WALTER NEVES
Instituto de Estudos Avançados-USP
A fêmea humana apresenta grandes peculiaridades com referência à sua estratégia de acasalamento, quando comparada a outras mamíferas. Primeiramente, ela está sempre apta à cópula e não exclusivamente quando está em seu período fértil. Além disso, apresenta aquilo que se denomina ovulação silenciosa, ou seja, não externa fisicamente que está no estro ou cio. Nos demais mamíferos, quando a fêmea entra em seu período fértil, ou de ovulação, ela muda seu comportamento, sua genitália incha e exala odores que atraem os machos. A fêmea humana é a única mamífera que acasala durante a gravidez e a que mais rapidamente entra em intercurso sexual sistemático após o parto. Por isso, Helen Fisher, em seu consagrado livro de 1982, denominado “The sex contract” (O contrato sexual), chama a mulher de atleta sexual. A grande pergunta é a partir de quando essas características foram fixadas pela seleção natural em nossa evolução? Já o homem se comporta bastante similar àquilo que os demais machos mamíferos fazem, com uma grande exceção: ele investe sistematicamente na prole.
No mundo animal, normalmente os machos não investem no cuidado de seus filhotes, cabendo apenas à fêmea o fardo da criação. Os machos entram basicamente só com o esperma. Mas por que os machos mamíferos não investem na sua prole? Por uma razão muito simples: como os sistemas de acasalamento nesses animais são no geral promíscuos e aleatórios o macho não tem como ter certeza de que a cria é de fato sua e como manda a teoria darwiniana, não tem sentido gastar energia com genes alheios. Afinal de contas, do ponto de vista evolutivo, quanto maior o número de cópias de genes que é deixado por um indivíduo para a próxima geração, maior seu sucesso evolutivo. Portanto, quanto mais monogâmicas são as estratégias de acasalamento, mais os machos tendem a investir na criação da prole, porque podem “garantir” que de fato os filhotes carregam seus genes e não os de um competidor. No mundo animal, as aves são sempre lembradas como modelo de investimento paterno na prole. Coincidentemente, as aves são extremamente monogâmicas. Muitos pares se formam e permanecem assim por toda a vida.
Entre os primatas, grupo ao qual pertencemos, a monogamia é muito rara. Além de nós, apenas alguns poucos macacos da América do Sul a exibem. Chimpanzés, por exemplo, que são nossos parentes mais próximos (repartimos com eles 98% de nosso genoma), são extremamente promíscuos, com alguns machos, ditos alfa, tendo grande acesso a fêmeas, ao passo que outros, ditos periféricos, acasalam muito ocasionalmente, embora todos defendam as fêmeas de seus grupos para impedir que machos de outros grupos adentrem seus territórios e tenham acesso sexual a elas. Assim, há uma acirrada competição por fêmeas, sobretudo por aquelas que sinalizam fisicamente que estão em seu período fértil. Embora com características próprias, entre gorilas e orangotangos há também uma acirrada disputa por fêmeas. Por isso, nesses três grandes símios (também denominados monos), há um grande dimorfismo sexual. Ou seja, as fêmeas apresentam, no geral, apenas 60% do tamanho do macho, além de caninos muito menores. Mas por que esse dimorfismo? É simples: tamanho é documento nessas sociedades. Como há intensa disputa entre os machos por acesso às fêmeas, quanto maior for um macho, maior a intimidação que ele pode impingir aos machos menores, galgando assim a posição de macho alfa, posição essa que é sempre ameaçada. Os grandes caninos também fazem diferença, uma vez que se transformam em armas poderosas de display de agressão. Chamamos isso de seleção sexual, descrita por Darwin nos anos 1870. As fêmeas tendem a escolher e parear com indivíduos que sinalizam grande saúde genética, no caso os machos alfas, premiando, ainda mais, tamanho corporal e caninos expressivos.
Tendo em vista que nossos parentes mais próximos no planeta, os monos, “adotam” estratégias promíscuas de acasalamento, a grande pergunta que se impõe é: quando em nossa evolução surgiu a monogamia? Aqui cabe lembrar que, conforme previsto, entre os humanos o dimorfismo sexual é de apenas 10%. Em outras palavras, as mulheres apresentam 90% do tamanho dos homens. Isso porque em sistemas monogâmicos, o acesso a fêmeas é mais democrático, diminuindo a tensão entre os homens no que tange a procriação: há sempre um sapato velho para um pé cansado…
Mas somos realmente monogâmicos? Há controvérsias. Vários pesquisadores vêm insistindo no fato de que talvez as coisas não sejam propriamente assim. Estudos efetuados nos últimos 40 anos em povos muito diferentes vêm demonstrando que apenas 8% das sociedades humanas são de fato monogâmicas. Noventa por cento delas, são poligínicas, ou seja, um homem tem várias esposas e apenas 2% são poliândricas, situação na qual uma mesma mulher tem vários maridos. Por isso, dada a alta frequência de poligamia poligínica na humanidade, prefiro dizer que somos monogâmicos seriados, ou seja, o velho bordão popular de “eterno enquanto dure”.
Helen Fisher, em publicações posteriores ao seu clássico “The sex contract”, continuou investindo em sua linha de investigação original, pesquisando quando ocorreria a separação de casais em distintas sociedades humanas, incluindo aí bandos de caçadores-coletores e sociedades tribais. Se, de fato, somos monogâmicos seriados, seria esperado que o investimento paterno durasse pelo menos até a prole já ter alguma independência. Mas isso, segundo Fisher, não coincide com a sabedoria popular que preconiza a tal crise dos sete anos. Tabulando seus dados, ela encontrou um cenário completamente distinto da sabedoria popular. Na verdade, em todas as sociedades humanas por ela estudadas, a grande crise do casamento, levando, mais das vezes, à separação, ocorre por volta de três anos e meio, exatamente quando nossas crianças já se mostram bastante crescidinhas.
Quando teria surgido em nossa linhagem, e apenas em nossa linhagem, a monogamia seriada?
Mas voltando à pergunta de um milhão de dólares, tendo em vista que nossos parentes mais próximos são todos promíscuos, quando teria surgido em nossa linhagem, e apenas em nossa linhagem, a monogamia seriada? Quanto a isso, os autores se definem por duas posições bastante distintas: um primeiro grupo, com grande capacidade de fazer barulho, advoga que a monogamia teria aparecido logo no surgimento de nossa linhagem (primeiros bípedes) por volta de 7 milhões de anos. Outros são mais modestos, e preconizam que ela teria surgido mais recentemente, por volta de 2,5 milhões de anos, quando apareceram no planeta os primeiros representantes do gênero Homo.
O primeiro grupo de pesquisadores é liderado por Owen Lovejoy, da Universidade de Cleveland. Em 1981 ele publicou na revista Science, uma das mais importantes do mundo, um artigo que também se transformou num clássico da paleoantropologia, juntando as informações fornecidas acima. Denominado “The Origin of Man” (A Origem do Homem), Lovejoy propôs o seguinte modelo: quando deixamos as florestas há cerca de 4 milhões de anos (temporalidade conhecida à época para o início da origem de nossa linhagem) e passamos a ocupar as savanas, nossos ancestrais encararam um novo mundo cheio de oportunidades, mas também cheio de perigos. Já não tínhamos mais a proteção das árvores, dado que são muito raras em ambiente savânico. Para Lovejoy e seguidores, a única maneira de uma espécie de grande primata prosperar no ambiente savânico seria as fêmeas e os filhotes permanecerem em locais mais abrigados, cabendo aos machos obter comida (carne) na vastidão da savana e levá-la à fêmea e seus filhotes.
Nesse modelo teria sido aí que nos tornamos bípedes. Teria havido uma enorme pressão seletiva para que os machos tivessem as mãos liberadas para carregar comida até os locais mais protegidos, nos quais a carne era repartida com esse embrião de família. Mas, como vimos, machos só investem na prole se tiverem certeza de que ela de fato carregue seus genes. É aí que teria surgido a atleta sexual. Fêmeas com maior capacidade de atrair machos de forma estável seriam imensamente recompensadas com recursos alimentares estáveis. Literalmente trocavam sexo por carne. Sabemos que do ponto de vista do macho, esse esquema também o beneficiaria, tendo em vista que já foi demonstrado matematicamente que copular sistematicamente com uma mesma fêmea aumenta a probabilidade de fertilização, quando comparado à cópula aleatória com fêmeas diversas. Apesar do grande sucesso, inclusive midiático, do modelo de Lovejoy/Fisher, hoje sabemos que a bipedia surgiu em ambientes florestados e não nas savanas! Mas os 40 anos de pesquisas que sucederam o modelo original, do início do anos 1980, também trouxeram boas notícias para o modelo Lovejoy/Fisher: hoje sabemos que o primeiro bípede, portanto nosso primeiro ancestral, que viveu por volta de 7 milhões de anos no Chade já apresentava caninos bastante reduzidos, muito menores que os dos Chimpanzés, por exemplo.
O segundo grupo de pesquisadores, com menor capacidade de fazer barulho e, portanto, ter sucesso midiático aproveita muito do modelo Lovejoy/Fisher, mas simplesmente desloca sua cronologia para cerca de 2,5 milhões de anos. Mas por que esse adiamento? Por uma razão muito simples: foi apenas a partir de 2,5 milhões de anos que ocorreu a savanização que hoje caracteriza grande parte da África. Os hominínios anteriores a essa data viveram em ambientes de florestas ou bosques. Isso se torna claro quando se analisa a bipedia desses hominínios pré 2,5 milhões de anos. Apesar de serem bípedes, ainda guardavam grande capacidade de subir em árvores. Seus braços eram muito longos em relação às pernas, como nos chimpanzés. Foi só a partir de 2,5 milhões de anos que surgiu a bipedia estritamente terrestre: braços curtos e pernas longas.
Coincidentemente, foi por volta de 2,5 milhões de anos que surgiram na África os primeiros representantes do nosso gênero, ou seja, do gênero Homo. Três espécies de Homo surgiram entre 2,5 e 2,0 milhões de anos: o Homo habilis, o Homo rudolfensis e o Homo erectus. Embora haja uma amostra bastante razoável de crânios dessas espécies, poucos ossos abaixo do crânio desses hominínios foram encontrados, o que torna muito difícil estimar seus graus de dimorfismo sexual. Mas o pouco material pós-craniano existente aponta para um grau de dimorfismo sexual muito similar ao nosso. Além disso, apresentavam caninos muito pequenos, também muito semelhantes aos nossos. Este cenário é bastante favorável a algo similar ao modelo Lovejoy/Fisher. Savana/novos recursos (carne)/predação implacável/fêmeas sempre aptas ao sexo/monogamia/machos investindo na prole/mãos livres para carregar comida/bipedia, não necessariamente nessa mesma ordem.
Desde o começo dos anos 1980 muitos outros modelos para explicar a origem da bipedia, sem necessariamente apelar para estratégicas de acasalamento, foram propostos. Contabilizei mais de 60 até o final dos anos 1990. Depois perdi a conta! Hoje, nenhum desses modelos se sustenta, tendo em vista que todos se baseavam na ideia, desde Darwin, de que haveria uma relação inextricável entre bipedia e savana. De qualquer forma, ainda fica por explicar a peculiar estratégia de acasalamento da fêmea humana, única no mundo animal. E se há alguma chance de explicá-la, isso reside, necessariamente, numa abordagem evolutiva.