Em 1944 – portanto, no final do primeiro governo Getúlio – o diretor da Casa de Rui Barbosa, Américo Jacobina Lacombe, convidou Astrojildo Pereira para organizar e prefaciar o primeiro tomo do 11º volume das Obras Completas de Rui Barbosa.
Astrojildo, então, escreveu um de seus melhores ensaios, infelizmente pouco conhecido, mas indispensável ao conhecimento do Brasil. Por esta razão, decidimos publicá-lo. O texto foi retirado inteiramente da edição das Obras Completas, publicadas pela Casa de Rui Barbosa.
As Obras foram (e são) um imenso empreendimento, decidido em 1941 pelo presidente Vargas (v. Decreto-lei nº 3668/1941), que chegaria à publicação de 137 tomos, com a copiosa contribuição de Rui em vários campos e atividades.
Pode parecer estranho, nos dias de hoje, que Astrojildo – um dos fundadores, em 1922, do Partido Comunista, seu primeiro secretário geral, e, inclusive, eleito em 1928 para o Comitê Executivo da Internacional Comunista – tenha sido convidado (e ainda durante o Estado Novo) para essa missão.
Porém, a época de Getúlio não era esse festival de burrice que hoje está no governo de nosso país.
Pelo contrário, foi um período que, em todos os campos, inclusive na luta política, houve vida inteligente – e se desenvolvendo.
Astrojildo era um homem respeitado até mesmo por intelectuais conservadores – seus ensaios sobre a obra de Machado de Assis (especialmente, “Machado de Assis, romancista do Segundo Reinado”) marcaram uma época e um terreno dentro de nossa crítica literária.
Lembro-me bem do respeito que meu pai tinha por ele. Os dois conviveram durante algum tempo, no jornal “Imprensa Popular”.
Era também uma diferença com meu avô materno, que fora integrante da ala “obreirista” do Partido – e, como em geral acontecia com os remanescentes dessa ala, Astrojildo não era levado em justa conta.
No que estavam, evidentemente, errados.
Astrojildo foi, além disso, desde jovem, uma personalidade importante na vida literária carioca – quase desde que veio de sua cidade, Rio Bonito.
Na década de 60 do século passado, todos com algum interesse por literatura, sabiam que Euclides da Cunha escrevera, sobre a visita de Astrojildo a Machado de Assis, em 1908, um artigo famoso:
“Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o triste desenlace da sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dava o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregava nos braços carinhosos, hoje nobilíssimas mães de famílias – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados nos álbuns caprichosos. As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a palidez completa no recinto onde a saudade glorificava uma existência, além da morte.
“No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranquilos.
“E compreendia-se desde logo a antilogia de corações tão ao parecer tranquilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incompatível e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor. Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se em pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbravam em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo de sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir, e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranquila e soberana.
“E gentilíssimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heroico na morte…
“Desapontamento. Mas aquela placidez augusta despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Octavio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu as outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas –, que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos. Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional.
“Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade inteira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade de uma existência complexa – quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem 40 anos de literatura gloriosa…
“Neste momento, precisamente ao anunciar-se esse juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada.
“Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 ou 18 anos, no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia por sua vez ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isso, ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo, tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa ideia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograva vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se lhe não era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas de seu estado.
“E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre, beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu.
“À porta, José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho.
“Mas deve ficar anônimo. Qualquer que seja o destino desta criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra.
“Ele saiu – e houve na sala, há pouco invadida de desalentos, uma transfiguração.
“No fastígio de certos estados morais concretizam-se às vezes as maiores idealizações.
“Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade…”
(Euclides da Cunha, A última visita,
Jornal do Commercio, 30 de setembro de 1908).
Trinta anos depois, em 1938, a maior biógrafa de Machado, Lúcia Miguel-Pereira, identificaria o então jovem: Astrojildo Pereira.
Os anos passaram.
Em 1964, idoso e doente, a ditadura o prendeu por três meses, em condições que agravaram a sua saúde – e sob protestos gerais da intelectualidade. Por exemplo:
“A prisão de Astrojildo Pereira ocorreu a 9 de outubro de 1964, quando o escritor se apresentou espontaneamente para depor em um IPM, tendo sido conduzido para o quartel do 3º Batalhão de Polícia Militar.
“Permaneceu incomunicável durante 34 dias.
“A 11 de novembro foi-lhe concedido o primeiro habeas corpus, pelo Supremo Tribunal Militar, sob a alegação de falta de provas.
“Entretanto o escritor continuou preso, não sendo cumprida a decisão judicial.
“A 26 de novembro, o STM deu um prazo de 24 horas para que Astrojildo Pereira fosse libertado.
“Nesse ínterim, por motivos de uma crise cardíaca, Astrojildo ainda preso, foi conduzido para um Hospital Militar, onde voltou a ficar incomunicável por duas semanas.
“Houve em seguida a concessão de outro habeas corpus, sem que, nem por isso, houvesse a libertação consequente e natural. (Aqui vale esclarecer, também, que as medidas judiciais foram concedidas por unanimidade de votos).
“Mas finalmente, na primeira sessão de 1965, o egrégio Supremo Tribunal Militar resolveu libertá-lo, enviando a decisão para as autoridades competentes.
“Astrojildo tem 74 anos de idade, e durante o período de internamento, 84 dias, sofreu quatro crises cardíacas.
“Trata-se de excelente ensaísta, crítico literário da melhor qualidade, dos maiores conhecedores da obra de Machado de Assis, que conheceu pessoalmente e do qual faz inclusive uma interpretação sociológica, domina vários idiomas e, também, a literatura dos países cuja língua conhece e, sobre ser um fiel intérprete da doutrina marxista, é um dos personagens do meio cultural brasileiro mais humanos que conhecemos” (editorial da revista Leitura, cit. por J. R. Guedes de Oliveira, “Jildo” – 50 anos de ausência).
Não havia – nunca houve – acusação contra Astrojildo.
Alguns meses depois, ele faleceu.
O ENSAIO
O tomo da obra de Rui Barbosa que coube a Astrojildo Pereira prefaciar era, provavelmente, o mais adequado ao seu talento: tinha como conteúdo o parecer de Rui, quando deputado do Império, em 1884, quanto à Lei dos Sexagenários – na verdade, algo muito além disso, ao estabelecer um limite ao direito de propriedade; o que provocava o ódio dos escravagistas era que, no projeto de Rui e do gabinete liderado pelo senador Dantas, os sexagenários eram libertados sem nenhuma compensação ao senhor de escravos.
Era estabelecido, então, um princípio que, se aprovado pelo Parlamento, teria como consequência a emancipação total dos escravos (daí o título do parecer, quando Rui, através da Câmara, o publicou, no mesmo ano de 1884: EMANCIPAÇÃO DOS ESCRAVOS (v. ao lado).
A questão da propriedade – e do direito à propriedade – é, então, o tema decisivo de Rui nesse parecer.
Não se contentando com afirmações genéricas ou supostamente de princípio, ele examina uma por uma as alegações escravagistas.
Rui nota, por exemplo, que os representantes dos senhores de escravos, assacando a acusação de “comunismo” contra o seu projeto de 1884, levantavam a Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, como exemplo de respeito à propriedade – pois o filho ou filha de uma escrava, diziam eles, é um ser apenas virtual, uma possibilidade, daí a lei do Visconde do Rio Branco respeitar o direito de propriedade sobre os seres reais, isto é, sobre os escravos.
O grande baiano refutou a alegação, lembrando que o próprio Visconde do Rio Branco, na época da Lei do Ventre Livre, fora tachado de “comunista”. E refrescou a memória da Câmara dos Deputados, citando o que disseram os escravagistas durante a votação de 1871.
Por exemplo, um dos mais esclarecidos (não há, aqui, ironia), Alencar Araripe, disse, então:
“A decretação da liberdade do ventre, sem prévia indenização, viola a propriedade, é evidente; porquanto contraria o princípio de nossas leis civis, consagrado nesta mui conhecida fórmula: partus sequitur ventrem. Em consequência deste princípio, o filho da escrava é também escravo, e pertence ao dono desta. Logo, o proprietário do fruto procedente do ventre servil não pode ser privado de sua propriedade sem prévia indenização, conforme o preceito constitucional. Logo, decretar a liberdade do indivíduo nascido de ventre escravo, sem indenização, é manifesto esbulho do direito de propriedade, e constitui ofensa da nossa Constituição política”.
A argumentação de Rui vai direto ao ponto: a liberdade do escravo é uma restituição de um direito roubado, de um direito desrespeitado brutalmente. Não é o senhor que tem seu direito negado pela libertação do escravo. É o escravo que teve o seu direito à liberdade desrespeitado. Emancipar o escravo é apenas restituir a ele esse direito, do qual foi despojado.
Avesso, completamente, ao fetichismo jurídico, que vê as leis, até mesmo as mais circunstanciais, como princípio e fim de tudo, Rui afirma que existe algo acima das leis e anterior às leis.
Pois, qual o fundamento, exceto algumas leis, para a escravidão?
Nenhum.
Havia apenas uma instituição meramente legal da escravidão.
Por quê?
Porque a liberdade é, necessariamente, anterior a qualquer lei. Nas suas palavras:
“Pode-se dizer que uma só, dentre todas as propriedades existentes, ou possíveis, é anterior e superior à lei, independente dela e inacessível à sua soberania: é a propriedade do homem sobre si mesmo, a propriedade por excelência, propriedade sobre todas santa”.
Esse não é o único aspecto abordado por Rui. Mas deixemos ao leitor o prazer e o julgamento de sua lógica, de seu humanismo, de seu talento literário e político.
O parecer de Rui foi escrito, como ressalta Astrojildo Pereira, em 19 dias – o que é uma façanha titânica.
Sobre ele, escreveu Nelson Werneck Sodré:
“Não há talvez em toda a literatura sobre a campanha abolicionista estudo tão profundo e tão circunstanciado como o parecer de Rui Barbosa. Com a sua capacidade de captar as razões, de alinhá-las, num encadeamento cerrado, Rui mostra todos os aspectos da questão do trabalho escravo, analisando detalhadamente cada um deles. Na fase em que o problema, colocado no campo partidário, motivaria o parecer de Rui Barbosa, aumentavam as resistências a todos os passos no sentido de concretizar, de uma forma ou de outra, com indenização, sem indenização, depressa ou com prazo marcado, a abolição do trabalho escravo. Rui foi derrotado em seus propósitos, mas a sua contribuição continua a ser das mais importantes fontes para o estudo do problema. Um lustro depois, a Abolição seria consumada, e a República viria em seguida” (cf. Nelson Werneck Sodré, O que se deve ler para conhecer o Brasil, 3ª ed., Civilização Brasileira, 1967, pp. 175-176; cf., também, nosso texto A formação do abolicionista Rui Barbosa).
Vejamos, então, o ensaio de Astrojildo Pereira sobre o parecer de Rui Barbosa. Não fizemos qualquer edição do texto, exceto, seguindo o próprio Astrojildo, algumas atualizações ortográficas.
C.L.
ASTROJILDO PEREIRA
Prefácio ao Vol 11, T. 1, das Obras Completas de Rui Barbosa
Como processo histórico, a luta contra a escravidão dos negros africanos, entre nós, pode-se dizer que teve o seu ponto de partida no dia mesmo em que aportou às nossas praias o primeiro navio negreiro vindo das costas da África. Mas o seu reconhecimento em termos legais só se verificou em 1831, quando a lei dos senhores, condenando o tráfico, admitiu, pela primeira vez, o princípio da abolição do trabalho escravo. E ainda assim parcialmente e de muito má vontade, ficando a lei no papel, sem aplicação efetiva, durante vinte anos e mais, pois mesmo depois de 1850, com a lei Eusébio em pleno vigor, o contrabando não cessara de todo, e milhares de africanos foram introduzidos fraudulentamente nas costas brasileiras.
A lei de 1871, que veio a chamar-se do ventre livre, trazia no seu bojo as melhores intenções, e significava, com efeito, novo e importante avanço no caminho da liquidação do trabalho servil. Todavia, também ela deixou de corresponder ao demasiado otimismo daqueles que tudo esperavam da sua execução1. É que os dados do problema caminhavam muito mais depressa do que se podia prever no momento da elaboração da lei, e assim aconteceu que as soluções consignadas no seu texto dentro em breve se patenteavam inadequadas e insuficientes.
A essas duas fases sucedeu uma terceira, cujo início Joaquim Nabuco datou de 1879, precisamente de 5 de março de 1879, dia em que o deputado baiano Jerônimo Sodré ergueu, no parlamento, o primeiro brado de abolição imediata e sem condições. Desde então até 1888, a agitação abolicionista desenvolveu-se num crescendo avassalador, dentro e fora do parlamento, nos conselhos de governo e nos comícios de rua, na imprensa, na ação dos clubes e dos grupos mais decididos de agitadores, e também nas fazendas e senzalas, pela fuga ora espontânea ora organizada de milhares de escravos… Mas os governos, representantes do escravismo, e eles próprios constituídos, em sua maioria, de senhores de escravos, ou se faziam de surdos ao clamor crescente ou se recusavam e se opunham a novas reformas legislativas. Saraiva, absorvido pela reforma eleitoral, durante o seu primeiro gabinete, não queria saber de mais nada. Martinho Campos, liberal escravocrata confesso, apoiado não pela maioria liberal, mas por uma coligação liberal-conservadora de escravistas cem por cento, procurava empalmar o problema com epigramas e sarcasmos parlamentares, que ele macaqueava dos modelos ingleses em moda. Paranaguá, na apresentação do gabinete de 3 de julho de 82, apenas tocou no assunto, muito timidamente, declarando que o seu governo favoreceria tal ou qual iniciativa que, “sem quebra do respeito à propriedade”, pudesse contribuir para a melhor execução da “sábia lei de 28 de setembro”. Lafayette, chamado imprevistamente ao poder, em maio de 83, fez tudo quanto lhe era possível fazer no sentido de ladear a questão, e com isso comprometeu ainda mais a sua reputação já comprometida de ex-republicano em penitência.
A Lafayette sucedeu Sousa Dantas – e a este, finalmente, caberia enfrentar o problema sem tergiversação, embora buscando para ele uma solução em termos ainda moderadas, a cujo remate se chegasse gradativamente, com a suave colaboração do tempo. Organizado o gabinete a 6 de junho de 84, três dias depois Sousa Dantas apresentava à Câmara dos Deputados o seu programa de governo, e nele salientava, como ponto culminante, o tópico relativo à questão do elemento servil. Com absoluta clareza e não menor firmeza, assim se pronunciava o chefe do novo ministério:
“Chegamos, Sr. Presidente, a uma quadra em que o governo carece intervir com a maior seriedade na solução progressiva deste problema, trazendo-o francamente para o seio do parlamento, a quem compete dirigir-lhe a solução. Neste assunto nem retroceder, nem parar, nem precipitar.
“É pois especial propósito do governo caminhar nesta questão, não somente como satisfação a sentimentos generosos e aspirações humanitárias, mas ainda como homenagem aos direitos respeitáveis da propriedade, que ela envolve, e aos maiores interesses do país, dependentes da fortuna agrícola, que, entre nós, infelizmente, se acha até agora ligada pelas relações mais íntimas com essa instituição anômala.
“É dever imperioso do governo, auxiliado pelo poder legislativo, fixar a linha até onde a prudência nos permite, e a civilização nos impõe chegar: sendo que assim se habilitará a coibir desregramentos e excessos que comprometem a solução do problema, em vez de adiantá-la”.2
Linguagem clara e firme, sem dúvida, mas ao mesmo tempo muito cautelosa; revelando intrepidez e disposição para a luta, mas sem provocar os adversários, antes, poder-se-ia dizer, lhes estendendo mãos conciliadoras.
Todavia, a declaração ministerial, que tamanho entusiasmo suscitou entre os abolicionistas, não só não conseguiu acalmar os escravistas, como os exacerbou mais ainda, e a controvérsia se intensificou, dali em diante, entre abolicionistas e escravistas. Estes últimos mobilizaram todas as suas forças parlamentares e extraparlamentares contra o gabinete Dantas. O Centro da Lavoura e do Comércio, reduto principal dos senhores de escravos, poderosamente apoiado pela Associação Comercial, multiplicou a sua atividade junto aos fazendeiros, por intermédio dos Clubes da Lavoura, insuflando os ânimos contra o que chamavam, textualmente, de “movimento anárquico, ajudado pela loucura do governo e incitado pelos caprichos do Imperador’’. A imprensa reacionária não poupava os adjetivos nem hesitava diante de imputações fraudulentas ou caluniosas. E foi assim, em meio de violento rodopio de interesses e paixões, que o projeto governamental, após consulta ao Conselho de Estado, foi submetido à consideração da Câmara dos Deputados, em sessão de 15 de julho, pelo deputado Rodolfo Dantas, filho do presidente do ministério3. Enviado o projeto às comissões de justiça e orçamento, a oposição, em manobra lateral, levou a Câmara a pronunciar-se numa questão de confiança, alcançando então o governo apenas 55 votos contra 52 oposicionistas. Os resultados dessa escaramuça não podiam ser de bom augúrio: aquela minguada maioria, sem base partidária, pois em ambos os lados havia liberais e conservadores, não apresentava nenhuma condição de solidez, que oferecesse ao governo o apoio seguro de que ele necessitava para realizar a reforma constante do seu programa. A oposição compreendeu logo as vantagens que poderia tirar de semelhante situação, e daí as manobras efetuadas com o fito de arrastar o gabinete a uma batalha prematura, antes do projeto voltar a plenário. Foi justamente o que se verificou na sessão de 28 de julho, quando a oposição, forçando um voto de confiança, derrotou o governo pela diferença de 7 votos.4 Na alternativa de se demitir ou de apelar para o eleitorado, optou Sousa Dantas por este último alvitre. O Imperador concordou com a dissolução da Câmara, embora o Conselho de Estado, ouvido no caso, se manifestasse por maioria contrário à medida proposta pelo chefe do governo. A 30 de julho Dantas comunicou à Câmara a decisão tomada pelo ministério, informando que o Imperador a aprovara mediante a condição de se proceder à dissolução somente depois de votada a lei de meios.
Em tal conjuntura, o trabalho das comissões reunidas de orçamento e justiça, a cujo estudo prévio fora entregue o projeto de 15 de julho, já não aproveitaria mais à Câmara em vias de extinção. Mas o parecer, que Rui Barbosa vinha redigindo em nome das duas comissões, estava quase terminado: quatro dias mais tarde, a 4 de agosto, punha-lhe o relator o ponto final, e logo foi ele dado à publicidade, juntamente com o voto em separado de um dos membros da comissão de orçamento, o deputado escravista Sousa Carvalho. Em breves palavras preliminares, o próprio Rui Barbosa justificava a necessidade da sua publicação, considerando sobretudo a conveniência de esclarecer a opinião nacional, chamada a proferir, em próximas eleições, “a sua sentença entre as tendências emancipadoras do projeto e o voto da maioria da Câmara contra cuja decisão o gabinete apelava para as urnas”. Bastava, porém, manuseá-lo, mesmo por alto, para de pronto se perceber que havia ali alguma coisa mais que um simples parecer de ocasião: tratava-se, na verdade, de um grande documento parlamentar, de um estudo exaustivo da questão em apreço, destinado a perdurar como um livro capital na história política e social do Brasil.
***
Desde os 19 anos de idade, ainda no segundo ano de direito, em São Paulo, já Rui Barbosa se empenhava, pela palavra e pela ação, em favor da raça negra escravizada. Em 1868, propunha ele a uma loja maçônica daquela cidade, da qual era orador, que os seus membros assumissem a obrigação de libertar o ventre das escravas que possuíssem, e que essa obrigação ficasse estabelecida como exigência indispensável à aceitação de novos associados, no futuro. A proposta do moço estudante foi aceita e aprovada, mas contra a opinião e o voto do venerável da loja, o que levou este último a renunciar o seu posto – e chamava-se ele nada menos que Antônio Carlos, e era professor de Rui na faculdade. Ainda em São Paulo, no ano seguinte, 1869, pronunciava o jovem estudante a sua primeira conferência abolicionista, em debate público – verdadeira petulância de estudante, diria ele próprio, mais tarde, ao rememorar a façanha. Também pela imprensa, principalmente pelas colunas do Radical Paulistano, batia-se com igual pugnacidade em prol da emancipação dos escravos.
De volta à Bahia, advogado, jornalista, político militante, não perdia oportunidade de pregar e defender as suas idéias acêrca do problema da escravidão. Em 1871, quando se discutia o projeto de lei Rio Branco, manifestava-se Rui não só a favor do projeto, mas a favor de reforma ainda mais ampla. Em 1874, falando num comício popular, acoimava de insuficiente a lei de 71 e proclamava a necessidade de medidas mais radicais. Em 1875, publicava no Diário da Bahia, de que era redator, um folhetim – “Pelos Escravos”, que se tornou famoso. Em 1881, ao comemorar-se na Bahia o decenário da morte de Castro Alves, a 9 de julho, era Rui Barbosa escolhido para orador oficial da cerimônia, e o seu discurso colocou a comemoração numa altura digna do poeta e da causa que o nome do poeta simbolizava. No mesmo ano de 1881, ao pleitear perante o eleitorado a renovação do seu mandato de deputado geral, inscrevia no seu programa, com o devido destaque, a questão da transformação do trabalho livre e da extinção do elemento servil. Em 1882, por ocasião do centenário do Marquês de Pombal, convertia a sua conferência de 8 de maio em ato de pregação abolicionista. E em 1884, constituído o gabinete 6 de junho, sob a presidência do seu chefe e amigo Sousa Dantas, a Rui Barbosa caberia a tarefa principal na reforma projetada: redigir o projeto, que seria apresentado à Câmara em nome do governo, elaborar o parecer acerca do projeto, em nome das comissões de orçamento e justiça civil, e ainda, no parlamento e na imprensa, meses a fio, defender e sustentar a política antiescravista do ministério.
***
Não há a menor sombra de exagero em se qualificar de prodigioso o trabalho de elaboração e redação deste parecer: são quase 200 páginas de texto escritas do próprio punho no curtíssimo prazo de 19 dias, e texto abundantemente documentado, com rigoroso aparato bibliográfico a identificar as múltiplas fontes, nacionais e estrangeiras, onde o autor colheu os elementos necessários ao seu estudo e à sua argumentação.
Por sua mesma natureza, o parecer deveria limitar-se aos aspectos da questão abrangidos pelos dispositivos do projeto: e o relator não se desviou nem foi além do terreno assim delimitado. Mas aí bateu e revolveu tudo, palmo a palmo, polegada a polegada, com o método inexorável de análise, que ele sabia utilizar como ninguém, sem deixar de pé coisa alguma que acaso pudesse aproveitar aos adversários e oponentes.
Por exemplo, os sofismas do escravismo, repetidos e renovados, durante mais de meio século, pelas vozes interessadas na manutenção do trabalho servil: Rui Barbosa, ao mesmo tempo que os historia, esfarela-os, um a um, através o crivo de uma crítica tanto mais severa quanto mais objetiva e afiançada.
Ninguém defendia abertamente o regime da escravidão. Em princípio – sim, “em princípio” – todos tinham sido favoráveis à suspensão do tráfico; todos eram favoráveis à emancipação; e todos seriam, por fim, favoráveis à abolição. A divergência, pois divergência havia, era só na maneira ocasional de encarar o problema: tudo questão de “tempo”, de ‘oportunidade ’, de “conveniência”, de “prudência”, de “gradação”; em suma, tudo questão de pôr em primeiro lugar os “superiores interesses” do país. De tal sorte, a cada medida, que se aventasse em favor dos escravos, correspondiam dezenas de sofismas sob a forma restritiva de um mas, de um porém, de um todavia, de um contudo, de um no-entanto. O deputado Cunha Matos dizia, em 1827: “Por modo nenhum me proponho defender a justiça e a eterna conveniência do comércio de escravos para o Império”; mas o tratado anglo-brasileiro para a supressão desse comércio lhe parecia “prematuro, extemporâneo, enormemente daninho ao comércio nacional, arruinador da agricultura. aniquilador da navegação, golpe cruel nas rendas do Estado”. A lei contra o tráfico, promulgada para dar cumprimento ao referido tratado, passou em 1831; pois ainda em 1848, dezessete anos decorridos, Bernardo de Vasconcelos – como que a proclamar a legitimidade da sua não execução – sustentava que “a agricultura sofreria muito, se cessasse a introdução de braços africanos”. Baseado em algarismos insofismáveis, Rui mostrou que a produção agrícola do país, durante a primeira década que se seguiu à aplicação rigorosa da lei de 1850, não só não acusou o menor sinal de ruína, conforme prognosticavam as cassandras do escravismo, como ainda aumentou até duplicar : 55.000:000$ em 1849/1850 e 112.000:000$ dez anos mais tarde.
Tremenda seria a oposição, em 1871, ao projeto Rio Branco. A história dessa oposição, escreve Rui, “encerra um tesouro inexaurível de preciosas lições”: e ele mergulha a fundo na mina, explorando-a com mãos de mineiro calejado no ofício. Todos os grandes opositores de então – Andrade Figueira, Capanema, Gama Cerqueira, Paulino de Sousa, José de Alencar, Perdigão Malheiro, Barros Cobra, Pereira da Silva, Vila da Barra, Nébias, Cruz Machado – são de novo chamados ao debate, e cada qual deles procurava avantajar-se aos demais na previsão das piores calamidades públicas e privadas, se o projeto chegasse a converter-se em lei. Converteu-se em lei o projeto e as previsões falharam de todo em todo. Rui pergunta, treze anos depois:
“Onde está, entretanto, a desorganização social com que nos apavoravam? a paralisação do trabalho agrícola? a insurreição geral? a destruição da lavoura? a bancarrota financeira?”
Encontramos a resposta num quadro estatístico minucioso, que ele nos desdobra diante dos olhos, e no qual verificamos que as rendas do Estado – índice do desenvolvimento pacífico e progressivo do país – aumentaram de 29% nos doze anos subsequentes à promulgação da lei promovida pelo Visconde do Rio Branco.
Mas os sofismas se multiplicavam e renasciam, sempre iguais a si mesmos, cada vez que se agitava o problema da emancipação. O deputado Nébias dissera em 1871, e outros o repetiam em 1884, que os escravos viviam muito bem, tratados com bondade pelos senhores, e nada teriam a ganhar com uma emancipação ou libertação que os equiparasse ao jornaleiro europeu, ao proletário das indústrias, ao operário agrícola de velhos países; Rui liquida o sofisma com o testemunho de Darwin, o qual, no seu diário de viagem pelo Brasil, ao registrar as impressões que lhe causara o espetáculo do cativeiro, rogava a Deus a mercê de não voltar jamais a visitar um país de escravos. José de Alencar fizera alarde dos seus sentimentos humanitários e fraternais, quando reclamava, como condição prévia para a redenção dos “irmãos escravos”, um plano de instrução e educação que os libertasse primeiramente “da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade”; Rui destrói o sofisma, retomado pelos escravistas de 1884, apoiando-se na argumentação utilizada por Tocqueville, 46 anos antes, no parlamento francês, contra subterfúgios iguais aos de Alencar. Outro sofisma, corrente em 1871 e repisado em 1884, consistia em exigir que a reforma fosse precedida de vasto inquérito à opinião nacional, de estudos cabais, minuciosos e completos – de “estudos, estudos sem fim”, exclamaria ironicamente o deputado Araújo Lima; Rui refuta a velha evasiva com a opinião sumária e justa de outro deputado, A. Araripe, quando ponderava que aqueles que não admitiam a emancipação sem tais condições prévias, em verdade não a queriam de modo algum, e ainda com a opinião autorizada de Jequitinhonha, quando, em 1867, no Conselho de Estado, rebatera com vantagem semelhantes alegações dilatórias.
Muitos desses sofismas e maus augúrios aparecem, aos nossos olhos de hoje, como argumentos simplesmente pueris ou ridículos. Mas o juízo dos homens facilmente se engana e deforma sob a influência de interesses contrariados. De outro modo não poderíamos compreender o fato de eminentes personalidades se deixarem apavorar com a ideia da emancipação dos escravos, a ponto de aconselharem o governo, como fizeram o Marquês de Olinda e o Visconde de Sapucaí, em 1867, a repelir qualquer pensamento em tal sentido, pois se se deixasse perceber, por uma só palavra que fosse, a mais leve inclinação a favor do elemento servil, isso equivaleria a nada menos que “abrir a porta a milhares de desgraças”. A mentalidade dos escravistas se mostrava impermeável tanto ao raciocínio teórico, que os adversários lhes propunham, quanto à mesma lição dos fatos comprovados pelo tempo. Por isso repetiam e repisavam invariavelmente as objeções de sempre – em 1827, em 1831, em 1850, em 1871, em 1884, às vésperas de 1888… e ainda depois. Muito instrutivo, a este respeito, é verificar o que deixou dito o deputado Sousa Carvalho no voto em separado, que apresentou às comissões reunidas de justiça e orçamento, contra o projeto de 15 de julho e contra o parecer de Rui Barbosa. O próprio Rui, anos depois, recordaria o teor daquele voto adverso, resumindo-o todo em breves linhas: O Sr. Sousa Carvalho, autor do voto em separado, via no projeto de 15 de julho “o suplício da constituição, uma falta de consciência e de escrúpulo, um verdadeiro roubo, a naturalização do comunismo, a ruína geral, a situação do Egito, a bancarrota do Estado, o suicídio da nação.”
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Inimigos havia da reforma, que pretendiam resolver o problema unicamente por meio da substituição gradativa do escravo pelo colono. Preconizaram para isso a adoção de medidas tendentes a favorecer e intensificar a afluência de colonos europeus5, que seriam empregados no trabalho agrícola ao lado dos escravos. O braço livre, argumentavam, acabaria por sobrepujar e eliminar o braço escravo, e este resultado, acrescentavam logo, seria obtido suavemente, sem abalos nem prejuízos para a lavoura nacional. Rui Barbosa desmancha a trama deste novo sofisma, que resultava meramente de uma inversão dos termos da questão. A própria experiência – não só alheia, mas também nossa – evidenciava de maneira bem clara que o movimento colonizador, conforme se acentua no parecer, dependia essencialmente da renovação das condições do trabalho.
Sabe-se das tentativas que vinham sendo feitas, principalmente na província de São Paulo, para conciliar, lado a lado, o trabalho livre e o trabalho escravo. Mas tais tentativas, ou falhavam por inviáveis, demonstrando a impossibilidade prática de semelhante hibridismo, ou, quando realizadas com espírito experimental e progressista, serviam para indicar que o trabalho livre, pela natureza mesma da sua organização e das suas condições de desenvolvimento, produzia maior e melhor rendimento econômico do que o trabalho escravo. A esta conclusão teria já chegado o senador Vergueiro. na sua fazenda de Ibicaba, onde fundara, em 1847, a famosa colônia de imigrantes europeus para a cultura do café pelo sistema de parceria.6
“Dez homens livres fazem o trabalho de trinta escravos” – diria Jequitinhonha vinte anos depois da experiência de Ibicaba, e Rui cita-lhe a frase para opô-la às “vozes espectrais do passado”, que tão obstinadamente se aferravam aos preconceitos do escravismo. Algumas páginas do parecer são neste ponto consagradas ao exame de estatísticas demonstrativas do desenvolvimento econômico dos Estados Unidos, nos anos que antecederam à guerra civil, pondo-se em cotejo as cifras referentes aos estados livres do norte e aos estados escravistas do sul. Vemos aí, concretamente expostos e alinhados, os algarismos relativos aos diversos aspectos da economia de uma e outra região – valor da propriedade, produção agrária, produção industrial, capital bancário, importação e exportação, entradas aduaneiras, movimento dos meios de transporte, patentes de invenção – e todos eles comprovando o mesmo fato: a impressionante inferioridade dos estados do sul, onde predominava o regime econômico baseado na exploração do braço escravo. Mas a influência amesquinhadora da escravidão não se fazia sentir somente nos domínios da economia. O confronto dos dados concernentes ao ensino e às escolas, às bibliotecas públicas, ao número e à tiragem dos jornais, à renda dos correios, etc., confirmavam e definiam o contraste.
Por esta altura do parecer, em breve passagem a propósito da guerra de secessão provocada pelos estados do Sul, refere-se o relator a certo aspecto da questão, que hoje nos parece do maior interesse, com certeza muito maior do que teria parecido aos leitores de então. Escreve Rui Barbosa aí, textualmente, que a “rebelião do sul não teve outro intuito, senão organizar um estado com o cativeiro por base e por política a dilatação territorial dele”, e que os seus chefes “alardeavam despejadamente a glória de iniciarem no mundo o primeiro governo estribado na grande verdade física, filosófica e moral de que a sujeição civil às raças superiores é a condição natural e normal do negro”. Podemos hoje acrescentar que a derrota dos escravistas confederados foi também a derrota dos seus desígnios políticos. Mas evidentemente não é por acaso que assim encontramos, justo entre aqueles ferrenhos partidários da escravidão do homem pelo homem, alguns típicos precursores dos hodiernos partidários das teorias racistas e sua consequente política do espaço vital.
Noutra parte do parecer, volta Rui Barbosa a tratar do problema da substituição do trabalho escravo pelo trabalho livre, examinando-o agora sob o ângulo das providências aventadas no projeto. Ele não acredita que a reforma se pudesse levar a cabo sem comoções nem dissabores, pois isso é contingência de todas as reformas; mas tampouco acredita nas terríficas previsões ditadas por um pessimismo quase sempre mais interesseiro do que perspicaz. Acredita, aí sim, nas lições da experiência, que a nossa história e a história de outros paises ofereciam à meditação dos estudiosos. Lembra de novo, então, o que se passou no Brasil depois da supressão do tráfico e da lei do ventre livre: ao invés da perdição total, da decadência irremediável, da ruína de tudo e de todos, o país marchara para a frente, melhorando de ano para ano os negócios públicos e privados. E de novo passa em revista os sucessos verificados em diversos países e ilhas da América Central e Setentrional, após a emancipação dos seus escravos. Muitas vezes as condições desses países e ilhas – e neste caso se incluíam sobretudo as colônias inglesas, francesas e espanholas – diferiam sensivelmente das condições brasileiras, e neles o problema do trabalho se complicava com outros de natureza política e social, desconhecidos ou atenuados entre nós. Os distúrbios e transtornos, que ali sucederam à libertação dos escravos, não podiam ser imputados ao ato da libertação em si mesmo, pois derivavam antes de todo um conjunto específico de complicações. Sendo que a maior parte dessas complicações decorria logicamente de velhos e novos erros cometidos pelos grandes proprietários e pelas autoridades governamentais. Fosse como fosse, a regra geral, admitida pelos observadores mais competentes, aparecia nos índices favoráveis da produção e da riqueza, que se seguiam às primeiras dificuldades, concorrendo para isso, como fator primordial, a readaptação dos escravos libertos às novas condições de trabalho.
Nos Estados Unidos, ou melhor, nas suas regiões meridionais, onde perduravam os ódios exacerbados pela guerra civil, viu-se a raça libertada sujeita a tenaz perseguição, que acarretou a emigração em massa de milhões de negros para os estados do Norte. Nos lugares, porém, onde puderam trabalhar em paz, como homens livres, os antigos escravos não se mostravam menos aptos ou menos produtivos do que os trabalhadores de qualquer outra raça ou procedência. Cita-se no parecer, a este respeito, a opinião exarada pelo comissário do governo americano, general Samuel Thomas. em 1365: “Não há, em parte nenhuma, um corpo de cidadãos mais enérgico e industrioso”.
As condições do trabalho é que em verdade explicavam tudo, evidenciando, por toda parte, e em suas mais variadas feições, a superioridade do trabalho livre sobre o trabalho escravo. E o trabalhador negro liberto revelava-se tão bom, tão capaz, tão produtivo quanto o trabalhador livre, desde que o colocassem nas mesmas condições de trabalho deste último. Sua inferioridade, quando escravo, não provinha dele próprio, de tais ou quais estigmas de ordem biológica ou racial, mas sim da sua condição de escravo.
A transformação das condições do trabalho – eis, pois, bem compreensível, a base ou o ponto de partida para a reforma projetada. Certamente, a transição para o regime de trabalho livre se operaria em qualquer caso com mais ou menos dificuldades; porém, a gradação destas dificuldades seria sem dúvida alguma determinada pelas medidas que em tempo útil se tomassem – ou não se tomassem – no sentido de favorecer o mais adequadamente possível aquela transformação. Esse, e não outro, o objetivo do governo Sousa Dantas, quando apresentou o projeto de 15 de julho, que Rui Barbosa justificou e defendeu com admirável clarividência e energia, sem sair dos limites do bom senso, da prudência e da moderação; sem nenhum apelo a “fantasias radicais”, como ele próprio diria, no texto do parecer, e era pura verdade.
Os escravistas não compreendiam as coisas assim. Seus olhos nada mais enxergavam, neste assunto, além dos interesses privados do seu grupo, e daí, a oposição cega e feroz7 que ofereceram ao projeto, estrangulando-o no nascedouro e por fim derrubando o gabinete Sousa Dantas. A Rui, como não lhe podiam tirar mais, tiraram a cadeira de deputado.
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O voto em separado de Sousa Carvalho apresenta-nos uma súmula muito significativa da cegueira e da ferocidade com que a oposição escravista combateu o projeto. Sua publicação junto ao parecer de Rui Barbosa, permitindo cotejo imediato, ajuda-nos a medir até que ponto pode levar a paixão política insuflada por interesses contrariados. A acreditar no tremebundo defensor do regime da escravidão, o projeto, se convertido em lei, viria inevitavelmente “perturbar o trabalho”… “estremecer a ordem pública”… “ferir o interesse nacional”… “abater e arruinar as classes abastadas e ordeiras do pais”… pois o que se tinha em vista era a… “espoliação violenta e desonesta de grande número de cidadãos, especialmente da classe mais ordeira, mais útil, e para bem dizer a única de brasileiros abastados – os agricultores”. Seria, “além de injustiça, uma violência, uma desonestidade, uma covardia” – pretender responsabilizar os pobres senhores de escravos pela existência da escravidão… E é pelo menos muito curioso verificar que estes senhores de escravos, grandes fazendeiros e proprietários, se consideravam a si mesmos como sendo os elementos mais importantes das chamadas “classes laboriosas” do país – das quais excluíam, naturalmente, a massa de trabalhadores escravos.
Para Sousa Carvalho, o projeto de 15 de julho, que a nós nos parece hoje tão prudente e moderado, estava todo ele inçado de “disposições comunistas”. E comunistas eram os seus defensores. Nada menos. Comunista Sousa Dantas. Comunista Rui Barbosa.8 Mas a tremenda acusação não ficava limitada ao debate teórico dos princípios contidos no projeto. Sousa Carvalho denunciava abertamente o governo como cúmplice nas “manifestações subversivas”, que então se efetuavam no Rio de Janeiro. Lá está escrito, no seu voto, textualmente, que o projeto não passava de… “pretexto para agitação, revolução e subversão social, aproveitado por anarquistas”…; que o gabinete só pensava em… “lisonjear os anarquistas e gritadores das ruas”… e por isso favorecia as… “passeatas incendiárias e demonstrações estrondosas”… Mais ainda: permitia-se que certa “associação comunista” promovesse… “ruidosa agitação contra uma propriedade legal, em edifícios públicos, no seio de uma escola de ensino superior”… Ora, aquelas “manifestações subversivas” eram apenas as manifestações organizadas pela Confederação Abolicionista, em cuja direção figuravam, entre outros, André Rebouças, Bittencourt Sampaio, Aristides Lobo, José do Patrocínio, José Américo dos Santos, João Clapp, etc. Quanto à “ruidosa agitação* realizada no edifício de uma escola superior, por uma “associação comunista”, outra coisa não foi senão uma festa promovida pelo Centro Abolicionista da Escola Politécnica, do qual faziam parte alguns professores que se chamavam André Rebouças, Enes de Sousa, Paulo de Frontin, Getúlio das Neves, Benjamin Constant…
Os proprietários de escravos, sentindo a ameaça que pairava sobre os seus interesses, não recuavam diante de nenhum excesso, desde que isso lhes desse ganho de causa. Diziam, no entanto, que não lutavam unicamente em defesa de interesses imediatos. Lutavam também por um princípio o princípio de propriedade. O projeto Dantas pretendia decretar a emancipação apenas dos escravos sexagenários, e esse era na verdade um objetivo bastante modesto; mas a questão – a grande questão – é que ousava propor a emancipação sem indenização. Sem indenização: eis aí negado, deliberadamente, o princípio de propriedade. Num dos muitos artigos, que publicou na imprensa, em defesa do projeto, Rui Barbosa sumariava assim a argumentação dos adversários:
“O projeto de 15 de julho é combatido pela opinião conservadora na imprensa e no parlamento, como um latrocínio aos possuidores de escravos. A tentativa do ministério de 6 de junho é uma tentativa de roubo contra os donos de uma propriedade tão legítima, quanto qualquer dos gêneros de propriedade, cujo respeito a legislação constitucional e civil do país nos afiança. Esbulhar o senhor dos cativos sexagenários seria um atentado tão odioso, como o de esbulhar o capitalista das suas apólices, o trabalhador do seu salário, o proprietário urbano dos seus prédios, o agrícola dos seus campos, o criador do seu gado. A lei não tem autoridade para alforriar, ainda mesmo os velhos e os inválidos, senão pagando. E para dar a este princípio uma expressão superior a interpretações divergentes, para pôr em alto relevo que não se tratava, por parte dos senhores, de um interesse, mas de um verdadeiro princípio, não faltou quem sugerisse ao governo, como terreno de conciliação, um acordo que assegurasse aos proprietários qualquer remuneração ligeira, mínima, imponderável no orçamento, mas que, pelo seu simples caráter de indenização, reconhecesse, sancionasse, legalizasse a propriedade servil”.9
Forçoso é reconhecer que esta reivindicação transacional, proposta sob a forma de uma indenização meramente simbólica, emprestava aos opositores do projeto uma certa aparência de convicção desinteressada, e contribuía mesmo, de certa maneira, ao reforço da posição em que se colocavam. Que o projeto negava o direito de propriedade sobre os escravos, não podia haver nenhuma dúvida, e Rui era o primeiro a afirmá-lo, não só no seu parecer como ainda nos seus artigos de jornal. Reafirmá-lo-ia, anos mais tarde, como um titulo de glória para o ministério de 6 de junho. Assim, em 1886, no discurso pronunciado na sessão celebrada em São Paulo, em homenagem a José Bonifácio, o moço, recentemente falecido:
“Com o ministério de 6 de junho amanhece no governo a idade abolicionista. Até esse tempo o abolicionismo lavrava na consciência pública: mas a propriedade servil prelevava com poderio absoluto, acautelada no mundo oficial. O senador Dantas quebrou esse encanto formidável, negando, no projeto de 15 de julho, a propriedade-escravidão. A libertação incompensada dos escravos sexagenários era em germe a emancipação gratuita de todos os escravos.
Assim também, em 1888, já depois do 13 de maio, num festival em honra do senador Dantas:
“O que imprimia caráter radical ao projeto Dantas, entre todos os outros tentames de transação, está em ser ele o único onde, proscrevendo-se a indenização, se firmava na maior transparência, com o princípio da liberdade gratuita, a negação da propriedade servil. A escravidão compreendeu-o: viu nesse ensaio libertador a célula da abolição incondicional; e, percebendo que jogava a sua sorte, envidou assomos inauditos, no delírio de um desespero descomunal, para subverter a audácia dessa iniciativa numa catástrofe exemplar”.10
Páginas inteiras do parecer são consagradas ao debate da questão: a propriedade sobre o escravo é uma verdadeira propriedade? de que natureza? em que limites? Todos os elementos históricos, jurídicos, políticos e morais, que estas perguntas envolviam, são aí submetidas a uma análise que se pode considerar definitiva. Também a malévola imputação de “comunismo” e “socialismo” – que os escravistas levantavam contra o projeto, porque o projeto, diziam eles, pretendia “violar” o princípio de propriedade – Rui a examina de frente, sem subterfúgios nem reticências, pondo a coisa nos seus devidos termos. É claro que um comunista ou um socialista não poderia concordar, então, e ainda menos hoje, com algumas das motivações de ordem teórica, por ele apresentadas. Mas isto, creio eu, vem a ser mais um argumento a seu favor e a favor da natureza, da inspiração e das intenções do projeto.
Na série de artigos que publicou durante os primeiros meses de 1885, em defesa do ministério, voltaria Rui a sustentar os seus pontos de vista, investindo com redobrado vigor contra as posições inimigas. Como é fácil de imaginar, a questão da propriedade servil aparecia no centro de toda a polêmica. As palavras seguintes, com que ele concluía um de tais artigos, fornecem-nos, ao meu ver, a melhor definição da verdadeira essência política do problema em debate:
“Confessemos, pois, que já não é mais lícito falar sem ridículo nesse direito inviolável e sagrado do proprietário servil, e estabeleçamos a questão no único terreno sensato: o dos interesses morais e econômicos do país, o da sua reputação, o da educação do seu caráter, o das conveniências da sua prosperidade”.11
Os escravistas, naturalmente, não compreendiam nada. Não queriam compreender; não podiam compreender. O interesse ferido tapava-lhes o entendimento. Rui, instruído pela experiência histórica universal, conhecia muito bem o que havia no fundo da incompreensão escravista.12 Por isso mesmo, não se deixava embalar por nenhuma quimérica ilusão: sabia que era humanamente impossível evitar a cega intransigência do adversário. Mas daí a sua própria intransigência, pois não podia haver transigência na pugna entre o ódio e a esperança:
“O princípio da indenização ficava repudiado para sempre, e rotos com êle os famosos títulos de senhorio da raça branca sobre a negra. Essa intuição iluminou em um relâmpago o futuro, e travou a pugna entre o ódio e a esperança”.13
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Em boa e lídima verdade, a pugna entre o ódio e a esperança era apenas a expressão, em termos altos de eloquência, de outra espécie de pugna, que se travava no chão duro e rasteiro da economia. Por motivos diversos, mas convergentes, que os estudiosos da nossa história bem conhecem, a seguinte situação se desenhou, em dado momento da economia brasileira: a escravidão, sobre a qual descansara até ali todo o nosso sistema de produção, já não bastava para sustentar o ritmo de desenvolvimento dessa produção. Sem necessidade de entrar em pormenores, podemos apontar alguns dados mais característicos.
Convém lembrar, desde logo, que não se tratava só da insuficiência numérica de braços escravos. O sistema de trabalho baseado no braço escravo é que não bastava mais para atender às novas condições de produção que o próprio desenvolvimento da economia nacional vinha exigindo, de ano para ano. Indicações concretas a esse respeito se encontram em mais de um depoimento contemporâneo. Eis, por exemplo, um quadro exato da situação, delineado pelo insuspeito senador Cruz Machado, em 1874:
“Não creio que haja, por ora, nas propriedades agrícolas em atividade falta de braços para o trabalho; o que nelas subsiste é a deficiência de organização regular e consideráveis desperdícios de tempo e capitais. O total da produção destes estabelecimentos está aquém da força empregada: e enquanto não fornecerem os agentes do trabalho todos os recursos, de que são suscetíveis, há manifesto desequilíbrio, que se agravaria cada vez mais à medida que fossem os trabalhadores mais numerosos”.14
Cruz Machado se referia especialmente à situação da lavoura baiana; mas a mesma coisa se passava por toda parte, com mais ou menos acuidade, quer em relação à lavoura da cana de açúcar, predominante nas províncias do nordeste, quer em relação à lavoura do café, nas províncias do centro-sul.
Assim também melhor podemos explicar o fenômeno, que se verificou aqui no centro-sul, de deslocamento do café de uma zona para outra. Na realidade, o café fugia das terras cansadas do vale do Paraíba, em busca das terras novas e melhores do oeste paulista, não só por serem aquelas cansadas e estas novas e melhores: o café buscava igualmente novos e melhores métodos de trabalho, necessários à sua expansão. É certo que junto com o café se deslocavam também grandes massas de escravos, a ponto de Nabuco poder afirmar, ainda em 1883, que a escravidão florescia apenas na província de São Paulo15; não menos certo, porém, é que surgiam ali fazendeiros menos apegados à rotina, homens novos, de mentalidade já moldada ao influxo dos modernos processos de cultura. Estes fazendeiros, pela primeira vez no Brasil, empregaram arados nas suas plantações de café, conforme revelou João Pedro Carvalho de Albuquerque, em relatório apresentado ao governo imperial, que o incumbira de proceder a um inquérito sobre a situação dos colonos europeus estabelecidos na lavoura paulista. O relatório está datado de 1870 e nele se lê o seguinte:
“Parece fora de dúvida que uma das causas de não ser próspera a lavoura é ainda o uso do antigo sistema de plantação: tanto que nos municípios, em que já se trabalha com as máquinas e instrumentos agrícolas tem-se colhido inúmeras vantagens: por exemplo, em Limeira, onde existem cerca de 40 máquinas, movidas a vapor, e um sem número de outras, que se movem por meio de água e de animais, e onde é comezinho o trabalho aratório: na grande e pequena lavoura”.16
Por motivos idênticos, colocavam-se os fazendeiros progressistas de São Paulo à cabeça do movimento colonizador. No referido relatório se registra o fato de se haverem fundado ali, de 1852 a 1857, mais de 40 colônias com cerca de 4.450 indivíduos, entre os quais 500 brasileiros, constituindo 89 famílias. Bem se compreende que enquanto durasse a escravidão no Brasil não era possível atrair a imigração em massa de colonos europeus, e as cifras o demonstraram plenamente, com o salto formidável que deram às vésperas e depois do 13 de maio de 188817; mas o essencial era começar.
O economista inglês Knowles, citado por J. F. Normano18, via na construção de estradas de ferro um fator decisivo para a abolição do trabalho servil. Mas a construção de estradas de ferro constitui sabidamente um dos índices mais seguros de desenvolvimento econômico de qualquer país. A regra não podia falhar no Brasil, e de fato não falhou, como se pode facilmente verificar, à vista dos algarismos: 1854, inauguração do 1º trecho da Mauá; 1858, inauguração do 1º trecho da Pedro II; 1864, inauguração do 1º plano inclinado no Cubatão. Em 1867, possuíamos 6 ferrovias em tráfego, com cerca de 700 quilômetros; em 1875, 22 estradas com 1.660 quilômetros em tráfego, 1.300 quilômetros em construção e mais de 6.000 quilômetros em estudos; em 1880 já se contavam 3.397 quilômetros em pleno funcionamento. Paralelamente às estradas de ferro, desenvolviam-se outros meios de transporte: rodovias, rios navegáveis, canais, aparelhamento de portos marítimos, etc.19 Comparem-se estes dados com os marcos cronológicos da luta contra a escravidão: a primeira ferrovia depois da extinção do tráfico negreiro; o impulso tomado pelas construções a partir da lei do ventre livre; os 3.400 quilômetros existentes na ocasião em que Joaquim Nabuco aparecia na Câmara dos Deputados. Tais coincidências não são obra do acaso.
Calógeras resumiu, com justo senso interpretativo, o fato dessa espécie de interdependência ou nexo histórico entre a construção de vias férreas, o movimento imigratório e a campanha abolicionista. Em muito poucas palavras ele disse tudo:
“As vias férreas somavam 513 quilômetros em 1866, 932 em 1872 e 3.397 em 1880. Crescia a imigração, e já se sentia que a mão de obra branca provaria a solução do problema servil”.20
Considerem-se ainda certos outros fatores de ordem externa. As comunicações do Brasil com o mundo se ampliavam e intensificavam. O desenvolvimento da técnica, que tamanho impulso tomava então na Europa e na América do Norte, não podia deixar de por sua vez refletir-se beneficamente sobre o desenvolvimento da economia brasileira. Os arados empregados na lavoura paulista eram na sua maioria de procedência norte-americana. Tornava-se evidente, por outro lado, que os produtos brasileiros seriam varridos do mercado mundial, a menos que se cuidasse de melhorar tecnicamente os nossos métodos de produção. Rui transcreve, no parecer, as observações feitas a propósito por um economista inglês, segundo o qual o Brasil, mantendo o regime de trabalho escravo, caro e pouco rendoso, não mais poderia competir com os países similares da América já libertos da escravidão.
Tudo isso – fatores infernos e externos que se entrelaçavam e cada vez mais ampliavam o seu raio de influência sobre as condições econômicas do pais – ia criando um ambiente novo, em que as forças produtivas nacionais se viam compelidas a buscar novas formas e novos processos de trabalho, sob pena de deperecimento. A escravidão, que teria representado um recurso inelutável, nas condições em que foi estabelecida a economia colonial, se convertera já num empecilho ao desenvolvimento ulterior daquelas forças produtivas. Um fazendeiro progressista da Bahia afirmava, em 1870, que o trabalho servil contrariava “o progresso da sociedade”21. E Sílvio Romero, em escrito datado de apenas alguns dias depois do 13 de maio de 88, dizia que tínhamos sido impelidos à libertação dos escravos — “além de motivos morais, pelo fato do escravo começar já então a ser um trambolho. uma desvantagem diante do trabalho livre”22.
Tal, em verdade, a base concreta sobre a qual se desenrolava a pugna entre o ódio escravista e a esperança abolicionista, a que Rui Barbosa aludia no seu discurso. Mas nesse mesmo discurso, referindo-se aos interesses que se obstinavam em manter ou prolongar o regime de escravidão, o orador, com inteira percepção dos fatores objetivos da campanha, chamava-os muito justamente de “interesses decrépitos”23.
Tampouco lhe escapava à percepção o fato de que interesses decrépitos produzem mentalidades decrépitas, e que a decrepitude tenta sempre impedir o avanço dos acontecimentos em disparada. Foi assim com a abolição: a decrepitude obstinada tentando barrar o caminho e os acontecimentos avançando em marcha dia a dia mais impetuosa. O projeto de 15 de julho não passou. O ministério Dantas caiu. Outros ministérios subiram, levados ao poder por mãos decrépitas metidas em luvas de transação. Mas tudo inútil. O 13 de maio acabou chegando, e chegando mais depressa do que esperaram mesmo alguns que o desejavam.
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Duas semanas antes do 13 de maio, em discurso que pronunciou na Bahia, e certo já da vitória definitiva da causa abolicionista, conforme lembra o sr. João Mangabeira no seu livro sobre Rui24, este último exortava a opinião pública do país a não aceitar a abolição como o “termo de uma aspiração satisfeita”. A abolição, no seu entender, exprimia apenas um “fato inicial”, um “ponto de partida”, o “lema de uma idade que começa”; depois dela, em consequência dela, em conexão com ela, “reforma sobre reforma”, outras reformas deviam ser reivindicadas:
… a liberdade religiosa, a democratização do voto, a desenfeudação da propriedade, a desoligarquização do senado, a federação dos estados unidos brasileiros… com a coroa, se esta lhe for propícia, contra e sem ela, se lhe tomar o caminho.25
Efetivamente, a reforma de 13 de maio foi apenas a primeira de uma série de reformas, que a coroa não pôde ou não soube conceder, e por isso tiveram de ser realizadas pela revolução republicana. Tivemos então, com o 15 de novembro, a federação, a desoligarquização do senado, a liberdade religiosa, um começo de democratização do voto… Todas as reformas constantes do programa de Rui, exceto uma – e justamente a mais importante de todas, aquela que representava a condição econômica, política e social indispensável à rigorosa aplicação da reforma de 13 de maio: a desenfeudação da propriedade.
Como Rui Barbosa, os abolicionistas mais esclarecidos compreendiam e proclamavam que o problema da escravidão e o problema do latifúndio estavam intimamente ligados entre si, não sendo possível dar completa solução a um sem resolver do mesmo passo o outro. Mais ainda: se alguma prioridade, em grau de importância, se devesse estabelecer entre ambos, o problema da terra seria colocado em primeiro lugar. Esse aliás sempre foi o pensamento das melhores cabeças de estadistas e publicistas que tivemos, desde antes da Independência. Baste-nos recordar um José Bonifácio, um Tavares Bastos, um André Rebouças – para caracterizar três momentos culminantes.
André Rebouças, grande engenheiro, grande inteligência, mas medíocre escritor: talvez a essa circunstância se dera em boa parte o não ter ele exercido, na política do segundo reinado, nem mesmo na campanha abolicionista, a influência primordial que lhe cabia. Era o tipo do apóstolo mas sem os meios de expressão necessários e adequados à importância do seu apostolado. Como quer que seja, ele foi, segundo suponho, o homem do seu tempo que melhor penetrou no conhecimento das condições históricas da economia brasileira. Os seus escritos, mal escritos embora, seriam ainda hoje de plena atualidade, e muitas das soluções técnicas, por ele propostas para a reorganização do trabalho rural em nosso pais, aparecem-nos como verdadeiras antecipações a serem aplicadas em nossos dias.
Os seus primeiros artigos versando tais assuntos datam de 1874; mas ainda em seguida ao 13 de maio, Rebouças continuava na brecha, batendo-se com o mesmo ardor e a mesma devoção pelos seus planos de reforma agrária, nos quais a escravidão e o latifúndio eram tratados como um só problema. As anotações do seu diário, posteriores ao grande dia da abolição, denunciam a tenacidade e a coerência dos propósitos que o animaram. Vale a pena citar algumas:
Em 14 de maio de 88: “Esboçando o projeto da nova Propaganda Evolucionista Democrática (Democracia rural — Liberdade de consciência — Liberdade de comércio).”
Em 26 de junho: “O Presidente do Conselho João Alfredo apresenta na Câmara o desgraçado projeto de 300.000 contos para o Landlordismo escravocrata. Oposição imediata de Joaquim Nabuco em discurso, e minha em discussão, depois da sessão, com os ministros João Alfredo e Ferreira Viana.”
Em 27 de junho: “A Cidade do Rio publica meu artigo — Aristocracia mendicante — em oposição ao projeto João Alfredo.”
Em 17 de julho: “Redigindo um projeto de Lei para Educação. Instrução e Elevação do nível moral dos libertos, em contraposição aos projetos de proteção aos fazendeiros e comissários de café, inspirados ao Presidente dos Ministros por Andrade Figueira, Ramalho Ortigão, etc., sob a dolosa rubrica de — Auxílios à Lavoura.”
Em 24 de julho: “Desagradável discussão, na Câmara dos Deputados, depois de terminada a sessão, com o Presidente João Alfredo pela sua esmola-indenização, agravada por mais um empréstimo sem juros, de 6.000 contos, acompanhado de uma série de favores ao Banco do Brasil, isto é, ao centro mais refratário à Abolição e à Democracia Rural, deixando no olvido, os libertos e o proletariado agrícola deste império …”
Em 1 de agosto: “Dou ao conselheiro Manuel Alves de Araújo, deputado pelo Paraná, uma nota sobre pequena propriedade rural, para incluir no seu discurso.”
Em 4 de março de 89: “Em Petrópolis … Na Estação com o Imperador conversando sobre os trabalhos destes últimos dias — Imposto Territorial — Cadastro — Abolição do latifúndio, complemento indispensável da Abolição do escravo (sic).”
Em 26 de março: “Escrevendo para a Cidade do Rio de Janeiro algumas notas sobre a elevação do negro pela Propriedade Territorial, único meio de impedir sua reescravidão.”26
Iludia-se no entanto Rebouças, ao esperar da monarquia, que já apresentava sinais visíveis de consumpção, algum sério movimento no sentido de atacar o problema sobre todos grave da propriedade da terra. Mas a grande verdade é que a república também não teve forças para atacá-lo. E assim, abolida a escravidão, mas conservado o latifúndio, ficou tudo pela metade, e até menos de metade. Os libertos de 13 de maio, sem terras para trabalhar e sem leis que os amparassem devidamente, acabaram reescravizados sob novas e não menos odiosas formas de cativeiro: o eito a salário de fome, a peregrinação de gleba em gleba, a degradação na miséria e no desespero. A abolição resultava numa “ironia atroz”, exclamaria Rui Barbosa trinta anos mais tarde, ao examinar o estado em que ficara o escravo manumitido:
“Estava liberto o primitivo operariado brasileiro, aquele a quem se devia a criação da nossa primeira riqueza nacional. Terminava o martírio, em que os obreiros dessa construção haviam deixado, não só o suor do seu rosto e os dias da sua vida, mas todos os direitos da sua humanidade, contados e pagos em opróbrios, torturas e agonias. Era uma raça que a legalidade nacional estragara. Cumpria às leis nacionais acudir-lhe na degradação, em que tendia a ser consumida, e se extinguir, se lhe não valessem. Valeram-lhe? Não. Deixaram-na estiolar nas senzalas, de onde se ausentara o interesse dos senhores pela sua antiga mercadoria, pelo seu gado humano de outrora. Executada, assim, a abolição era uma ironia atroz”.27
José Bonifácio, no projeto que havia elaborado para a Constituinte de 1823, já indicava a conveniência de converter os negros alforriados em pequenos proprietários, cabendo ao Estado facultar-lhes a possibilidade de adquirir lotes de terra e os meios necessários ao seu cultivo.28 Também o projeto de 15 de julho, apresentado pelo ministério Dantas, 60 anos depois, propunha a adoção de medidas semelhantes, como se pode verificar pela leitura dos parágrafos 14 e 15 do artigo 2º. Num e noutro caso tratava-se de medidas parciais, e relacionadas, em suas referências a terras, com as terras pertencentes ao Estado. Mas em ambos aparecia inseparável o binômio emancipação-terra, a assinalar a fórmula mais adequada à solução do grande problema também expresso em termos binários: escravidão-latifúndio.
Só em 1888 se resolveu a metade da questão. A outra metade permaneceu intacta, e intacta permanece até hoje.29 O caso é que, liquidada legalmente a instituição servil, e aberta a porta à imigração em massa de colonos europeus, os grandes proprietários e fazendeiros de café – sobretudo aqueles das zonas mais novas e mais prósperas – limitaram- se à adoção de métodos por assim dizer meramente quantitativos na substituição do braço escravo pelo braço livre. A coisa resultou até em bom negócio, de vez que o escravo se tornara mais caro que o colono. Demais, o essencial, para eles. consistia em conservar inatacáveis os seus privilégios semi-feudais de propriedade, nos quais a republica não teve coragem de tocar. Sílvio Romero, estudando a situação econômica e social do país durante a primeira década deste século, assim se exprimiu acerca do assunto:
“A consequência deste errôneo modo de colonizar é aquela mesma a que já aludi: o não se ter constituído a democracia rural, não se criarem as pequenas culturas…
“Daí o conservarem, de alto a baixo, as nossas agriculturas principais francos sinais de espúrio feudalismo: o senhor e os escravos, ontem; o fazendeiro e os colonos, hoje”.30
Não nos esqueçamos de acrescentar que em tudo isso tiveram os fazendeiros pleno apoio dos poderosos comissários de café, igualmente interessados na manutenção e no incremento da monocultura em larga escala do grande produto de exportação que possuíamos.
Ao cabo de tudo somos irresistivelmente levados a acreditar que aquela meia solução não foi talvez nem mesmo uma meia solução, mas uma pura escamoteação, com perdão da palavra. Coisa aliás que Rui previra com singular intuição, quando, no mais aceso da batalha parlamentar, em 1884, ao medir o alcance da resistência escravista, denunciava o perigo futuro de um ‘abolicionismo servido pelos inimigos da “abolição”.31
***
Seria difícil, para não dizer impossível, proceder a uma revista completa, mesmo em tom sumário, de todos os aspectos da questão dos escravos, tais quais foram expostos e analisados no parecer que constitui a parte central e principal do presente volume. Por outro lado, não posso imaginar até que ponto haveria utilidade em pormenorizar as circunstâncias históricas e políticas do momento em que o parecer foi elaborado; tanto mais que isso resultaria em repetir o que já é do conhecimento geral. Eu devia necessariamente limitar-me a apenas pôr em relevo certos aspectos e circunstâncias que me parecessem mais importantes, quer por sua significação intrínseca, quer por sua repercussão contemporânea e ulterior. Foi o que tentei fazer.
Devo por fim aduzir alguns esclarecimentos a respeito da preparação deste volume. De acordo com o plano preestabelecido para a edição das Obras Completas de Rui Barbosa, reimprime-se o parecer juntamente com os discursos proferidos pelo deputado Rui Barbosa durante a sessão legislativa de 1884. Os três primeiros desses discursos, pronunciados ainda na vigência do ministério Lafayette, antes de 6 de junho, tratam de assuntos de menor importância, de incidentes comuns na rotina parlamentar; mas o seu timbre polêmico lhes confere uma feição muito sensível de escaramuças a prenunciarem próximas e violentas refregas. O de 23 de julho, quando o projeto sobre a emancipação dos escravos já ia em pleno debate, ainda se restringe à discussão de matéria regimental; equivale, no entanto, a um rápido e áspero recontro de vanguarda. Em 28 de julho trava-se grande batalha campal em torno do projeto – e aí Rui Barbosa, falando em nome do governo, investe a fundo contra o adversário. Sabe-se do resultado: votada a moção de confiança posta em causa, uma pequena maioria – pequena e equívoca – derrotou o gabinete, o qual revidaria, dias depois, com a dissolução da Câmara e convocação de novas eleições.
Este discurso de 28 de julho foi editado em folheto, naquele mesmo ano de 188432; os restantes aparecem agora pela primeira vez em forma de livro. O texto de cada um deles, aqui reproduzido, é o que se encontra nos Anais da Câmara dos Srs. Deputados do Império do Brasil, ano de 1884, pela ordem seguinte: o de 8 de maio, v. I, p. 59; o de 19 de maio, v. I, pp. 242/43; o de 28 de maio, v. I, páginas 345/47; o de 27 de junho, v. II, p. 218; o de 23 de julho, v. III, pp. 299/300; o de 28 de julho. v. III. pp. 357/61; o de 26 de agosto, v. IV, p. 147. Observe-se que o de 27 de junho e o de 26 de agosto não chegam a ser discursos: são antes curtas intervenções, uma em justificação de um requerimento e a outra em retificação a um lapso de cópia verificado em certo papel da comissão de orçamento. Observe-se igualmente que apenas os discursos de 8 de maio e de 28 de julho se acham redigidos na 1ª pessoa, aparecendo os demais na 3ª pessoa; distinção que se deve levar em conta no concernente à forma em que são publicados, pois não é lícito assegurar-se com certeza que os discursos aparecidos na 3ª pessoa tenham sido revistos pelo orador.
Quanto ao texto do parecer, é o que consta dos mesmos Anais, ocupando toda a parte final do v. IV, em composição tipográfica especial, com 134 páginas numeradas de 1 a 134, e foi tirado em separata, num volume de 225 páginas, com os seguintes dizeres na capa: CÂMARA DOS DEPUTADOS / SESSÃO DE 4 DE AGOSTO DE 1884 / PROJETO N. 48 / EMANCIPAÇÃO DOS ESCRAVOS / PARECER FORMULADO / PELO DEPUTADO / RUI BARBOSA / COMO RELATOR / DAS / COMISSÕES REUNIDAS DE ORÇAMENTO E JUSTIÇA CIVIL / RIO DE JANEIRO / TIPOGRAFIA NACIONAL / 1884. Tanto os Anais como a separata reproduzem, em seguida ao parecer de Rui Barbosa, o texto do projeto e o voto divergente apresentado pelo deputado A. A. de Sousa Carvalho.
São aqui acrescentados, em apêndice: 1) o texto primitivo do projeto e as emendas e alterações feitas em 3 provas tipográficas sucessivas, tudo do punho de Rui Barbosa, conforme consta dos arquivos da Casa de Rui Barbosa; 2) o histórico dos fatos importantes ocorridos na Câmara dos Deputados, desde a apresentação do projeto, a 15 de julho, até à declaração de dissolução da Câmara, a 30 de julho; 3) a exposição sobre a dissolução, apresentada por Sousa Dantas ao Conselho de Estado, em sessão de 20 de julho, e cujo texto é de autoria de Rui Barbosa; 4) a circular de Rui Barbosa dirigida ao eleitorado do 8º distrito da Bahia, candidatando-se a deputado geral nas eleições marcadas para 1º de dezembro de 1884.
Os títulos e subtítulos, e bem assim as notas explicativas, que antecedem os discursos, não pertencem ao texto reproduzido: supomos que essas notas servirão para relacionar cada discurso com o fato ou fatos que lhe deram origem. São nossas também as chamadas feitas com asteriscos e as correspondentes notas ao pé de página. Organizamos, enfim, para completar o volume, a bibliografia, o índice onomástico e o índice geral das matérias nele contidas.
A ortografia desta edição não é, obviamente, a dos textos originais, mas sim a que está oficialmente adotada. De nosso arbítrio, só fizemos uniformizar em ou os ditongos de certas palavras – tesouro, lavoura, etc. – cuja variante em oi era da preferência de Rui Barbosa: e o fizemos em obediência unicamente ao uso generalizado hoje na dicção brasileira.
Uma primeira revisão de todo o volume foi feita pelo Sr. Fernando Nery, e no trabalho que me coube a seguir pude sempre contar com a assistência de funcionários da Casa de Rui Barbosa, à frente dos quais os Srs. Américo Jacobina Lacombe, diretor, e Homero Pires, arquivista; a este último devo especialmente, além de indicações bibliográficas sempre seguras, os dados relativos à atuação de Rui Barbosa como combatente da causa dos escravos. Os meus melhores agradecimentos a todos.
Rio, fevereiro, 1944.
Astrojildo Pereira.
NOTAS:
1Em 1882, ao passar em revista a tarefa realizada pelo governo durante os onze anos de vigência da lei, o Jornal do Comércio exprimia assim o seu desencanto: “É evidentemente obra mesquinha, que não condiz à intensidade do intuito que a inspirou.” Citado por Evaristo de Morais, em A Campanha Abolicionista, Rio, 1924, p. 4.
2Organizações e Programas Ministeriais desde 1822 a 1889, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1889, pp. 212/13.
3A apresentação do projeto por mão do filho de Sousa Dantas obedecia certamente a uma consideração mais de ordem moral do que política: o chefe do gabinete quereria com isso acentuar o seu empenho pessoal em favor da reforma proposta. Mas quem redigiu o projeto, a pedido de Sousa Dantas, foi Rui Barbosa. Rui lembrá-lo-ia pelo menos duas vezes – em 1919, na conferência sobre a questão social (Cf. Campanha Presidencial, Bahia, 1921, p. 116) e em 1921, no prefácio ao livro Queda do Império. v. I, p. XLVII. A Casa de Rui Barbosa conserva no seu arquivo o original e as provas emendadas do projeto. tudo do próprio punho de Rui Barbosa, e por ele guardados num envelope com os seguintes dizeres em manuscrito: “Documentos da gestação do meu projeto (projeto Dantas) sobre a emancipação dos sexagenários – 188”. Note-se que o possessivo meu está sublinhado, e a data aparece incompleta – 188… em vez de 1884.
4Em artigo publicado meses depois no Jornal do Comércio, da série ali firmada com o pseudônimo de Grey (um dos “ingleses do Dantas”), Rui Barbosa caracterizava do seguinte modo a natureza da batalha parlamentar sustentada pelo gabinete Dantas: “A história do ministério 6 de junho na sessão legislativa de 1884 é uma luta de porfias incessantes contra essa estratégia [matar o projeto por sonegação], explorada em sucessivas guerrilhas contra a existência do gabinete. Por mais que o governo reclamasse, com exuberância de razões e estrondosos aplausos da opinião pública, a enunciação franca de todos os votos sobre o objeto que constituía o pomo de discórdia entre liberais e liberais, conservadores e conservadores, a astúcia subsistiu até ao último momento dessa campanha desigual, em que o timbre das forças coligadas contra o ministério era derrotá-lo fora da questão que operara contra ele essa aliança.” (Jornal do Comércio, n.° de 22 de março de 1885).
5Houve também quem pensasse na imigração de trabalhadores asiáticos. Ver a este respeito o livro de Salvador de Mendonça, Trabalhadores Asiáticos (New York, Tipografia do Novo Mundo, 1879). Salvador era na ocasião cônsul geral do Brasil nos Estados Unidos, e seu livro resultou do estudo da matéria que lhe fora encomendado pelo Ministério da Agricultura em 1875. Ainda sobre os debates de então acerca dos problemas relativos à imigração, ver igualmente as Teses sobre Colonização do Brasil, (Rio de Janeiro, Tipografia Nacional, 1875), título do relatório elaborado pelo conselheiro João Cardoso de Meneses e Sousa (mais tarde Barão de Paranapiacaba), também por incumbência do mesmo Ministério. O conselheiro João Cardoso manifesta-se infenso à imigração asiática em geral, por entender de má qualidade o imigrante daquela procedência, ao passo que Salvador de Mendonça argumenta em sentido oposto, mostrando-se favorável aos asiáticos. Mas onde provavelmente caberia inteira razão ao conselheiro era no ponto em que ele denunciava os propósitos escravistas que se ocultavam nos projetos daqueles que pensavam em atrair para o Brasil o imigrante asiático.
6“Ibicaba resta l’exploitation modèle oü le travail libre et l’esclavage vivaient côte à côte. Cest là quon put voir les deux systèmes à l oeuvre et que se décida aussi le triomphe du travail libre. L’esclavage et le travail libre devinrent bientôt incompatibles et l’immigration vint par conséquent accélérer l‘abolition de l’esclavage.” (C. M. Delgado de Carvalho. Le Brésil Méridional. Paris-Rio de Janeiro. 1910, p. 110). Ver, sobre a experiência do senador Vergueiro, as Memórias de um Colono no Brasil (1850), de Thomas Davatz, tradução, prefácio e notas de Sérgio Buarque de Holanda, São Paulo, 1941.
7“Não exagero, senhores: porque toda a nossa história, neste meio século, não registra orgia igual de más paixões desaçaimadas, cenas de fúria, de demência, de perfídia como as dessa epilepsia organizada, que se desencadeou contra o governo abolicionista, desde os clubes secretos da lavoura até às mancomunações de corredores, desde as vilanias sorrateiras até às declamaçôes apopléticas, desde as verrinas de antagonismo parlamentar até o sussurro das conspirações de porão, desde a babugem das lesmas subalternas até à esfuziada contínua dos pelotões de mamelucos”. Isto diria Rui em 1886, por ocasião da morte do segundo José Bonifácio (Elogios acadêmicos e Orações de paraninfo, Rio, 1924, pp. 89/90).
8Acusações idênticas sofrera em 1871 o gabinete Rio Branco também acoimado, em pleno parlamento, de governo comunista, governo do morticínio e do roubo. Rui transcreve no parecer as palavras proferidas então por certo deputado, o qual acusava Rio Branco de desfraldar as velas por um oceano onde voga também o navio pirata, denominado “A Internacional”. Recordemos, a propósito, que aquele ano de 1871 fora o ano da comuna de Paris…
9Artigo de Grey, no Jornal do Comércio de 1º de março de 1885.
10Rui Barbosa, Novos Discursos e Conferências, coligidos e revistos por Homero Pires, São Paulo, 1933 p. 89.
11Artigo de Grey, já citado, no Jornal do Comércio de 1º de março de 1885.
12“A escravidão gera a escravidão, não só nos fatos sociais, como nos espíritos. O cativeiro vinga-se da tirania que o explora, afeiçoando-lhe a consciência à sua imagem. O grande proprietário de escravos é principalmente um produto moral do trabalho servil. Pode compreender a benevolência, a caridade, a filantropia individual para com os oprimidos. Mas não lhe é possível a iniciativa heróica de uma reforma que revolva pelos fundamentos a massa servil”. (Discurso no Teatro Politeama, em 1885, incluído no volume Discursos e Conferências, ed. cit., pp. 54/55).
13Elogios Acadêmicos e Orações de Paraninfo, p. 89.
14Citado por João Cardoso de Meneses e Sousa, Teses sobre a Colonização no Brasil, p. 175. A mesma coisa havia percebido José Bonifácio, com o seu olho de águia, meio século antes: “As artes não se melhoram: as máquinas, que poupam braços, pela abundância extrema de escravos nas povoações grandes, são desprezadas. Causa raiva, ou riso ver vinte escravos ocupados em transportar vinte sacos de açúcar, que podiam conduzir uma ou duas carretas bem construpidas com dois bois ou duas bestas muares”. E ainda esta observação de quem vira o arado na Europa: “… 20 escravos de trabalho necessitam de 20 enxadas, que todas se poupariam com um só arado” (Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura — por José Bonifácio de Andrada e Silva, Paris, 1825, p. 17).
15Joaquim Nabuco, O Abolicionismo, São Paulo-Rio, 1938. p. 206.
16Citado por André Rebouças, Agricultura Nacional, Rio, 1883, p. 80. Ainda sobre o emprego do arado na província de São Paulo, o mesmo Rebouças fez publicar uma nota no jornal da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, contendo informações que recebera de um amigo, em 1868, e são reproduzidas no seu livro.
17O prof. Vincenzo Grossi (Storia della colonizzazione europea al Brasille e della emigrazione italiana nello Stato di S. Paulo, 2ª ed., Milano-Roma-Napoli, 1914, p. 350) registra os seguintes algarismos relativos à entrada de imigrantes no Estado de São Paulo entre 1878 e 1899: de 1878 a 1879 – 3.481; de 1880 a 1884 — 15.899; de 1885 a 1889 – 168.289; de 1890 a 1894 – 320.315: de 1895 a 1899 – 420.296.
18J. F. Normano, Evolução Econômica do Brasil, São Paulo, 1939, p. 107.
19“As linhas férreas iam coincidindo, nas várias zonas, com outros meios de comunicação, tais como estradas de rodagem, rios navegáveis, e até, em algumas províncias, canais que se iam abrindo. A navegação a vapor, principalmente, tanto marítima como fluvial, começou a prestar poderoso concurso à solução do problema das comunicações, quer internas, quer do país com o exterior” (Rocha Pombo, História do Brasil, edição do Centenário, Rio, s. d.p v. IV. p. 136).
20João Pandiá Calógeras, Formação Histórica do Brasil, 1ª ed., Rio, s.d., p. 370.
21Apud André Rebouças, op. cit., p 178.
22Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 3ª ed., Rio, 1943. v. I, p. 27.
23Elogios Acadêmicos e Orações de Paraninfo, p. 130.
24João Mangabeira, Rui – O Estadista da República, Rio, 1943, p. 288.
25Discursos e Conferências, ed. cit., p. 204.
26Cf. André Rebouças, Diário e Notas Autobiográficas, Rio, 1938.
27Rui Barbosa, A Questão Social e Política no Brasil, conferência incluída no volume Campanha Presidencial, pp. 116/17.
28“Art. X Todos os homens de cor forros, que não tiverem ofício, ou modo certo de vida, receberão do Estado uma pequena sesmaria de terra para cultivarem, e receberão outrossim dele os socorros necessários para se estabelecerem, cujo valor irão pagando com o andar do tempo” (Op. cit., pp. 29/30).
29“Cinqüenta e cinco anos se passaram sobre esse programa e a propriedade continua enfeudada. Na mais reacionária, iníqua e estúpida de suas formas – na enfiteuse, instituto do direito romano, expandido sob o domínio feudal. Forma parasitária da propriedade, pela qual o landlord usufrui e dissipa, nas cidades, o fôro que lhe paga o camponês, na dura labuta de todos os dias, curvado sobre a terra, mãe comum de todos os homens” (João Mangabeira, op. cit., p. 289).
30Sílvio Romero, O Brasil na Primeira Década do Século XX, Lisboa, 1912, p. 92.
31Discurso na Câmara dos Deputados, em 28 de julho de 1884.
32Elemento Servil, discurso proferido na Câmara dos Srs. Deputados pelo deputado Rui Barbosa. Rio de Janeiro. Tipografia Nacional, 1884. Folheto de 20 páginas.
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