Enquanto os parlamentares do Movimento ao Socialismo, MAS, negociavam o projeto de convocatória rápida de novas eleições na Bolívia e os movimentos sociais debatiam com o governo golpista um acordo para que parasse a repressão, na tarde do sábado, 23, Martín Granovsky, do jornal argentino Página 12, entrevistou, por Skype, Evo Morales, que se encontra asilado no México. Publicamos a seguir os melhores trechos da reportagem
–Qual foi a causa deste golpe?
– É que não aceitavam nossa política econômica e nossos programas sociais. Não aceitavam que os indígenas e os movimentos sociais mudássemos a Bolívia como começamos a fazê-lo. Depois de nacionalizar as riquezas começamos com a industrialização. Um grande projeto nosso era industrializar o lítio. Então as transnacionais e alguns grupos do Chile não quiseram que continuássemos. Lamentavelmente, além disso, atuaram com violência. Pagavam 300 bolivianos [180 reais] por agredir, por cortar ruas. Continua me surpreendendo que os grupos que ostentam o poder econômico façam política dessa maneira. Mas não importa. Quero dizer através deste meio de comunicação tão conhecido em todo o mundo, em toda a América Latina, que pronto vamos voltar.
–Mencionou o lítio. Também o urânio da Bolívia é apetecível?
-Sobre tudo o lítio. E o zinco. Já estávamos terminando o ciclo industrial do ferro para acabar com a importação. O mesmo fizemos com os fertilizantes. Antes importávamos 100%. Agora exportamos 350 mil toneladas ao Brasil, ao Paraguai e a regiões vizinhas. Estamos terminando a usina de produção de carbonato de lítio. Produzimos já 400 toneladas. Os grupos opositores internos não entendem como o índio é capaz de industrializar a Bolívia.
-Você falou da pacificação.
-Vou fazer tudo o possível por pacificar a Bolívia. Renuncio à candidatura embora eu estivesse habilitado para me apresentar como candidato a presidente. Não estou fazendo uma reclamação. Digo que renuncio para que não haja mais mortos, nem mais agressões. Irmão jornalista, sabe porque renunciamos no domingo, 10, com o irmão García Linera? Por que pegaram meus irmãos dirigentes, militantes, governadores dos departamentos, prefeitos e lhes disseram que queimariam suas casas se eu não renunciava a meu cargo. Ao irmão do presidente da Câmara dos Deputados falaram: “Se teu irmão não renuncia, vamos te queimar na praça”. Incendiaram a casa da minha irmã em Oruro. Do racismo ao fascismo e do fascismo ao golpismo. Isso é o que aconteceu na Bolívia. Por esse motivo busco a unidade e a pacificação.
Assim eu disse a nossas bancadas. Anunciei-lhes que por esta vez renunciaríamos Álvaro e eu às candidaturas à presidência e à vice-presidência.
-O Senado já acordou um projeto de lei para um chamado rápido à eleições.
-Sim, houve uma reunião sob a garantia das Nações Unidas, a Igreja católica e a União Europeia. No dia seguinte à minha chegada ao México numa coletiva de imprensa pedi facilitadores internacionais e personalidades de todo o mundo para ajudar à pacificação da Bolívia. Por sorte, acaba de acontecer essa reunião, da qual participou o governo de fato de (Jeanine) Añez. O MAS representa dois terços dos senadores e dos deputados. Vamos fazer tudo o possível pela unidade. E pela pacificação renuncio a minha candidatura.
-Apesar do resultado das eleições de 20 de outubro, quando o MAS saiu em primeiro?
-Sim. E quero dizer que nos roubaram essa vitória. Meu grande delito é ser índio e sobretudo ter nacionalizado os recursos naturais, como os hidrocarbonetos. Lembro perfeitamente que o irmão Néstor Kirchner, quando os nacionalizei e as empresas me falaram que não investiriam mais, me ligou e me disse: “Se as transnacionais petroleiras não investem, a Argentina sim vai investir na Bolívia”. Tenho grandes lembranças da luta pela dignidade e a independência dos Estados, pela dignidade e a identidade de nossos povos.
-No dia domingo, 10 de novembro, o general Williams Kaliman, que depois renunciou e se instalou nos Estados Unidos, formulou publicamente a famosa “sugestão” de que você renunciasse. Foi uma surpresa?
-Em 7 de agosto, no aniversário das Forças Armadas, ele se declarou a favor do processo de mudanças e antiimperialista. Não sei se sua virada se deve ao dinheiro ou à luta de classes. Tarde ou cedo as mesmas Forças Armadas e o povo identificarão os inimigos da nossa querida Bolívia. Eu equipei as Forças Armadas. Quando cheguei à Presidência, em 2006, tinham um único helicóptero. Hoje têm 24. E alguns desses aparelhos, comprados com o dinheiro do povo, estão atirando e matando meus irmãos. Dói muito. Há gente que ainda não pode acreditar que o comandante da Polícia Nacional ou o comandante das Forças Armadas sejam parte de um golpe de Estado. Um golpe de Estado que já responde por 32 mortos em poucos dias. Mortos a bala! E também há cerca de 700 feridos a bala. Mais de mil detidos. Imagine quantos mortos, quantas viúvas, quantos viúvos, quantos órfãos. Crianças baleadas…
-Antes e depois do golpe acusaram seu governo de ter cometido fraude nas eleições de 20 de outubro.
-Quero que o mundo saiba que na madrugada de domingo 10 de novembro a OEA se somou ao golpe de Estado. O fez com um suposto informe preliminar, quando antes havia acordado com o nosso chanceler que apresentaria seu ditame final na quarta-feira, 13. Eu disponho de informes estrangeiros. Demonstram que não houve fraude. Um da Universidade de Michigan. Outro do Centro de Investigação Econômica e Política de Washington. Ontem tive uma longa reunião com o Centro Carter. Falei com irmãos muito chegados ao Papa Francisco e com funcionários das Nações Unidas e lhes pedi que fizessem uma Comissão da Verdade para realizar uma profunda investigação. Vamos demonstrar que não houve fraude.
-Você falou de racismo e fascismo. Aumentaram?
-Eu pensava que a opressão e a humilhação haviam terminado. A Bolívia tinha uma nova Constituição. Mas vejo com surpresa as expressões do pessoal de Luis Fernando Camacho em Santa Cruz. A Bíblia não pode ser usada para o ódio. Não são todos os habitantes de Santa Cruz, claro, os que chamaram a identificar inimigos e matá-los usando o sicariato. Mas sei que em reuniões deles, com 20 ou 30 mil pessoas, começam orando e ao final gritam: “Evo, canalha”. É racismo. Humilham o povo humilde. Às irmãs de pollera [saia indígena típica]. Chutam o povo pobre na rua e dizem “colla [povo indígena]”. Assim se chega ao fascismo. Identificam a casa de um deputado ou de um governador do MAS e a queimam. E a polícia não dá nenhuma segurança. O pretexto é que há cubanos. Mas os cubanos, de maneira gratuita e incondicional, ao contrário dos Estados Unidos que sempre condicionaram a assistência às políticas do Fundo Monetário Internacional, deram ajuda. Nós construímos hospitais e recebemos a colaboração de médicos cubanos. Lembro um diálogo entre Hugo Chávez e Fidel. Fidel dizia: “Hugo, vamos fazer um programa para operar gratuitamente 100 mil latino-americanos dos olhos”. Fidel parecia louco. Eram operações que podiam custar três mil ou quatro mil dólares. Mas na Bolívia os médicos chegaram e operaram. O Estado o fez grátis. Agora os grupos racistas não só buscaram o pretexto da presença cubana. Queimaram instituições educativas criadas com o dinheiro do povo. Como pode se entender isso? Como pode se entender que na zona do Trópico tenham perseguido deputadas e deputados? É uma ditadura. À nossa senadora Adriana Salvatierra rasgaram a roupa quando estava entrando à Assembleia. Uma jovem de 30 anos… A Praça Murillo cercada por tanques!
–Qual será a forma de reparar as agressões?
-Nunca temos sido revanchistas. Tupac Katari durante a luta pela independência dizia que os brancos das cidades também deviam organizar-se em ayllus, que eram a estrutura orgânica daqueles tempos como hoje seria o sindicato agrário. Todos juntos lutaram pela nossa Independência, por nossa vida em comunidade, em solidariedade. Harmonia entre os seres humanos e harmonia com a mãe terra. Já durante a República outro irmão indígena, Zárate Wilka, chamou a fazer uma aliança com os brancos das cidades para defender os direitos e os recursos naturais. O movimento indígena nunca foi racista, e menos fascista. Quando há pobreza todos nos juntamos e nos unimos. Temos sido muito tolerantes sempre. Eles não. Assim é a direita. Uma companheira me chamou e me contou que querem eliminar o programa de moradia para mães solteiras. Estou informado de que querem privatizar Boa, Boliviana de Aviação. Quando a estatizamos, o companheiro Kirchner me mandou técnicos da Argentina para ajudar-nos. Nem sabíamos como constituir uma empresa pública. Boa chegou a ter lucros e agora se lhes ocorreu privatizá-la. Não é só um confronto de caráter ideológico. É também programático: este não é um governo de transição, mas um governo de fato que sequer respeitou a sucessão constitucional.
–Qual será o eixo da campanha eleitoral do MAS?
-Revisará o passado, falará sobre o presente e projetará a esperança para futuras gerações. De meus quase 14 anos de governo, a Bolívia esteve seis anos no primeiro lugar em taxa de crescimento na América do Sul. Irmão jornalista, me doem duas coisas deste golpe de Estado. Doem-me os mortos e me dói como em curto tempo já começaram a destroçar a economia. Já me informaram que houve uma desvalorização. O dólar passou os sete bolivianos [4,3 reais]. Nós cuidamos bastante a economia graças aos técnicos e aos companheiros economistas. Profissionais e patriotas. Uma vez um organismo internacional ofereceu trabalho a Lucho Arce, o ministro da Economia. Iriam lhe pagar 18 mil dólares por mês. Como ministro ele ganhava um pouquinho mais de dois mil dólares. “Eu estou pela pátria, eu fico aqui”, disse. E ficou trabalhando. Temos chegado pela pátria e não pelo dinheiro. Muitos membros do gabinete poderiam estar no exterior ganhando muito. Estou seguro de que meus irmãos se organizarão. Há muita consciência política para enfrentar esta situação.
–Falou com familiares dos mortos?
-Conversei com alguns. Escutar chorar te faz chorar. Estou longe, mas tentei ajudar acudindo a amigas e amigos muito solidários. Alguns não tiveram dinheiro nem para pagar o caixão. Outros estão hospitalizados. Sempre ajudaremos o povo humilde.
–Esperam um compromisso de Añez de não ordenar outra vez a repressão?
-Esperamos que os mortos a bala gerem a consciência das autoridades do governo de fato. Que tantos detidos suavizem as consciências. Que não haja mais mortos nem feridos. Que os companheiros saiam, porque estão detidos por provas plantadas. Há um promotor que conheço. Tinha salário duplo, um do Ministério Público e outro da embaixada dos Estados Unidos. A embaixada lhe pagava mais dinheiro. A DEA [Órgão de combate às drogas dos EUA] tinha um advogado. Agora é vice-ministro de Defesa Social. Talvez seja uma mensagem e querem que volte a base militar dos Estados Unidos.