
Maior especialista mundial na chegada do homem nas Américas, o bioantropólogo Walter Neves tem uma preocupação que vem repetindo exaustivamente: o cientista precisa descer do salto alto e explicar ao povo a sua pesquisa e os seus estudos. É o que o motivou a escrever para o HP este artigo sobre evolução humana.
Walter faz parte dos Cientistas Engajados, um grupo de pesquisadores, cientistas e acadêmicos que decidiu ter uma participação política ativa. O grupo, que hoje reúne perto de 400 membros, lançou dois candidatos pelo Partido Pátria Livre, em São Paulo, nas últimas eleições, o próprio Walter a deputado federal e Mariana Moura a deputada estadual, obtendo em conjunto mais de 22 mil votos.
Ele é o responsável pelo estudo da Luzia, fóssil humano mais antigo das Américas, que o levou a propor o modelo da dupla migração do homem para o continente americano. Hoje vinculado ao Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA), Walter criou o Laboratório de Estudos Ecológicos e Evolutivos Humanos da USP (LEEEH), onde foram desenvolvidas as mais extensas e completas pesquisas arqueológicas sobre a região de Lagoa Santa (MG), berço do povo de Luzia.
Clovis Monteiro
Assim caminhou a humanidade
WALTER NEVES* e VICTOR DE OLIVEIRA**
(Instituto de Estudos Avançados da USP)
A má notícia para os criacionistas de plantão, e parece que haverá rencas deles no próximo governo, é que a nossa existência no planeta pode ser perfeitamente explicada por um processo evolutivo lento e gradual, não guiado, assim como ocorreu com os demais seres vivos do planeta. Como conta uma famosa anedota, o grande matemático francês Pierre-Simon Laplace, ao apresentar seu mais recente trabalho sobre mecânica celeste a Napoleão Bonaparte, o imperador o teria questionado por não haver nenhuma menção a Deus no seu ensaio. Laplace teria imediatamente respondido: “Imperador, eu não precisei dessa hipótese”. Não há a menor necessidade de lançar mãos de intervenção divina para explicar e justificar nossa existência. Dezenas de fósseis e centenas de sítios arqueológicos e datações por diferentes métodos comprovam o processo inteiramente natural de ancestralidade-descendência que nos fez chegar até aqui.
Tudo começou há 7 milhões de anos, com o surgimento dos primeiros primatas bípedes. O primeiro bípede é conhecido como Sahelanthropus tchadensis e foi encontrado em 2002 no deserto do Chade. A bipedia é o traço que distingue nossa linhagem, a dos hominínios, da dos chimpanzés, nosso parente mais próximo na Terra, com quem repartimos 98% de nosso genoma. Ou seja, nós humanos não viemos dos chimpanzés. Nós e eles repartimos um ancestral comum, que viveu há cerca de 8 milhões de anos. Já há vários candidatos para ocupar essa posição, mas o mais festejado é o Graeopithecus freybergi, cujos fósseis foram encontrados recentemente na Grécia e na Bulgária.
No início, a bipedia era facultativa, mas há cerca de 2,5 milhões de anos ela passou a ser estritamente terrestre. Esse fenômeno coincide com o surgimento do gênero Homo no registro fóssil. Datam também dessa época três outras características bastante humanas: cérebros maiores do que aqueles dos grandes símios, a fabricação das primeiras ferramentas de pedra lascada e a ocupação sustentada das grandes áreas de savana. Até 2 milhões de anos atrás, toda a evolução de nossa linhagem se restringiu ao continente africano.
Mas há 1.8 milhões de anos um de nossos ancestrais mais famosos, o Homo erectus, já pode ser encontrado no Cáucaso, como atestam os cinco crânios dessa idade exumados nos anos 2000 na jazida de Dmanisi, na República da Georgia. A capacidade craniana desses 5 indivíduos varia entre 650 e 750 cm3 . Por volta de 1.5 milhões de anos atrás esse nosso ancestral, que surgiu na África, já podia também ser visto nas paisagens asiáticas e européias, às vezes com cérebros que atingiam cerca de 900 cm3.
Se a primeira indústria de pedras lascadas era caracterizada apenas por lascas simples, sem retoques, por volta de 1,6 milhão de anos surgiram as primeiras ferramentas idealizadas mentalmente, com sinais de preconcepção. Em outras palavras, foi somente a partir daí que nossos ancestrais passaram a impor sobre a pedra formatos específicos de ferramentas. Coincidentemente, essas primeiras ferramentas planejadas só surgem no registro fóssil com o desenvolvimento do cérebro acima de 900cm3.
Por volta de 600 mil anos atrás surgiram os primeiros cabeçudos. Denominado Homo heidelbergensis, esses hominínios já apresentam uma capacidade craniana muito próxima à nossa, cerca de 1200 cm3. Na Europa esses hominínios deram origem aos neandertais com capacidade craniana de cerca de 1450cm3. Rapidamente esses hominínios se expandiram para o Oriente Médio e Sibéria, seguindo, mais ou menos, os climas frios, já que na Europa, onde surgiram, o clima era bastante inclemente. Talvez, por sua grande adaptação ao frio nunca conquistaram a África, eminentemente tropical.
Na África os heidelbergensis deram origem à nossa espécie, por volta de 200 mil anos atrás. Entre essa data e 50 mil anos atrás, nossa espécie ficou restrita à África. Foi somente a partir de então que o Homo sapiens espalhou-se por todo planeta, encontrando várias espécies ainda arcaicas pelo caminho. Essa expansão foi rápida. Há 45 mil anos o homem moderno já estava na Austrália e há 14 mil anos, na América.
Pode parecer tentador imaginar que nossa espécie está sozinha no planeta há muito tempo, mas na realidade a existência de apenas uma espécie de hominínio na Terra ao mesmo tempo é muito recente do ponto de vista evolutivo. Há cerca de meros 30 mil anos conviviam na Terra pelo menos cinco espécies: nós, praticamente em todo o planeta, os neanderthalensis na Europa, o erectus no sudeste asiático, o Homo floresiensis na Ilha de Flores, também no sudeste asiático, e uma espécie ainda não nominada oficialmente conhecida como Denisovanos, na Sibéria.

Crânio de Homo neanderthalensis
Não sabemos exatamente como se deu o embate entre o Homo sapiens e os arcaicos que foram encontrando, mas no caso da Europa nossa espécie substituiu completamente os Neandertais em 10 mil anos de convivência. Os últimos Neandertais viveram alí há cerca de 29 mil anos. Até bem pouco, acreditava-se que o homem moderno e o homem de neandertal não trocaram genes, mas hoje sabemos que na verdade houve cruzamento biológico entre essas duas espécies, ainda que de forma incipiente. Europeus e asiáticos atuais apresentam cerca de 2 a 4% de genes neandertais. É possível que cruzamento entre sapiens e outros hominínios arcaicos possa ter ocorrido em outras partes do mundo, mas o registro fossilífero entre 100 e 30 mil anos atrás é extremamente pobre fora da Europa e do Oriente Médio.
Como visto, todas as espécies de hominínios arcaicos foram extintas ou assimiladas pelas populações de Homo sapiens. Mas nós também quase nos extinguimos há cerca de 70 mil anos. A explosão de um grande vulcão na Indonésia, mais ou menos nessa época, causou um inverno nuclear de aproximadamente 5 anos no planeta. Nossa espécie foi reduzida a meros 10 mil indivíduos, número esse similar aos chimpanzés hoje existentes, espécie essa considerada em alto risco de extinção. Isso demonstra que não temos nada de especial. Se não tivéssemos a sorte de ter sobrevivido a essa catástrofe, poderia haver uma outra espécie de hominínio predominando na Terra hoje, bem como poderia não haver nenhuma.
Mas por que o homem moderno saiu retumbantemente da África há cerca de 50 mil anos, tendo colonizado rapidamente todo o planeta? Os vestígios arqueológicos não deixam dúvidas quanto a isso. Entre 70 e 50 mil anos atrás, na África, ocorreu uma mudança abrupta no cérebro dos sapiens o que levou à uma explosão de sua criatividade, incluindo a tecnológica. Esse episódio é denominado a Explosão Criativa do Paleolítico Superior. Foi a partir desse episódio que começamos também a produzir e manipular símbolos. Passamos a atribuir significado a quase tudo em nossa volta, incluindo aí uma significação para a própria vida. Foi a partir daí que nos tornamos os seres existenciais e infelizes que somos.
Quais os indicadores arqueológicos desse episódio? Primeiramente o número de ferramentas de pedra lascada saltou de 20 para 100. Pela primeira vez, começou-se a sepultar os mortos de forma ritualística. Osso, dente e chifre passaram a ser usados como matéria prima para a fabricação de adornos e utensílios. Surgiram as primeiras manifestações artísticas, tais como, a escultura e a pintura parietal. Tanto a primeira quanto a segunda têm, de saída, forte viés xamanístico, indicando, portanto, que o sentimento de religiosidade também fez parte do pacote.

Pinturas na caverna de Chauvet, sul da França, datadas entre 35 mil e 40 mil anos atrás
Alguns autores não aceitam esse modelo. Para eles, como tudo mais, a capacidade de expressão simbólica também evoluiu de forma gradual e lenta, podendo ser encontrada também entre as espécies arcaicas. Por exemplo, foram encontrados recentemente na Espanha grafismos rupestres datados, em princípio, em 65 mil anos. Como nessa época o Homo sapiens ainda não estava presente na Europa, esses autores têm atribuído aos neandertais esses grafismos.
Como todo o resto da vida, nossa evolução se baseou em processos muito simples desvendados pela primeira vez por Charles Darwin, ainda no século XIX. Sua grande sacada foi o mecanismo da seleção natural agindo sobre a variabilidade existente em qualquer população de seres vivos: os mais aptos sobrevivem mais e deixam um maior número de cópias de seu DNA para as gerações futuras. Com o desenvolvimento da genética no século 20, ficou claro que a combinação entre mutações aleatórias no DNA e seleção natural é a receita para a geração de novas linhagens evolutivas. A grande diversidade de espécies existentes é resultado desse algoritmo simples. Portanto, evolução é apenas descendência com modificação. Assim, a complexidade não necessariamente é premiada pela evolução. Cabe lembrar que 90% dos seres vivos do planeta são constituídos por micro-organismos. A maior evidência de que a evolução não é guiada ou se constitui num exemplo de design inteligente é que 99% das espécies que já existiram na Terra estão extintas. Como visto acima, nós também quase fizemos parte desse grupo. Na evolução, extinção é a regra. Sobrevivência, exceção.
*Walter Neves é arqueólogo, bioantropólogo, responsável pelos estudos da Luzia, fóssil mais antigo das Américas. Criador do Laboratório de Estudos Ecológicos e Evolutivos Humanos da USP (LEEEH), atualmente está vinculado ao Instituto de Estudos avançados da USP. É fundador do grupo Cientistas Engajados.
**Victor de Oliveira é graduando do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP e aluno no Instituto de Estudos avançados da USP
adorei o texto, realmente me fez parar para refletir !
Reportagem muito elucidativa, mas não explica por que, logo após aquele terrível incêndio outros (cientistas?) resolveram discutir a origem de Luzia. Será porque o crânio está parcialmente destruído? Há muito o que explicar aos interessados (leigos, como eu) sobre essa nova hipótese que está sendo divulgada na mídia.
Leitora, o tema do artigo escrito pelo bioantropólogo Walter Neves nada tem a ver com isso. A discussão sobre as características do povo de Luzia em nada altera o caminho que, de maneira geral, a humanidade percorreu.