quando ignorância e mediocridade são abertamente glorificadas.
Infelizmente, há muito o fogo conspira contra a Memória Cultural Nacional. Para a própria Cinemateca Brasileira o fogo não é nenhuma novidade, visto que ela sofreu incêndios nos anos de 1957 (quando ainda funcionava na Rua Sete de Abril e era dirigida pelo grande Paulo Emílio Salles Gomes), 1969, 1982 e 2016, já no atual endereço. Tamanha regularidade de labaredas teria uma explicação: como diria Nelson Rodrigues, até as pedras da rua sabem que os acervos fotográficos e cinematográficos concentram materiais altamente inflamáveis (como o nitrato de celulose), alguns sujeitos à autocombustão, inclusive. Quando, há anos, dirigi a Divisão de Pesquisas do Centro Cultural São Paulo, lembro-me da permanente preocupação que tínhamos para que os documentos depositados no Arquivo Multimeios (principalmente as importantes fotos de Fredi Kleeman, o profissional que melhor documentou o teatro paulistano dos anos 1950-60) não se consumissem dessa forma. Perdíamos o sono com isso, mas graças ao zelo dos nossos profissionais jamais tivemos qualquer problema e o arquivo continua integralmente preservado até hoje. Claro, nossos profissionais sabiam o que todos devem saber sobre acervos de fotos e filmes.
Todos, não. Pelo que vemos, muitas autoridades públicas ainda acham que tais acervos são meros depósitos e tratam documentos culturais sem as especificações e cautelas exigidas. Isso explicaria por que, só de alguns anos a esta parte, sofremos perdas altamente significativas em nosso patrimônio cultural, bastando para tanto lembrar o Museu da Língua Portuguesa de São Paulo e o Museu Nacional do Rio de Janeiro, ambos varridos pelas chamas em 2015 e 2018, respectivamente. E cabe ressaltar que não se tratava de dois aparelhos culturais quaisquer, mas sim de organismos da mais alta excelência: o primeiro, a par de sua especificidade temática, incorporava o plurimidiatismo e as mais avançadas concepções da pós-modernidade cultural; já o segundo, voltado para a História Natural e a Antropologia, constituía-se simplesmente no mais antigo e reverenciado museu do país, fundado por D. João VI em junho de 1818, havia mais de dois séculos, portanto. Tanta excelência e tanto potencial de atratividade não impediram que tais museus escapassem às malvadezas do fogo. Nem ao descuido dos homens.
Certamente em razão de incúria administrativa, manutenção precária, falta de equipamentos e brigadas de prevenção e até mesmo por inexistência de políticas quanto ao uso de espaços culturais públicos, muitas outras instituições brasileiras foram também dominadas pelo poder destruidor do fogo em tempos mais recentes, a saber: o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1978 e 1982; o Museu da Imagem e do Som, também do Rio, em 1981; o Centro Cultural São Paulo, em 2007; o Teatro de Cultura Artística, em São Paulo, 2008; o Laboratório de répteis do Instituto Butantã, em São Paulo, 2010; o Teatro Villa Lobos, no Rio de Janeiro, 2011; o Museu de Ciências Naturais da PUC-Minas, em Belo Horizonte, 2013; o Auditório Simón Bolívar do Memorial da América Latina, em São Paulo, 2013; o Liceu de Artes e Ofícios, em São Paulo, 2014 (que funcionava sem alvará havia 20 anos).
Com exceção de eventuais incêndios acidentais (como o do Centro Cultural São Paulo em 2007, devido à queda de um balão em seu telhado), a grande maioria dos sinistros havidos em espaços culturais tem origem em panes em instalações elétricas e sistemas de refrigeração, o que decerto implica em responsabilidade humana, em maior ou menor grau. Mas não há como esquecer os incêndios sabidamente criminosos, como o ocorrido no Rio de Janeiro na noite de 31 de março de 1964, no Teatro da UNE, que seria inaugurado dali a poucos dias, com a estreia da peça Os Azeredo Mais os Benevides, de Oduvaldo Viana Filho (Vianinha), com música de Edu Lobo. Tratava-se de um fogo assumidamente direitista e reacionário, ateado por provocadores e simpatizantes da quartelada que já havia descido as montanhas de Minas em direção ao Rio para ‘proclamar a escravidão’, como diria o genial samba do Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta).
Pois bem: a peça não estreou, os artistas foram presos ou tiveram de fugir, o teatro e a UNE foram devidamente carbonizados e fez-se escuro no país. A partir de então, a burritzia casca-grossa passou a agir espontaneamente e por conta própria, não mais necessitando de incêndios e catástrofes outras para perseguir a cultura, as artes, os artistas, os intelectuais, a universidade, a imprensa e o povo em geral, como então se falava. Naqueles novos tempos de então, a gorilada tornou-se o próprio fogo destruidor, tomando a forma de milícias que invadiam teatros para espancar rodas-vivas de atores; que conspurcavam o sonho de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, ao arrombar as portas da Universidade de Brasília para ameaçar professores, banir o cientista Roberto Salmerón e eliminar o líder estudantil Honestino Guimarães, tal como narrado em Barra 68, o excelente longa-metragem de Vladimir Carvalho; que encarceravam e exilavam compositores, escritores e pensadores; que aposentavam compulsoriamente professores da USP, cujos nomes logo figurariam num Livro Negro de triste memória; e que continuariam cometendo truculências diversas contra o saber e o talento do Brasil ao longo dos 21 anos seguintes. Quem podia (ou ainda pode) fazer tudo isso para reprimir a cultura, precisaria do velho fogo pra quê?
Para poder continuar destruindo a cultura do país, o fogo, matreiro e ardiloso, assumiu novas feições, disfarçando-se até de água só para engabelar a bugrada: a mesma Cinemateca Brasileira há pouco incendiada, ainda no passado ano de 2020 sofreu forte inundação que, embora pouco divulgada, impôs à São Paulo prejuízos culturais e materiais bastante expressivos. Com isso, a água-fogo fez estrago similar ao produzido em 1972 no Instituto Villa-Lobos do Rio de Janeiro, quando inundou um pátio em que se amontoavam, como lixo, numerosas e valiosas partituras (incluindo autógrafos de Villa-Lobos, Camargo Guarnieri e outros compositores brasileiros e latino-americanos), ali descartadas por ordem do general-interventor que assumira a direção daquela escola superior de música e mandara “limpar” a sala de arquivo onde as obras antes estavam guardadas. Aliás, foi esse mesmo general que, fazendo as vezes de fogo, sumariamente expulsou, do Instituto Villa-Lobos, grande parte do seu corpo de professores (dentre eles, o locutor que vos fala), todos afastados sem qualquer formalidade ou reparação, episódio que ainda está para ser devidamente registrado nos anais da violência contra a universidade no Brasil.
O insidioso fogo anticultural também eventualmente assume as feições dos ‘zelosos’ burocratas que, no bojo das instituições culturais do país, insistem em atrelá-las à sedução midiática, a ponto de priorizarem o espaço dos museus, arquivos, acervos e centros de documentação para atividades de produção de eventos glamurosos e lucrativos, tais como exposições de terceiros, coquetéis, promoções comerciais e até festas privadas, achando que com isso estão dando bom “uso público” àqueles espaços, quando na realidade podem estar deteriorando-os ou sobrecarregando suas infraestruturas, para que um dia venha o fogo e complete a destruição. Talvez essa burocracia estatal seja a mesma que se omite quanto aos deveres legais do Estado para com a cultura do país, a mesma que engessa, retarda ou boicota os projetos oficiais de incentivo cultural à sociedade, a que permite que acervos e catálogos de obras brasileiras sejam absorvidos por grupos econômicos privados ou transferidos impunemente para instituições do Exterior, ou mesmo a que se mostra incapaz de formular alguma política pública minimamente consistente para a cultura da nação.
Mas não nos enganemos: o fogo que devasta cinematecas, museus, teatros, bibliotecas, auditórios, galerias e outros espaços culturais por esse Brasil afora é um verdadeiro flagelo, só que não é o pior. O mais perigoso fogo que ora nos ameaça é o fogo do descaso, do descrédito e da perseguição governamentais à própria cultura do país e ao seu povo.
Instaurado e nutrido pelo atual governo, esse fogo vergonhoso e maléfico nasce de um endereço certo: o terceiro andar do Palácio do Planalto.
Agosto de 2021
(*) maestro e compositor.