“É chegada a hora de renovar as instituições multilaterais baseadas nas realidades econômicas e políticas do século 21, enraizadas na equidade, na solidariedade e na universalidade e ancoradas nos princípios da Carta das Nações Unidas e no direito internacional”, diz o secretário-geral Antonio Guterres
Com o presidente Lula aplaudido sete vezes durante seu discurso de abertura – “o Brasil está de volta” -, a 78ª Assembleia Geral da ONU teve início na terça-feira (19) em Nova Iorque, no quadro da inadiável exigência de uma nova ordem multilateral que acomode “a pluralidade econômica, geográfica e política do seculo 21”. E que permita a superação das históricas desigualdades e da fome, retome a Agenda 2030 da ONU, faça frente à emergência climática, isole o fascismo que emerge em meio aos escombros do neoliberalismo, e restaure a capacidade coletiva de fazer prevalecer a Carta da ONU e a paz e não o conflito como o exposto pela guerra da Ucrânia.
Delegações de 193 países participam da Assembleia Geral.
Em seu relatório sobre o “estado do mundo”, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, apelou por instituições multilaterais capazes de enfrentar os desafios atuais. “O mundo mudou. As nossas instituições não. Não podemos resolver eficazmente os problemas tais como eles são se as instituições não refletirem o mundo tal como ele é. Em vez de resolverem os problemas, correm o risco de se tornarem parte do problema”, disse ele.
Para Guterres, o mundo enfrenta uma série de ameaças existenciais, desde a crise climática às tecnologias disruptivas. Depois da Guerra Fria, assinalou, “veio um curto período de unipolaridade. Agora o mundo está avançando rapidamente para um mundo multipolar. Isto é, em muitos aspectos, positivo. Traz novas oportunidades para a justiça e o equilíbrio nas relações internacionais”.
Ele voltou a advertir que o mundo está “cada vez mais perto de uma grande fratura nos sistemas econômicos e financeiros e nas relações comerciais; assim como na ameaça de uma Internet com estratégias divergentes em tecnologia e inteligência artificial; e quadros de segurança potencialmente conflitantes”.
“É chegada a hora de renovar as instituições multilaterais baseadas nas realidades econômicas e políticas do século 21, enraizadas na equidade, na solidariedade e na universalidade e ancoradas nos princípios da Carta das Nações Unidas e no direito internacional.”
Guterres pediu empenho para “alcançar compromisso na construção de um futuro comum de paz e prosperidade” e determinação para “enfrentar a ameaça mais imediata à humanidade: o aquecimento global”, inclusive com os países desenvolvidos “finalmente disponibilizando os 100 bilhões de dólares todos os anos para a ação climática dos países em desenvolvimento, como prometido”.
“As Nações Unidas foram criadas precisamente para momentos de perigo máximo e acordo mínimo”, disse ainda Guterres. “Apesar da nossa longa lista de desafios globais, estejamos determinados a curar divisões e forjar a paz, determinados a defender a dignidade e o valor de cada pessoa, determinados a concretizar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e a não deixar ninguém para trás, determinados a reformar o multilateralismo para o século 21 e a unir-se para o bem comum”, completou.
Expressão desses desacordos e divergências, na 78ª Assembleia Geral da ONU não estão presentes os chefes de governo de quatro dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. Não participam pessoalmente o presidente da França, Emanuel Macron; o presidente da China, Xi Jinping; o presidente da Rússia, Vladimir Putin; e o primeiro-ministro britânico, Rishi Sunak. A Rússia está sendo representada pelo chanceler Sergei Lavrov. Chamou a atenção que o presidente Zelensky não haja sido aplaudido, ao contrário de praticamente o plenário inteiro, no discurso do presidente brasileiro. A propósito, o ucraniano falou para uma plateia esvaziada e não empolgou.
SEM BRILHO
Já o pronunciamento do presidente Joe Biden, descrito pelo portal Zero Hedge como “sem brilho”, buscou exaltar a guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia, que só está acontecendo porque os EUA decidiram anexar a Ucrânia ao seu bloco militar, depois de se comprometerem, nos anos 1990, a não expandirem “uma polegada sequer” para leste. E, para isso, realizaram um golpe de Estado em Kiev, em 2014, que desembocou na perseguição aos russos étnicos por todo o Donbass.
Curiosamente, Washington diz ter redescoberto a Carta da ONU, cuja validade desconhecia no auge de sua ordem global unipolar, como visto nas agressões à Iugoslávia, Iraque, Afeganistão, Líbia, Somália, Síria, entre outros.
No discurso, Biden fez de conta não ser público e notório que Kiev e Moscou estiveram muito perto de fechar em Ancara em março do ano passado um acordo de paz – com preservação da neutralidade da Ucrânia -, o que foi inviabilizado por ordem de Washington a Zelensky, da qual se fez portador o então primeiro-ministro britânico Boris Johnson.
Biden também acusou a Rússia de fazer o que foi exatamente a Casa Branca que esteve fazendo durante todos esses anos de “ordem global sob regras”: destruir a arquitetura internacional de prevenção da guerra nuclear.
Como fez W. Bush, acabando com o Tratado ABM. Trump, com o Tratado INF (de limitação de mísseis intermediários 500-5.000 km de alcance) e o dos “Céus Abertos”. E ele próprio, Biden, ao não revogar o cancelamento desses tratados cometido por Trump. Quanto ao START III, a Rússia se retirou, já que os EUA proibiram a entrada das equipes russas de fiscalização, alegando as sanções decretadas, enquanto queriam continuar entrando e saindo da Rússia quando lhes desse vontade.
Em relação à China, Biden disse que não queria “dissociação” mas “redução de riscos”, enquanto segue agravando a guerra tecnológica contra a China, intensifica o armamento de Taiwan e as provocações no Estreito e promove sua “Otan do Pacífico” por várias vias. No mais, foram 25 minutos, também segundo o Zero Hedge, com o octogenário presidente “resmungando e tropeçando nas palavras no teleprompter, como se tornou sua norma”.
DÍAZ-CANEL
Em nome do Grupo dos 77 + China, que acabou de realizar sua cúpula em Havana, o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, instou a ONU a buscar um contrato global “mais justo”. Cuba detém a presidência pro tempore do grupo, que representa 80% da população mundial. “Estávamos unidos pela necessidade de mudar o que não foi resolvido e pela condição de principais vítimas da atual crise multidimensional, da troca abusiva e desigual do fosso científico-tecnológico e da degradação do ambiente”, disse ele, sobre a cúpula.
Ele acrescentou que Cuba “não cederá nos seus esforços para promover o potencial criativo, a influência e a liderança do G77. Nosso grupo tem muito a contribuir para o multilateralismo, a estabilidade, a justiça e a racionalidade que o mundo exige hoje”.
“Ao ritmo atual, nenhum dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável será alcançado e mais de metade dos 169 objetivos acordados não serão cumpridos”, enfatizou Díaz-Canel. Ele disse que os esforços dos países em desenvolvimento não são suficientes para implementar a Agenda 2030 e “têm que ser apoiados por ações concretas de acesso aos mercados, financiamento em condições justas e preferenciais, transferências de tecnologia e cooperação Norte-Sul”.
“Não estamos pedindo esmolas nem implorando favores, o G77 exige direitos e continuará a exigir uma transformação profunda da atual arquitetura financeira internacional, porque é profundamente injusta, anacrônica e disfuncional”, sublinhou.
Díaz-Canel denunciou que os países do G-77 tiveram de alocar 379 bilhões de dólares das suas reservas para defender as suas moedas em 2022 e que as nações do sul têm de gastar até 14% dos seus rendimentos para pagar juros associados à dívida externa. “A maioria das nações do G77 é forçada a alocar mais recursos para o serviço da dívida do que para investimentos na saúde ou na educação”, explicou, o que impede o desenvolvimento sustentável.
Ele também denunciou medidas coercitivas unilaterais “que se tornaram práticas de Estados poderosos, que procuram atuar como juízes universais”, para enfraquecer e destruir economias, bem como isolar nações soberanas, de que o bloqueio dos EUA contra Cuba é um exemplo que já dura mais de 60 anos, apesar da reiterada condenação pela maioria dos paises da ONU.
RAMAPHOSA
O presidente sul-africano Cyril Ramaphosa sublinhou que a riqueza da África “pertence aos africanos”, em denúncia da espoliação dos recursos do continente pelas potências ex-coloniais. Ele também conclamou os países ricos a cumprirem seus compromissos financeiros com as nações do Sul Global e pediu que as sanções contra o Zimbabwe sejam levantadas por trazerem um “sofrimento inaudito” à nação africana.
O presidente argentino, Alberto Fernández, na última participação de seu mandato na Assembleia Geral da ONU, criticou o FMI, as sanções, as práticas comerciais discriminatórias e o bloqueio a Cuba, além de pedir reformas no sistema financeiro internacional. O modelo atual “apenas procura impor as mesmas políticas ortodoxas que aprofundaram a desigualdade e a miséria no mundo”, apontou.
Fernández afirmou ser vergonhoso que o FMI aplique “sobretaxas a muitos países que já consideram insuportável carregar o peso da dívida externa”. “Eles financiam a Ucrânia em plena guerra e ao mesmo tempo aplicam sobretaxas aos juros que cobram”, disse o líder argentino.