“Essencialmente, privatizações de funções públicas são uma maneira de transformar pagamentos de impostos em lucros para os interesses privados favorecidos. A alegação de que a privatização reduz o custo é falsa. Ao construir em camadas de lucros privados, a privatização eleva os custos”.
PAUL CRAIG ROBERTS*
A América é um país de escândalos. O mais recente é a utilização
do trabalho dos call centers prisionais pelo multimilionário judeu Mike
Bloomberg a fim de divulgar a propaganda da sua campanha presidencial. theintercept.com/2019/12/24/mike-bloomberg-2020-prison-labor/
Parece-me que o ataque de Bloomberg à
Constituição americana é que constitui o escândalo, não a sua utilização da
mão-de-obra prisional. Bloomberg quer revogar a Segunda Emenda e desarmar o povo americano exatamente no momento em que o país
está desmoronando espiritualmente, moralmente, economicamente e politicamente.
Num passado não distante, relatei a utilização generalizada do trabalho prisional pelas principais empresas americanas e pelo Departamento da Defesa. A Apple é uma dessas empresas, as botas e o vestuário para os militares são feitos pelo trabalho na prisão. Claramente, as autoridades legitimaram prisões privadas e contratam mão-de-obra barata nas prisões a entidades privadas com fins lucrativos.
A Bloomberg vale US$ 54 bilhões, segundo The Intercept, e a Apple vale muito mais, de acordo com o mercado de ações. Se a Apple pode usar o trabalho prisional, por que a Bloomberg não pode?
Os contratantes que alugam mão-de-obra na prisão à Bloomberg, à Apple, ao Departamento de Defesa são os que ganham o dinheiro. Eles recebem de acordo com o salário mínimo estadual pelo trabalho na prisão, e os prisioneiros recebem uns poucos dólares por mês.
Em tempos anteriores, e talvez ainda hoje, em alguns locais, prisioneiros trabalhavam nas vias públicas e não eram pagos. Assim, prossegue o argumento, não há nada de novo quanto à utilização de prisioneiros para o trabalho. Essa lógica ignora que anteriormente os prisioneiros trabalhavam para o público que pagava pelo seu encarceramento. Hoje eles trabalham para empresas privadas para obter lucros para empresas privadas.
O que estamos experimentando é o retorno do feudalismo. Eis como funciona o esquema da prisão privada: O estado captura pessoas e encarcera-as em prisões privadas. O estado utiliza o dinheiro dos contribuintes a fim de pagar empresas privadas para administrarem as prisões. A prisão privada aluga o trabalho dos prisioneiros a empresas privadas que depois vendem-no a corporações e entidades governamentais pelo salário mínimo.
Esta exploração absoluta do trabalho tem uma aparência legal. Mas não é diferente dos senhores feudais que sujeitam homens livres e se apropriam do seu trabalho. Cerca de 96% dos encarcerados não foram julgados. Eles foram forçados a se auto-incriminarem, concordando com uma “negociação” (“plea bargain”), a fim de evitar punições mais severas. Os 4% restantes, se obtiveram um julgamento este não foi justo porque um julgamento justo interfere com as taxas máximas de condenação e as carreiras da polícia, promotores e juízes têm prioridade sobre a justiça.
Hoje, uma sentença de prisão é melhor entendida como servidão (enserfment), uma servidão mais total do que na era feudal. No início do período feudal, havia alguma reciprocidade. Os homens livres que cultivavam o solo não tinham proteção contra incursões de pilhagem – vikings, sarracenos, magiares – e entraram ao serviço de um senhor que poderia dar-lhes a proteção de uma fortaleza e cavaleiros com armadura. A reciprocidade terminou com o fim dos ataques, deixando antigos homens livres escravizados e devendo um terço de seu trabalho ao senhor. Os servos de hoje devem todo o seu trabalho à prisão privada.
A privatização é o canto da sereia dos libertários do mercado livre. É preciso um olhar mais atento do que aquele dado pelos libertários, pois a maior parte dos casos de privatizações beneficiam interesses privados às custas dos contribuintes. No caso das prisões privatizadas, os contribuintes proporcionam lucros a empresas privadas para operarem as prisões. As empresas ganham dinheiro adicional ao alugar o trabalho dos prisioneiros. Grandes empresas beneficiam-se com o baixo custo da mão-de-obra. Talvez por essa razão os EUA tenham não só a mais alta percentagem da sua população nas prisões como também o mais alto número absoluto de prisioneiros. Os Estados Unidos têm mais pessoas nas prisões do que a China, um país cuja população é quatro vezes maior [1].
A privatização do setor público está bem encaminhada. Considere as forças armadas dos EUA. Muitas funções anteriormente desempenhadas pelos próprios militares agora são contratadas a empresas privadas. Cozinheiros do exército e KP acabaram. A função de abastecimento também é contratada. Tenho lido que mesmo guardas em bases militares são fornecidos por empresas privadas. Todos estes exemplos são do uso de dinheiro público para gerar lucros privados, terceirizando funções do governo. As privatizações de serviços militares são uma das razões pelas quais o custo das forças armadas dos EUA é tão elevado.
Na Flórida, cerca de três anos atrás, a Divisão de Veículos Motorizados (DMV) cessou de enviar as renovações das vinhetas de licença. Em vez disso, o governo do estado contratou uma empresa privada. Lembro-me bem, pois minha renovação ocorreu na sexta-feira e minha vinheta expirou na segunda-feira. Perguntei à DMV por que a renovação foi tão tardia. A resposta foi que os políticos haviam terceirizado as renovações para os seus grandes amigos doadores.
Também na Flórida, habitualmente se você tivesse uma multa de trânsito podia recorrer ao tribunal para contestá-la ou enviar um cheque. Hoje você ainda pode ir a um tribunal – ou a uma escola privada de trânsito – mas não pode enviar um cheque. É preciso obter um cheque visado de um banco ou uma ordem de pagamento. Para evitar tempo e problemas, você pode pagar com cartão de crédito, mas esse serviço foi privatizado e há uma taxa considerável pela comodidade de usar um cartão de crédito. Por outras palavras, os políticos criaram outra empresa privada, a qual canaliza fundos estatais que depois retornam são ao estado depois que a empresa privada arrecadar uma taxa pelo cartão de crédito.
As privatizações de empresas públicas, talvez estimuladas pelos encargos que a Sarbanes-Oxley impõe às empresas públicas, juntamente com as fusões, reduziram o número de empresas privadas em mais da metade entre 1997 e 2017. Ainda há bastante empresas para uma diversificada carteira de ações para a aposentadoria. No entanto, as escolhas estão a estreitar-se. Se este processo continuar, pessoas à procura de investimentos procurarão ações com razão preço/lucros ( P/E ratios ) mais altos para não terem uma carteira de ações vazia nas suas aposentadorias.
Essencialmente, privatizações de funções públicas são uma maneira de transformar pagamentos de impostos em lucros para os interesses privados favorecidos. A alegação de que a privatização reduz o custo é falsa. Ao construir em camadas de lucros privados, a privatização eleva os custos. Na maior parte dos casos, privatizações são meios de favorecer aqueles com acesso privilegiado.
As privatizações, além de criarem fluxos de rendimento para interesses privados, também criam riqueza privada pela transferência de ativos públicos para mãos privadas a preços substancialmente abaixo de seu valor. Este certamente foi o caso nas privatizações britânicas e francesas de empresas estatais assim como do serviço postal britânico. As privatizações impostas à Grécia pela União Europeia criaram riquezas para os europeus do norte às custas da população grega.
Numa palavra, privatizações são um método de pilhagem. À medida que as oportunidades para um lucro honesto declinam, os saqueios surgem por si próprios. Aguarde mais disto.
27/Dezembro/2019
[1]Atualização: Um leitor recorda que a população carcerária dos EUA é maior em 21.100 do que as populações prisionais somadas da China e da Índia, os dois países mais povoados do mundo cujo total das populações somadas é oito vezes maior que a dos EUA. (v. prisonstudies.org/…)
*Paul Craig Roberts é economista, escritor, ex-secretário-adjunto do Tesouro dos EUA e editor-associado do Wall Street Journal.