CARLOS LOPES
(HP, 03/02/2010)
Pode ser que o país cresça os 5% vaticinados pelo ministro Mantega para este ano. E pode ser que não cresça. No entanto, o que isso significa? Certamente, nem o próprio ministro acha que os nossos problemas econômicos estão resolvidos porque, presumivelmente, iremos crescer 5% este ano. Além disso ser uma previsão – algo ainda a ser realizado – a questão, como disse o presidente Lula algumas vezes, não é apenas crescer em tal ou qual ano, mas manter o crescimento de forma a mudar o país, em especial sanar as graves injustiças sociais que ele ainda apresenta. Crescimento tipo “voo de galinha”, até Fernando Henrique conseguiu algum.
Em agosto de 2008, Mantega declarou, com bastante razão, que o grande problema era que o país “está no limite da valorização cambial” e que as contas externas “vão para o vinagre” (sic), se a hiper-valorização do real continuasse. Literalmente: “se for mais adiante, estamos perdidos” (ver a sua intervenção no seminário Carta Capital/FGV).
Até então, de janeiro de 2003 a agosto de 2008, devido à atração de dólares pelos juros altos estabelecidos pelo BC, o real já havia acumulado uma “valorização” de 124,2% em relação à moeda norte-americana. O que significava uma trava violenta às exportações (e um incentivo igualmente violento às importações), reduzindo o saldo comercial – que caiu US$ 6,4 bilhões de 2006 para 2007 e continuava caindo em 2008, mesmo antes da crise externa. O ministro, portanto, estava inteiramente certo ao temer que as contas externas fossem “para o vinagre”.
De lá para cá, houve uma implosão econômica nos EUA, que iniciaram uma guerra cambial contra os outros países do mundo, emitindo trilhões de dólares sem lastro, provocando, exatamente, uma hiper-valorização, totalmente artificial, das outras moedas (exceto, evidentemente, daquelas que foram defendidas pelo governo de seus países – o yuan à frente). Com os juros internos norte-americanos próximos de zero ou mesmo negativos, esses dólares invadiram os países em que os juros estão mais altos, saqueando ativos – é assim que os EUA tentam superar a sua crise: às custas do mundo.
No entanto, em dezembro passado, Mantega declarou que as contas externas do país não são um problema. Disse ele: “teremos um déficit em transações correntes”, mas “será coberto por poupança externa”. E acrescentou: “não há risco”. Alguns dias depois, o déficit em “transações correntes” atingiu US$ 52,526 bilhões (em 2008, US$ 28,192 bilhões + US$ 24,334 bilhões em 2009).
Apesar de sua própria estimativa de déficit nas “transações correntes” para 2010 estar em torno de US$ 40 bilhões (o BC, através do “Boletim Focus”, diz que a “média das expectativas do mercado” é US$ 47 bilhões), Mantega não acha isso um problema, pois também prevê, não é muito claro com que fundamento, uma entrada de US$ 45 bilhões em “investimento direto estrangeiro” (IDE).
O economista Márcio Holland, da FGV, disse algo interessante a esse respeito: “O déficit é financiável, esse que é o problema. Qual investidor, independentemente de sua natureza, não quer um mercado como o nosso? Teremos mais investimentos estrangeiros diretos com certeza. Mas esse tipo de investimento tem impacto negativo na conta corrente, uma vez que ele implica insumos importados e aumento nas remessas de lucros e dividendos no futuro” (Valor Econômico, 19/01/2010 – grifo nosso).
Mas, continuemos – o que são as “transações correntes”?
São de três tipos:
a) o comércio com outros países (balança comercial: exportações menos importações);
b) as remessas de “rendas” e “serviços” para fora do país, remessas sobretudo de lucros, declaradas ou disfarçadas, e algumas outras, ou vice-versa (apesar dos esforços daqueles que querem criar “multinacionais brasileiras” às custas do BNDES, não houve ano em que as remessas para fora não superassem amplamente as remessas de fora para dentro);
c) as “transferências unilaterais correntes” (em geral, dinheiro enviado por brasileiros residentes no exterior para dentro do país e vice-versa) – este item, devido à sua pequena dimensão, não tem influência sobre o resultado das “transações correntes”, muito menos sobre o resultado do balanço de pagamentos. Por isso, aqui, não o levaremos em conta.
Portanto, um déficit nas “transações correntes” significa que o saldo comercial – isto é, riqueza real, produto real do trabalho do país – não está cobrindo as remessas para o exterior.
Então, por que, antes, quando as “transações correntes” não estavam deficitárias (em 2007 houve um saldo positivo de US$ 1,551 bilhão), estaríamos “perdidos” se elas piorassem, e, agora, que elas já apresentaram um déficit de US$ 28,192 bilhões em 2008 e US$ 24,334 bilhões em 2009, com o próprio Ministério da Fazenda prevendo que ele aumentará substancialmente em 2010, as coisas estão tranquilas?
Antes de qualquer coisa: é evidente que não vão ser os tucanos que irão resolver o problema das contas externas, como, de resto, nenhum problema do país. Pelo contrário. Basta ver o que Fernando Henrique fez, quanto às contas externas, desde o primeiro passo que deu para dentro do Palácio do Planalto. Somente a ingenuidade do sr. Bresser pode produzir a pérola de que Serra adotaria a sua política para resolver o problema – provavelmente da mesma forma que resolveu os problemas de São Paulo, para não falar daqueles da Saúde…
Portanto, são as forças nacionais, aquelas que querem mudar o país, que terão de resolver a questão. No entanto, em certos momentos, é uma tentação passar por cima das questões reais e concentrar-se, como aquele personagem da literatura para quem vivíamos sempre no melhor dos mundos possíveis, num horizonte que não ultrapasse a ponta dos nossos narizes. Isso acontece.
Sucintamente: o problema do déficit nas “transações correntes” é o problema das remessas de lucro para o exterior. A redução do saldo comercial – que, apesar de cair, foi positivo e alto tanto em 2008 quanto em 2009 – somente seria um problema se nos dispuséssemos a empregar eternamente uma parte da riqueza nacional, advinda do comércio exterior, para cobrir o rombo deixado pelas remessas de lucros. Ou seja, apenas se nos dispuséssemos a ser duplamente saqueados por todos os tempos.
A questão é: quanto mais “poupança externa” entrar no país, isto é, quanto mais entrar capital estrangeiro, mais remessas de lucros haverá. Portanto, não é razoável ficar tranquilo com a expectativa de cobrir o déficit nas “transações correntes” com capital estrangeiro, porque o capital estrangeiro não irá pagar a si mesmo com seu próprio dinheiro.
Evidentemente, o ministro Mantega sabe disso. Tanto assim que declarou: “vai haver uma retomada do comércio internacional lá para 2012, com a recuperação da economia mundial. Aí, teremos condições de fazer um saldo comercial melhor”.
Ou seja, voltaríamos, daqui a dois anos, depois de vender mais um lote de empresas – um lote de US$ 45 bilhões (!), segundo suas previsões – a cobrir as remessas de lucro com o saldo comercial. Resta saber quando essa drenagem da riqueza nacional (isto é, do trabalho do país) terminaria.
Se depender, por exemplo, dos tucanos, nunca. Mas, vejamos a seguinte tabela:
Esses números mostram que Fernando Henrique afundou o país em um déficit nas “transações correntes” de US$ 186 bilhões e 164 milhões. O que quer dizer que, diante da debacle a que levou o comércio exterior, estava tapando esse imenso buraco com capital estrangeiro. O que somente servia para aumentar ainda mais o déficit, com a queima de empresas, públicas e privadas, que foram tomadas pelo capital externo – pela simples razão de que estas empresas também se tornaram remetedoras de lucros para o exterior.
A tabela mostra, também, que o governo Lula, desde seu primeiro ano, procurou reparar essa extrema vulnerabilidade externa. No entanto, em 2008 e 2009, o país voltou a apresentar déficit – exatamente devido à entrada desenfreada de “investimento direto estrangeiro” (IDE).
Agora, vejamos o primeiro componente das “transações correntes”, a balança comercial, isto é, o valor das exportações menos o valor das importações:
Em suma, o comércio exterior do país foi quebrado durante o governo Fernando Henrique – aliás, até mais do que esta tabela demonstra, pois o resultado do último ano, 2002, atípico no conjunto do governo, mascarou, em parte, o desastre. Nos primeiros sete anos de governo (1995-2001), o saldo negativo estava em US$ 21,6 bilhões. Antes de 1995, o último déficit comercial do país havia sido em 1980, 15 anos antes, no acidentado governo Figueiredo. Porém, Figueiredo terminou seus seis anos de governo com um superávit comercial de quase US$ 16 bilhões (para ser exato, US$ 15,888 bilhões).
A tabela também mostra que o governo Lula recuperou o comércio exterior, tirando-o de US$ 8,5 bilhões negativos e elevando-o a um patamar positivo acima de US$ 40 bilhões; a queda em 2007 não é muito significativa, mas é sinal de que os juros altos e seu corolário, a hiper-valorização do real, já começavam a mostrar efeito, assim como a diminuição de valor devido à “primarização” das exportações, ou seja, ao perfil cada vez mais concentrado em produtos primários (soja, minério de ferro, etc.) do que vendemos a outros países.
Em 2008 e 2009, além dessas travas, somaram-se a crise externa (com a seca no crédito para as exportações) e a consequente guerra cambial dos EUA contra os outros países, com mais pressão sobre o real, auxiliada pelo diferencial de juros, mantido muito alto pelo BC em relação a esse e a outros países.
Vejamos agora o segundo componente das “transações correntes”, as remessas para o exterior, isto é, a soma dos itens “rendas” e “serviços” da balança de pagamentos. Aqui, como o total dos oito anos do governo Fernando Henrique não é esclarecedor – só é capaz de mostrar que saiu muito dinheiro, quase US$ 200 bilhões (US$ 194,235 bilhões) – recorreremos, para comparação, à média anual do governo FH e acrescentaremos a média anual dos quase 50 anos que vão de 1947 a 1994:
Até o governo Fernando Henrique, o período em que mais se remeteram recursos para o exterior foi o governo Figueiredo, com um total de US$ 74 bilhões e 582 milhões em seis anos – o que significa uma média anual de US$ 12,430 bilhões, isto é, metade da média anual do governo Fernando Henrique.
Pois, durante o governo Fernando Henrique, além da média anual das remessas dobrarem em relação ao governo Figueiredo, ela mais do que quadruplicou, quase quintuplicou, em relação aos 47 anos anteriores.
As consequências nas contas externas da política de Fernando Henrique já apareceram antes que terminasse o segundo mandato – e se tornaram mais evidentes ainda nos problemas que deixou para o governo Lula enfrentar.
O aumento das remessas para o exterior é uma consequência daquela estúpida entrada de “investimento direto estrangeiro” (IDE), tão incensada pelo notório Gustavo Franco e pelo próprio Fernando Henrique – isto é, entrada de dinheiro para comprar empresas nacionais, tanto pela privatização e entrega de empresas estatais ao capital estrangeiro, quanto pela compra em massa de empresas privadas brasileiras. Veja-se a seguinte tabela:
Sucintamente: durante o governo Fernando Henrique entraram no país, como Investimento Direto Estrangeiro (IDE), quatro vezes o que entrou nas quase cinco décadas que vão de 1947 a 1994. É significativo que enquanto o IDE era multiplicado por 4 em relação aos 47 anos anteriores, as remessas eram multiplicadas por 4,5.
Aqui, como diziam os antigos, está o busílis. Vejamos o seguinte:
Em sete anos de governo Lula, o total de IDE foi mais ou menos o mesmo que nos oito anos do governo Fernando Henrique: US$ 167,770 bilhões, um aumento de 2,64% em relação aos US$ 163,451 bilhões que entraram no governo Fernando Henrique.
No entanto, as remessas para o exterior passaram de US$ 194 bilhões e 235 milhões (1995-2002) para US$ 272 bilhões e 783 milhões – um aumento de 40,43%.
Em suma, somaram-se as remessas oriundas do IDE que entrou no governo Fernando Henrique com aquelas do IDE que entrou no atual governo e com aquelas do IDE que entrou e ficou – desde que Cabral aportou na Bahia.
Esta é uma característica intrínseca do IDE, isto é, da desnacionalização das empresas dentro do país, quando nada limita nem regula suas remessas para o exterior: é como uma dívida perpétua e crescente – ou, melhor, é como uma dívida que você não deve, ou um bem que você já não possui, mas tem de pagar até o dia do juízo final. Nesse sentido, é pior para o país do que uma dívida de natureza bancária ou do que o capital puramente especulativo. As consequências da entrada de IDE são bem mais permanentes.
O que a tabela mostra é, simplesmente, que as remessas sempre vão crescer mais do que a entrada de IDE, pela simples razão de que este é cumulativo, isto é, as empresas que foram compradas com o antigo IDE não param de remeter lucros quando as empresas que foram compradas com o novo IDE passam a também remeter lucros.
No entanto, o saldo comercial é estritamente finito e dependente da especulação monopolista. E a solução para este problema não pode ser a de recorrer ao que causou o problema como se fosse a solução.
Não sabemos se o país vai crescer 5%. Mas não será imitando o malfadado Gustavo Franco que teremos o crescimento que queremos.
Por último, uma observação: o ministro baseia suas previsões de crescimento sobretudo no consumo (“O mercado consumidor no país está crescendo a 5% ou 5,5%, o que é muito forte”). Quanto à taxa de investimento – isto é, a ampliação da capacidade produtiva do país – sua previsão para 2010 é, meramente, que ela chegue a 18% do PIB.
Registremos que o governo Lula fez um esforço notável, desde o início, para elevar a taxa de investimento da economia, que Fernando Henrique havia soçobrado – dos 20,75% do último ano do governo Itamar (1994) ela havia baixado para 15,7% em 1999, alcançando, depois, apenas 16,4% em 2002 (os dados sobre a taxa de investimento são do IBGE: até 2005, “Sistema de Contas Nacionais”; para 2006-2009, “Contas Nacionais Trimestrais, Indicadores de Volume e Valores Correntes”, setembro, 2009).
A taxa de investimento começou a subir, ainda que freada pelos juros do sr. Meirelles, já no segundo semestre de 2003 – apesar de, no conjunto desse ano, o estrago econômico anterior tê-la forçado, ao fim e ao cabo, para 15,3%.
Mas, no terceiro trimestre de 2008, a taxa de investimento já estava em 20,1% do PIB, e, muito importante, sempre crescendo mais do que o consumo – portanto, sem a possibilidade de inflação por excesso de procura e escassez de oferta que o BC usou para aumentar os juros.
Esse aumento na taxa de investimento foi um triunfo do governo Lula. Infelizmente, nos meses seguintes, a política do Banco Central e a do BNDES desperdiçaram esse triunfo, deixando que a crise entrasse no país.
Os 18% previstos por Mantega para 2010 são inferiores à taxa de investimento já alcançada no terceiro trimestre de 2008 – e, apesar dos graves problemas no quarto trimestre desse ano, àquela do conjunto de 2008 (19%). A previsão do ministro, aliás, é apenas ligeiramente superior aos 17,7% do terceiro trimestre de 2009. É verdade que, para 2014, ele prevê 23%, o que seria bastante razoável, se a previsão não fosse para daqui a quase cinco anos – embora, ainda seria inferior à taxa de investimento de 1989 (26,86%), último ano do governo Sarney.