Extradição é pedida por “um governo que se refere à imprensa e aos denunciantes como o ‘inimigo’ e às notícias importantes como ‘falsas’.”
A duas semanas do início da audiência decisiva sobre sua extradição pedida pelo governo Trump e depois de seis meses sem contato sequer com os advogados, o jornalista e fundador do WikiLeaks, Julian Assange, teve permitida no início da semana passada a visita de sua companheira, a advogada de direitos humanos Stella Morris, e de seus dois filhos pequenos no presídio de segurança máxima em que é mantido, Belmarsh, conhecido como a ‘Guantánamo britânica’.
A visita é uma boa notícia para todos os defensores de Assange e das liberdades democráticas no mundo inteiro. Foi a primeira vez que Stella e os pequenos Gabriel e Max viram Assange desde 22 de março – as visitas estavam proibidas sob alegação da Covid-19. Advogada respeitada internacionalmente, Stella manteve em sigilo, até recentemente, seu relacionamento com Assange por razões de segurança.
Se extraditado, Assange, o mais famoso preso político do mundo, pode ser condenado a 175 anos por “espionagem” – isto é, por divulgar documentos do próprio Pentágono mostrando crimes de guerra cometidos no Iraque e Afeganistão, e a tortura em Guantánamo. No mundo inteiro, tem se multiplicado o clamor contra a extradição de Assange, de parte de um grande número de jornalistas, juristas, personalidades e entidades.
À agência de notícias PA, após a visita, Stella relatou que a experiência tinha sido “incrivelmente estressante”, mas se disse “aliviada” por ver Assange. Nesses seis meses, o jornalista foi mantido confinado 23 horas por dia. Assange disse ainda à companheira que “foi a primeira vez” que ele recebeu uma máscara facial.
Quanto à condição física de Assange, Stella contou que ele “está com muitas dores”, em função de um problema crônico com o ombro, que tem se agravado por falta de tratamento médico adequado. Havia, ainda, torcido o tornozelo recentemente.
“Não consegui vê-lo muito bem por causa das viseiras, mas ele parecia muito mais magro”, assinalou a companheira de Assange. “Podia-se ver como seus braços estavam finos”, ela explicou, acrescentando que ele usava uma braçadeira amarela para indicar seu status de preso.
“Tivemos que manter o distanciamento social e Julian foi informado de que teria que se isolar por duas semanas se tocasse nas crianças”, disse Stella. “Pelo menos ele conseguiu ver as crianças, embora não pudesse tocá-las”, acrescentou. “Ficamos sentados o tempo todo.”
Stella relatou, ainda, que as crianças estavam calmas, e que o mais velho, Gabriel, de três anos, mostrou ao pai sua habilidade para contar e para recitar o alfabeto. Ele nasceu quando Assange era refugiado político na embaixada do Equador em Londres. Max, que tem um ano de idade, conheceu o pai em 2019 no presídio.
A confirmação de que as autoridades britânicas não concederam ao mais famoso preso político do mundo sequer a proteção de uma máscara facial, ou seja, a proteção mais básica, só amplia o rol de absurdos kafkianos que cerca todo o caso.
Isso num país com um dos piores desempenhos em relação à pandemia e com a condição de risco de Assange sendo conhecida de todos em função dos anos de perseguição, falta de assistência médica e tortura psicológica, como atestado pelo relator especial da ONU, Nils Melzer. E com no auge da pandemia centenas de funcionários penitenciários e presos em todo país infectados, inclusive em Belmarsh.
Durante essa quarentena, um grande contingente de especialistas médicos advertiu sobre o risco de vida que Assange estava correndo, devido aos seus problemas respiratórios crônicos. O tribunal de fancaria de sua Majestade não só ignorou essas advertências, como recusou um pedido de fiança.
Ao mesmo tempo, ele ficou totalmente impedido de contribuir para sua própria defesa, já que estava com o contato com o mundo fora presídio cortado. Na última audiência por link de vídeo em 14 de agosto, Assange parecia mal e tossiu durante grande parte de sua breve aparição. Pedido da defesa para aproveitar o link e conversar com Assange não foi concedido.
Alguns dias antes da visita a Assange ser afinal autorizada, Stella havia dito como estava “sendo difícil”, “nem eu nem seus filhos podemos vê-lo”. Ela comparou, então, o esforço da equipe de defesa para “investigar e compreender os detalhes” nessa situação a “escalar o Himalaia”, enquanto “a pessoa mais capaz de contribuir está trancada em uma prisão – e incapacitada, mental e fisicamente, para o nível de engajamento que deseja e precisa dar”.
JORNALISMO NÃO É CRIME
Como revelou o Relator da ONU para Tortura, Nils Melzer, o caso Assange pode ser resumido a que um crime de guerra foi provado aos olhos do mundo – um massacre de civis em Bagdá durante a ocupação norte-americana – os criminosos e os mandantes permanecem absolutamente impunes, e quem denunciou o crime – Assange – está sob ameaça de prisão perpétua e tortura, depois de um processo marcado por fraudes, falsificações e uma operação de ‘assassinato de reputação’ (a acusação falsa de ofensa sexual na Suécia).
Já se passaram dez anos desde que o WikiLeaks, junto com alguns dos maiores jornais do mundo, divulgou o célebre “Assassinato Colateral”, o vídeo, tirado de um helicóptero de guerra norte-americano em Bagdá, do trucidamento de civis iraquianos desarmados, inclusive dois jornalistas. Documento que sintetiza brutalmente os milhares e milhares de arquivos do Pentágono sobre a guerra.
Assim, não é apenas a figura de Julian Assange que está sob ataque, são os direitos democráticos de milhões de pessoas, a própria liberdade de imprensa, enquanto se oficializa a extraterritorialidade de leis norte-americanas e a impunidade dos crimes de guerra.
A publicação não foi feita em solo norte-americano, Assange não é cidadão norte-americano, e a prevalecer o precedente, qualquer um, em qualquer lugar do mundo, que publique algo de que Washington não goste, pode virar o próximo alvo.
Washington manteve por dez anos um júri secreto para fabricar acusações contra Assange em um tribunal da Virgínia que é virtualmente uma dependência da CIA; em conluio com autoridades suecas e britânicas perseguiu judicialmente a Assange; espionou Assange e seus advogados dentro da própria embaixada do Equador em Londres; negociou com o trânsfuga Lenin Moreno a entrega de Assange à polícia inglesa, depois de um ano em que o jornalista virou praticamente um prisioneiro na embaixada; anunciou, através do secretário de Estado, Mike Pompeo, que as “proteções da Primeira Emenda” não se aplicavam a Assange e ao WikiLealks; voltou a prender ilegalmente Chelsea Manning, na tentativa de forçá-la a mentir contra Assange; e depois de apresentar seu pedido de extradição, ainda o refez, após a defesa apresentar sua argumentação inicial, em mais um abuso, de muitos, do devido processo.
O establishment norte-americano também odeia Assange por ter ajudado Edward Snowden a escapar das garras da CIA, após revelar que os EUA grampeavam o planeta inteiro; ainda mais, pelo jornalista australiano ter revelado ao mundo que a CIA tinha uma ferramenta cibernética que a permitia cometer crimes e atribuir a outros países.
“CASO DREYFUS DOS TEMPOS MODERNOS”
Um dirigente trabalhista inglês, John McDonnell classificou a tentativa dos EUA de extraditar Julian Assange de o “caso Dreyfus de nossa época” – “a maneira pela qual uma pessoa está sendo perseguida por razões políticas por simplesmente expor a verdade do que aconteceu em relação às guerras recentes”, enfatizou.
Alfred Dreyfus, um oficial judeu, perseguido pelo alto comando militar da França, governo e forças de extrema-direita na virada do século XIX, foi acusado de traição e ser ‘agente alemão’ e condenado em um processo fraudulento e sob clima de feroz anti-semitismo.
Perseguição odienta que gerou uma dramática crise na França que se estendeu por dez anos, com o movimento socialista francês assumindo a defesa de Dreyfus, até que fosse declarado inocente e libertado, luta que o imortal “J’Accuse”, do escritor Émile Zola, condensou.
Comparação de imenso significado e que reforça a percepção da importância de defender Assange hoje. No próximo dia 7, terá início no Reino Unido a fase decisiva do julgamento do pedido de extradição, que deverá se prorrogar por três semanas.
Como salientou Stella, a companheira de Assange, a vendeta contra Assange é inseparável da agenda autoritária mais ampla do governo Trump: “a intenção é clara; trazida por um governo que se refere à imprensa e aos denunciantes como o ‘inimigo’ e às notícias importantes como ‘falsas’.”