Não existe a liberdade de mentir – a mentira é proibida desde o oitavo dos 10 Mandamentos até o nosso Código Penal (artigo 342).
Muito menos existe a liberdade, quando o mentiroso é pego em flagrante, de atribuir a mentira a quem revelou a verdade.
Menos ainda para quem é presidente da República.
Aceitar que Bolsonaro ataque a jornalista Vera Magalhães, quando esta revelou que ele disparou pelo Whatsapp um vídeo – de conteúdo rasteiramente nazista – convocando uma manifestação contra o Congresso e contra o Supremo, é coonestar o fascismo e a mentira (v. HP 27/02/2020, ‘Mito’ assanha cachorrada com ato para derrubar democracia em 15 de março).
Assim, dizer que Vera “mereceu o que teve”; ou que “agora ela sabe o que é bom”; ou algumas outras modalidades do “bem feito!”; ou dizer “que se dane”, porque a jornalista teria ajudado a “normalizar” Bolsonaro, comparando-o a Lula, é, na prática, se juntar a Bolsonaro na tentativa de apedrejar alguém pelo mérito de revelar publicamente mais um fiapo do que é Bolsonaro.
Sobretudo no momento em que Bolsonaro tenta, ao modo de Mussolini, a sua “marcha sobre Roma”, tirá-lo das sombras, onde ainda se mantém em muito, é algo importante e socialmente útil.
O que aconteceu?
No último dia 25, a jornalista Vera Magalhães, do jornal “O Estado de S. Paulo” e do site BR Político, divulgou que Bolsonaro enviara uma convocação para a manifestação contra o Poder Legislativo e o Poder Judiciário.
No mesmo dia, a jornalista divulgou outro vídeo, também disparado por Bolsonaro, com o mesmo conteúdo.
O ministro da Secretaria de Governo, general Luiz Eduardo Ramos, confirmou que Bolsonaro disparou esses vídeos.
O ex-deputado Alberto Fraga, antigo líder da bancada da bala, também confirmou ter recebido os vídeos de Bolsonaro.
Apesar disso, no dia 27, Bolsonaro, na entrada do Alvorada, e depois em vídeo, acusou a jornalista de mentir – e daquele jeito costumeiro em Bolsonaro, mais ainda quando se trata de uma mulher:
“Estou aguardando a Vera mostrar o vídeo dela. E não vai mostrar, né? O caráter dela… Vera Magalhães, eu não sou da tua laia. Ela queria dar um furo de reportagem com aquele meu vídeo convocando o pessoal para 15 de março, mas no seu afã de dar o furo rapidamente, ela esqueceu de ver a data que era 2015. Se bem que dá para ver, perceber um pouquinho no meu semblante, que estou um pouco mais jovem. Mais um trabalho porco que a mídia toda repercutiu.”
O vídeo estava disponível na Internet.
Em 2015, Bolsonaro, evidentemente, não era presidente. Nem tinha levado a facada que aparece no vídeo. No primeiro vídeo é dito: “temos um presidente trabalhador, incansável, cristão, patriota, capaz, justo, incorruptível. Dia 15/03, todos nas ruas apoiando Bolsonaro”.
É óbvio que esse vídeo não é de 2015.
Não houve manifestação de apoio a um presidente de nome Bolsonaro em 2015, porque a presidente era Dilma Rousseff. E ele somente levou a facada, que aparece no vídeo, na campanha eleitoral de 2018 (v. o vídeo na coluna de Vera Magalhães).
Porém, apesar disso ser evidente, Bolsonaro repetiu:
“A Vera mentiu. Eu quero que a Vera mostre o vídeo em que eu estou convocando as pessoas para isso.”
Como é que pode um sujeito negar o que todos estão vendo? E por que ele está negando?
A segunda questão é mais fácil de responder: a carreira de Bolsonaro é uma fieira de covardias. Foi assim que ele saiu do Exército, negando que fosse responsável pela “Operação Beco Sem Saída”, cujo objetivo era “explodir bombas em várias unidades da Vila Militar, da Academia Militar das Agulhas Negras (…) e em vários quartéis” (v. HP 16/08/2018, Terrorismo de baixa potência).
A primeira questão tem a mesma resposta, mas com outro ingrediente: a falta de limite. Quando as coisas ficam feias para ele – e ficaram e estão ficando – acha lícito chamar tamanduá de jaguatirica.
Os outros que se submetam.
Segundo fontes do Planalto, Bolsonaro plantou uma esculhambação no general Luiz Eduardo Ramos e no ex-deputado Alberto Fraga, por terem confirmado que receberam dele os vídeos convocando a manifestação contra o Congresso e contra o Supremo.
Em suma, Bolsonaro é incompatível com a verdade.
Em relação a muita coisa, temos opiniões muito diferentes daquelas de Vera Magalhães.
Mas o que importa, aqui, é a verdade.
E quem falou a verdade foi ela, não Bolsonaro.
Em sua resposta, Vera Magalhães disse, sobre isso, algo importante:
“Aqui está o print que publiquei dos DOIS vídeos que o senhor enviou a seus contatos no WhatsApp neste feriado, e não em 2015. Veja que tem seu passeio de moto no Guarujá, depois seu texto, e os dois vídeos, presidente. Eles falam da facada que o senhor sofreu, que foi em 2018, e de sua eleição, também em 2018. Como podem ser de 2015? (…) Acho perigoso a um presidente mentir em rede nacional. Acrescenta mais uma à sua lista de condutas impróprias. Um abraço”.
Um presidente mentir em rede nacional, depois de convocar uma manifestação contra os demais poderes da República, é não somente perigoso. É, também, ilegal. Antes de tudo, é sinal de que temos um desclassificado na Presidência.
CARLOS LOPES