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Fiscalização e combate ao desmatamento e pesca ilegal seguem em dificuldade na região dominada pelo crime organizado, mostra reportagem do portal Amazônia Real
Um ano após o brutal assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, no Vale do Javari, no Amazonas, em 5 de junho de 2022, a região segue enfrentando os mesmos problemas sobre os quais Bruno planejava atuar para ajudar os Guardiões da Floresta a proteger seu território.
Caça predatória, pesca ilegal, derrubada de árvores, tráfico de drogas e aliciamento de pessoas das comunidades indígenas, além da falta de meios tecnológicos e de recursos financeiros, ameaças e medo, são problemas constantes no cotidiano das populações do Médio Javari.
“Aquela região, quem não aceita o aliciamento e a intimidação dos agentes do narcotráfico é ameaçado e até morto. Muitas destas violências sequer são relatadas oficialmente para evitar represálias e mais mortes”, diz reportagem do Amazônia Real, que em março visitou a região e acompanhou uma expedição dos Guardiões pela mata.
“Outras vezes, os relatos são dispersos, com poucos detalhes. Nas raras vezes em que denunciam às autoridades, o medo de ser assassinado passa a fazer parte da rotina dos indígenas, pois as respostas das instituições demoram ou não vêm”, prossegue a reportagem.
No Médio Javari, um rio de fronteira, que divide Brasil e Peru, segundo a Amazônia Real, o narcotráfico e o roubo de madeira pressionam as aldeias. “Para tentar combater a ilegalidade no Médio Javari estão os Kanamari, que criaram o grupo Guerreiros da Floresta, formado por 36 homens”, informa a reportagem.
Eles se revezam nas ações de vigilância da região em expedições periódicas, com recursos próprios, sem apoio de políticas públicas. “Em vez de serem protegidos, eles têm de garantir a própria proteção”, diz trecho da reportagem.
Os Kanamari, que se autodenominam “Tükuna”, são hábeis conhecedores da floresta e conhecem os atalhos nas águas para cortar caminho entre galhos, folhas, pedaços de paus e cipós, para tentar driblar distâncias e outras dificuldades durante as ações.
Kora Kanamari, uma das lideranças indígenas, diz que as invasões aumentaram no Médio Javari desde 2019. Em agosto de 2022 –apenas dois meses depois dos assassinatos de Bruno e Dom, relata, os Kanamari estavam instalados em sua base de vigilância, quando um grupo de invasores ligados ao roubo de madeira na terra indígena e ao tráfico de drogas disparou três tiros contra eles.
“O jeito foi recuar e assistir de longe aos fogos que os invasores soltaram em comemoração. Eram estrangeiros, possivelmente peruanos, constataram os indígenas”, contou Kanamari. O relato ilustra o cotidiano das comunidades nas quais o medo e a intimidação são constantes.
Em outra ocasião, os invasores abordaram um cacique de uma das aldeias do Médio Javari e o ameaçaram. “Disseram: ‘se nós ficarmos sabendo que estão fazendo reuniões contra a gente, vão pagar um preço com sua vida’”, relata o líder indígena. No ano passado retiraram duas meninas de uma das comunidades para trabalhar no lado do Peru. “Os traficantes levaram elas. Passaram meses. Como elas foram tratadas, não sabemos. Depois voltaram”.
Segundo os relatos, nos últimos cinco anos cresceu também o assédio do narcotráfico aos indígenas. Alguns, inclusive, são aliciados em suas próprias comunidades.
Para entrarem na mata fechada, os indígenas Kanamari não dispõem de GPS ou qualquer outro equipamento que aponte os melhores trajetos. Assim, eles são obrigados a se guiar apenas pelo conhecimento da floresta e dos caminhos nas águas. Eles lutam para conseguir apoio para a estrutura de sua própria fiscalização.
No percurso, relata a reportagem, os Guerreiros da Floresta logo identificam pelo menos duas árvores nobres derrubadas prontas para serem serradas pelos madeireiros
“Eles procuram mais nessa área porque tem menos gente e o rio fica bem longe. Eles serram dentro da mata para que a gente não ouça a zoada da motosserra e dificultar o trabalho da fiscalização”, declarou o líder Kora Kanamari, que estavam na operação dos Guardiões, do qual faz parte. Segundo o líder indígena, nos últimos cinco anos, madeireiros brasileiros e peruanos voltaram a entrar no território indígena e o barulho de máquinas recomeçou.
Os Guerreiros da Floresta também enfrentam dificuldades financeiras que prejudicam o avanço das fiscalizações. “O combustível, doado, é sempre controlado e há o receio com a segurança dos indígenas porque eles não podem confrontar os invasores em um ataque com armas”, diz a reportagem.
A madeira extraída da TI Vale do Javari é transportada para o lado peruano, onde é processada e depois retorna ao Brasil, sendo vendida serrada no mercado brasileiro, nas cidades de Atalaia do Norte e Benjamin Constant, no Alto Solimões e na tríplice fronteira, informa o portal. Os Kanamari contam que os comerciantes que negociam com os criminosos são facilmente encontrados no lado brasileiro e seriam facilmente identificados se houvesse fiscalização.
“Essa é a estratégia deles. Antes da demarcação, levavam a madeira em toras. Agora ela já vai serrada. O que fazemos aqui é uma vigilância difícil. Nessa vigilância de hoje, com vocês, gastamos 160 litros (de gasolina)”, diz o Guardião. “Não temos dinheiro. A Funai não ajuda. Temos alguns parceiros que dão pequenos apoios financeiros”, desabafa.
“É no Médio Rio Javari, considerado o ‘início’ do imenso território indígena de 8, 5 milhões de hectares, que a aliança criminosa entre a extração ilegal de madeira e o narcotráfico cerca os povos Kanamari, Mayoruna e Kulina, três dos sete povos que habitam a TI Vale do Javari”, cita outro trecho da reportagem. Os demais são formados por Marubo, Matís, Korubo, Tyonwük Dyapah –esses últimos também chamados de Tsohom Djapá – e grupos de indígenas em isolamento voluntário.
Em abril deste ano, a Associação dos Kanamari do Vale do Javari (Akavaja) denunciou a presença de quatro homens falando espanhol e portando fuzis na aldeia Irari II, também no Médio Javari, que ameaçaram o cacique. A ação se deu em represália a apreensão pela Polícia Federal de madeira retirada ilegalmente da terra indígena. O episódio ilustra a fragilidade a que estão expostos os povos indígenas da região.
A União dos Povos Indígenas Vale do Javari (EVU), outro grupo que atua na autodefesa de seus territórios, ficou conhecida mundialmente por estar ao lado de Bruno e Dom Phillips até o dia em que foram assassinados. O grupo foi responsável por identificar uma grande balsa contendo pelo menos 300 toras de madeira em novembro de 2022, retirada do território onde vivem os Kanamari.
A Polícia Federal apreendeu a madeira retirada ilegalmente da terra indígena, porém, dias depois, os criminosos recuperaram o carregamento. “A PF fez uma apreensão e deixou a madeira no local com algum responsável que não sabemos quem era. Os próprios invasores depois foram pegar elas de volta”, lembra o presidente da Akavaja (Associação dos Kanamari do Vale do Javari) à Amazônia Real.
O presidente da Akavaja, que pediu à reportagem para não ter seu nome revelado, divulgou uma nota informando as ameaças e pedindo apoio das autoridades, entre elas a PF, o Ministério Público Federal e a Funai.
A polícia compareceu à aldeia por um período de tempo considerado insuficiente pelas lideranças. “[Os policiais] fizeram perguntas, queriam saber os nomes dos bandidos, tiraram fotos. Você acha que bandido diz o nome?”.
“Mas indicamos onde poderiam ser encontrados. A tropa da PF não foi lá. Falaram que não tinham a ver com o Peru. E se esses invasores matassem o cacique? O que aconteceu é que acabou em nada a nossa denúncia e os parentes continuaram desprotegidos”, denuncia o presidente da Akavaja.
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Segundo a Amazônia Real, o cacique ameaçado foi retirado da aldeia Irari II posteriormente e está traumatizado, recebendo apoio psicológico. Ainda assim, segundo apurou o site, ele continua sendo perseguido pelos criminosos.
Para o presidente da associação indígena, ter uma base de vigilância da PF em Atalaia do Norte, onde fica localizada a maior parte da TI Vale do Javari, não é o suficiente. Ele defende um trabalho permanente com ações para bloquear o acesso ao território indígena.
A travessia do lado brasileiro para o peruano leva não mais que alguns minutos. Os furos (atalhos) que cortam o rio são percursos rápidos entre os dois países, mas é “tenso navegar pelo Médio Javari, pois no lado peruano existem comunidades ribeirinhas onde, suspeita-se, há plantações de coca destinadas ao tráfico de cocaína”, cita a reportagem
“Os indígenas sempre procuram se manter reservados sobre esse assunto, porque eles possuem uma relação de cordialidade com os moradores do lado do Peru. Nessas comunidades peruanas são comuns pontos de comércio de produtos alimentícios, como arroz, bolacha, pão e remédios.
No entanto, um casal de idosos, avós de um indígena que não teve o nome revelado por medida de segurança, foram assassinados por invasores há um ano. “Eles entraram na aldeia para pescar e invadiram a aldeia. Só estavam meus avós e mataram eles”, diz.
Em fevereiro deste ano alguns homens desconhecidos encostaram na Base de Vigilância dos Kanamari, armados com metralhadoras, alegando que iam “pescar”. “Eram oito e eles estavam com metralhadoras. O que a gente podia fazer além de apenas tentar conversar?”, diz o indígena, que também faz parte dos Guardiões da Floresta. O grupo ficou na aldeia por algumas horas e depois se retirou. Acredita-se que a intenção era intimidar.
“Aqui é fronteira, corremos perigo. Os assaltantes peruanos ameaçam a gente quando passamos no rio, na frente das comunidades deles. Os ‘drogueiros’ ameaçam. A gente vê barcos de 60, de 200 HP, tudo com arma pesada”, completa a fonte indígena. “É por isso que queremos que a Funai faça alguma coisa”.
“Em 2018, com o retorno das grandes invasões, foi iniciado o projeto de sistema de governança territorial. O governo de Jair Bolsonaro só fazia recrudescer a violência na região. Dois anos depois, os indígenas Kanamari começaram a construção da sua própria base de vigilância, inspirados em um patrulhamento desenvolvido pelos indígenas, a Ashaninka, no Acre, e em um projeto do povo Deni, no Amazonas. E é aqui que a história se une a um personagem emblemático, o indigenista Bruno Pereira”, explica a Amazônia.
“O finado Bruno ajudou em apoio de logística, de conscientização. Ele falou pra gente que não esperássemos do governo naquele momento. Que éramos muito inteligentes para cuidar de nosso território”, lembra Kora Kanamari.
“O Bruno era melhor para a gente. Ele gostava da nossa terra, andava com a gente. Ia para um lugar, por cima, e varava lá adiante. Era bem dizer nosso irmão, nosso parente. Ele cantava, brincava, tomava ayahuasca junto com nós, comia com a gente”, lembra Mauro Kanamari.
“Ficamos muito tristes quando ele morreu. A aldeia toda chorou muito. Muita gente pensou: ‘Será que vamos conseguir fazer o manejo de pirarucu sem o Bruno?’ Não, vamos continuar, somos guerreiros, vamos cuidar da nossa terra”, promete Kora.
No último encontro, Bruno Pereira prometeu aos Kanamari que iria passar 15 dias com a família dele e depois voltaria para o Vale do Javari, onde daria uma atenção especial às ações no Médio Javari.
A intenção era ensiná-los a como fazer com que o grupo Guerreiros da Floresta pudesse enfrentar as ameaças, tal como havia ensinado aos integrantes da EVU, mas os planos foram interrompidos, pois em 5 de junho ele e o jornalista Dom Phillips foram assassinados.
Com o fim do desastroso governo que estimulou invasões das terras indígenas, os Kanamari recuperaram suas esperanças e defendem que agora a gestão de Luiz Inácio Lula da Silva modifique as ações de proteção e vigilância.
“A gente votou no Lula e estamos pedindo ajuda dele agora. Queremos que ele fortaleça a Funai, que mande a Funai cuidar da nossa terra. O pessoal da Base [de vigilância] está com medo do madeireiro e do traficante. Estamos aqui para ajudar a Funai também. A Força Nacional é mandada para as bases, mas eles precisam ajudar também”, diz o cacique Mauro Kanamari, da aldeia São Luís. “Queremos paz, poder fazer nossa dança, nosso canto, nos livrar dos invasores.”
A aldeia São Luís foi a primeira comunidade da TI Vale do Javari a ser contaminada pelo novo coronavírus. É a maior comunidade do Médio Javari, onde vivem cerca de 250 indígenas Kanamari. A chegada da Covid-19 paralisou as ações de vigilância que os Kanamari haviam acabado de iniciar.
Em São Luís está localizado o polo-base de saúde e um único telefone público. É um ponto de encontro das ações de vigilância e do projeto de manejo de pirarucu iniciado há três anos, e que até o momento não foi ocupada por madeireiros e outros invasores. Nos primeiros anos da década de 2000, a Funai estava fortalecida e havia fiscalização da PF na região.
A reportagem da Amazônia real faz parte do Projeto Bruno e Dom. É uma investigação colaborativa que reúne 16 veículos de 10 países. O consórcio, coordenado pela Forbidden Stories, entidade que investiga o trabalho de jornalistas assassinados, foi constituído após a morte do jornalista britânico Dom Phillips, em 5 de junho de 2022.